sexta-feira, 21 de outubro de 2022

As Operações SAAL (2007) de João Dias



por João Palhares

«1. Toda a pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.» 
 
in Artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 
 
«Lá vêm subindo o abismo 
Da sombra donde vieram 
Já sem medo e sem vergonha 
Virados para a luz do dia 
Será esta a nossa porta? 
Perguntavam um pouco inquietos 
Por terem pela vez primeira 
Quatro paredes e um tecto.» 
 
José Afonso, in «Barracas ocupação». 

Feita a revolução (essa que o Juan Miranda de Giù la testa descreveu aos gritos como um sonho de burgueses posto em prática pelos mais pobres), que mais falta fazer? Normalmente, tudo. E muito antes de José Mário Branco assumir pesadamente que “foi um sonho lindo que acabou,” numa ode cantada a uma amada que podia ser a nossa Revolução, houve um grupo alargado de arquitectos e de moradores que arregaçou as mangas e pôs mãos à obra durante o Processo Revolucionário em Curso. A pretexto de um despacho criado pelo então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, tentar-se-ia resolver o problema da habitação e da exclusão em comunidade: os arquitectos desenhavam as casas, os moradores construíam-nas e o Estado pagava os materiais. O projecto chamou-se Serviço de Apoio Ambulatório Local, mas é mais conhecido por “Operações S.A.A.L.”, que é também o nome do filme de João Dias. 
 
As Operações SAAL, o filme, foi feito nas ruas. A caminho de bairros ou de escritórios de arquitectos, em salas de arquivos e com o próprio realizador em campo durante a sua investigação. O estado primordial da demanda retratada, que envolve a reforma de um país e a luta de um povo pelos seus direitos fundamentais, permitiu a João Dias abrir uma discussão com duas horas entre pólos aparentemente irreconciliáveis. Um dos arquitectos que presta depoimento até diz que “agora podemos desabafar” e os intervenientes são confrontados uns com os outros na montagem e, claro, no terreno. Como garantir habitação a pouco custo para muita gente? Como é que se constrói uma casa que agrade a outra pessoa? Como é que se sustenta um programa que depende de reuniões contínuas entre associações de moradores e técnicos do Estado? Quanto duram os projectos originais e quanto desperdício de fundos houve, se, depois, os moradores trocam os materiais usados por outros ou o poder local interrompe os trabalhos? Vale a pena quando, noutras situações, as casas não vão para os moradores mas para arquitectos? 
 
Não há muitos documentários ou reportagens (portugueses ou não) que abracem, desta forma, o contraditório para qualquer dos lados de uma discussão. Normalmente há uma tese a ser defendida, normalmente os depoimentos não são cortados ou deixam-se correr até ao final duma ideia (normalmente, isso também é uma ilusão urdida pela montagem). Mas em As Operações SAAL respira-se o ar de Abril e dos milhares de sonhos possíveis traçados entre a esperança pessoal e o inconsciente colectivo, captados por uma câmara que deixa miúdos acenar-lhe do outro lado da rua e espectadores fortuitos chamarem-lhe de câmara da “TVI”. Lembramo-nos do Glauber Rocha, cineasta brasileiro, em pleno 25 de Abril, a espicaçar miúdos e graúdos pelas ruas de Lisboa n’As Armas e o Povo. “Acredjita na révulução?” “Há quanto tempo você lútá?” Que esperança ainda têm as pessoas de que algo mude no que é essencial nas suas vidas? Ainda estão dispostas ou ainda acreditam em lutar como lutaram pela paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação? “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa,” gritam os proscritos de hoje, relembrando-nos que continuamos muito longe de dar corpo à Declaração Universal dos Direitos do Homem. 
 
A resposta é afirmativa, a luta continua.



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