sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Dom na trubnoy (1928) de Boris Barnet



por António Cruz Mendes

Todos conhecemos Eisentein, Dovjenko, Dziga Vertov… Mas, Boris Barnet, também ele realizador de cinema com uma carreira que se inicia nos anos 20, é ainda desconhecido do grande público. E, no entanto, Georges Sadoul chegou a considerá-lo “o melhor realizador soviético”. 

Este filme ajuda-nos a compreender a admiração do historiador de cinema francês. É excelente a sequência da caótica “limpeza” das escadas do prédio, filmadas em planos de conjunto que realçam a sua verticalidade, a perspectiva das ruas oferecida pelas linhas serpenteantes dos eléctricos, o recurso ao movimento acelerado para nos dar a impressão do dinamismo da vida urbana… Particularmente ousada é a forma como, num momento de grande tensão (Parasha vai ou não ser atropelada pelo eléctrico?), recorre à imagem parada para introduzir um flash-back que há-de responder a uma cómica questão: “mas, afinal, donde veio o pato?”. O singular humor de Barnet percorre todo o filme. Encontrámo-lo, por exemplo, na cena onde Marisha, roída de ciúmes por causa da atenção que Semyon dá a Parusha, descarrega a sua fúria nos tapetes que tem que bater. Uma atitude logo seguida pela “rival”, que assim agridem os tapetes em vez de se agredirem uma à outra. 

Mas, afinal quem é Parasha (ou Paranya, nome pelo qual também era conhecida)? Trata-se de uma jovem provinciana perdida na grande cidade. O tio que a deveria receber foi à aldeia no dia em que ela chegou a Moscovo. Vestida como uma camponesa, com as suas botifarras e a sua roupa sem forma, ela vê-se perdida, perplexa entre a multidão de desconhecidos, desorientada no meio das ruas por onde circulam pessoas apressadas, carros e eléctricos. A cena onde para o trânsito para se abraçar ao seu pato (“aterrorizado”, diz ela), à última hora salvo de ser atropelado, exemplifica a sua situação. 

O encontro com Semyion leva-a à casa da Praça Trubnaia onde vai trabalhar como empregada doméstica para os Galikov, uma casa onde a mulher nada faz e não se aceitam trabalhadoras sindicalizadas. Contudo, uma série de acidentes permitem-lhe conhecer Fenya, uma sindicalista, e assistir à representação da “Tomada da Bastilha” no Clube dos Trabalhadores. Aí, vai saltar para o palco para “salvar” um revolucionário de ser abatido pelo General, episodicamente interpretado pelo cabeleireiro Galikov. A confusão entre a ficção e a realidade, alarga-se de Parasha a todos os espectadores, que fazem dela uma heroína, e ao próprio patrão, que a castiga com o despedimento. 

No fim do dia das eleições, a multidão dos votantes, dispersa-se em todos os sentidos e Parasha, filmada em plongé, surge-nos isolada, no meio da praça deserta. Está de novo sozinha e sem-abrigo. Mas, a fama da sua ousadia e uma confusa troca de nomes, põem a correr o boato de que ela teria sido eleita, em representação do sindicato das trabalhadoras domésticas, para a Assembleia Municipal. Na casa da Praça Trubnaia, todos se preparam para a acolher em festa. As escadas da casa estão finalmente asseadas e até mesmo os “burgueses” das relações da madame Galikov que, antes disso, a desprezava e explorava, prepararam um pequeno banquete para a receber. 

No entanto, desfeito o equívoco, Parasha é de novo expulsa da casa dos antigos parões e são apenas as mãos ávidas dos convidados dos Galikov que se atiram, num expressivo plongé, sobre as requintadas vitualhas dispostas na mesa. 

A sinopse que reproduzimos mais acima diz-nos que o filme é “uma sátira à pequena-burguesia que sobrevivera à Revolução”. Na verdade, ela não apenas “sobrevivera”, mas, decerta forma, renascera durante o período da NEP, a “Nova Política Económica” promovida na URSS entre 1921 e 1928. Apostou-se, então, na iniciativa dos pequenos produtores e comerciantes para revitalizar uma economia que se encontrava exangue depois da 1ª Guerra Mundial e da guerra civil que se seguiu à tomada do poder pelos bolchevistas. No entanto, a implementação da NEP dividiu o Partido. Entre os seus defensores, destacou-se Bukarine. Na sua opinião, dado o subdesenvolvimento económico da URRS, o socialismo só poderia avançar aí “a passo de tartaruga”. Outros, como Preobajensky, pelo contrário, consideravam que a industrialização do país teria que passar obrigatoriamente pela colectivização das terras, embora defendessem que esse processo fosse realizado à medida que os camponeses fossem reconhecendo as vantagens das grandes explorações colectivas sobre as pequenas propriedades individuais. E havia ainda quem visse, no enriquecimento dos NEPmen (os pequenos comerciantes e proprietários, como Galikov) uma traição aos ideais igualitários da Revolução. 

Nesta disputa, o filme de Barnet toma partido. Não é por acaso que a parede da sala da casa dos Galikov, onde se prepara o banquete de recepção a Parusha, está decorada com a fotografia de Bukarine. Ora, a data da realização do filme coincide com a da aprovação do 1º Plano Quinquenal que assinala o fim da NEP e o início de radical processo expropriação das pequenas propriedades que vai mudar a face do país. 

Em 1928, é Estaline quem detém o poder. Primeiro, apoiou-se em Bukarine para afastar Trotsky, Zinoviev, Kamenev. Preobajensky também não escapou. Mas, muito em breve, o seu antigo aliado vai tornar-se a sua próxima vítima. O seu retrato afixado na sala dos Galikov é uma subtil introdução à tragédia que se vai seguir. Bukarine, tal muitos outros daqueles e de outros “velhos bolchevistas”, vai ser condenado à morte nos tristemente famosos Processos de Moscovo, ocorridos nos anos 30. A colectivização das terras e a “liquidação como classe” dos Kulaks (os camponeses “ricos”) e dos NEPmen vai realizar-se rapidamente e com a maior violência. O saldo serão muitos milhões de mortos. 

Teria Barnet consciência do papel desempenhado pelo seu filme na preparação da opinião pública para aquilo que estava para vir? Na última cena, o cabeleiro é informado que vai “passar uns anos na prisão”, acusado de “ofensas físicas” a Parusha... 

A mão negra da Inquisição esconde-se por trás de muitas extraordinárias pinturas do século XVII e, agora, isso não nos impede de as apreciarmos com gosto. Também a sombra do estalinismo paira sobre o divertido filme de Barnet. Diante de uma obra assim, como posso eu conciliar o meu prazer estético com o meu repúdio político?



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