por António Cruz Mendes
Todos conhecemos Eisentein, Dovjenko, Dziga Vertov… Mas, Boris Barnet, também ele realizador de
cinema com uma carreira que se inicia nos anos 20, é ainda desconhecido do grande público. E, no
entanto, Georges Sadoul chegou a considerá-lo “o melhor realizador soviético”.
Este filme ajuda-nos a compreender a admiração do historiador de cinema francês. É excelente a
sequência da caótica “limpeza” das escadas do prédio, filmadas em planos de conjunto que realçam a
sua verticalidade, a perspectiva das ruas oferecida pelas linhas serpenteantes dos eléctricos, o recurso
ao movimento acelerado para nos dar a impressão do dinamismo da vida urbana… Particularmente
ousada é a forma como, num momento de grande tensão (Parasha vai ou não ser atropelada pelo
eléctrico?), recorre à imagem parada para introduzir um flash-back que há-de responder a uma cómica
questão: “mas, afinal, donde veio o pato?”. O singular humor de Barnet percorre todo o filme.
Encontrámo-lo, por exemplo, na cena onde Marisha, roída de ciúmes por causa da atenção que Semyon
dá a Parusha, descarrega a sua fúria nos tapetes que tem que bater. Uma atitude logo seguida pela
“rival”, que assim agridem os tapetes em vez de se agredirem uma à outra.
Mas, afinal quem é Parasha (ou Paranya, nome pelo qual também era conhecida)? Trata-se de uma
jovem provinciana perdida na grande cidade. O tio que a deveria receber foi à aldeia no dia em que ela
chegou a Moscovo. Vestida como uma camponesa, com as suas botifarras e a sua roupa sem forma, ela
vê-se perdida, perplexa entre a multidão de desconhecidos, desorientada no meio das ruas por onde
circulam pessoas apressadas, carros e eléctricos. A cena onde para o trânsito para se abraçar ao seu
pato (“aterrorizado”, diz ela), à última hora salvo de ser atropelado, exemplifica a sua situação.
O encontro com Semyion leva-a à casa da Praça Trubnaia onde vai trabalhar como empregada
doméstica para os Galikov, uma casa onde a mulher nada faz e não se aceitam trabalhadoras
sindicalizadas. Contudo, uma série de acidentes permitem-lhe conhecer Fenya, uma sindicalista, e
assistir à representação da “Tomada da Bastilha” no Clube dos Trabalhadores. Aí, vai saltar para o palco
para “salvar” um revolucionário de ser abatido pelo General, episodicamente interpretado pelo
cabeleireiro Galikov. A confusão entre a ficção e a realidade, alarga-se de Parasha a todos os
espectadores, que fazem dela uma heroína, e ao próprio patrão, que a castiga com o despedimento.
No fim do dia das eleições, a multidão dos votantes, dispersa-se em todos os sentidos e Parasha,
filmada em plongé, surge-nos isolada, no meio da praça deserta. Está de novo sozinha e sem-abrigo.
Mas, a fama da sua ousadia e uma confusa troca de nomes, põem a correr o boato de que ela teria sido
eleita, em representação do sindicato das trabalhadoras domésticas, para a Assembleia Municipal. Na
casa da Praça Trubnaia, todos se preparam para a acolher em festa. As escadas da casa estão
finalmente asseadas e até mesmo os “burgueses” das relações da madame Galikov que, antes disso, a
desprezava e explorava, prepararam um pequeno banquete para a receber.
No entanto, desfeito o equívoco, Parasha é de novo expulsa da casa dos antigos parões e são apenas
as mãos ávidas dos convidados dos Galikov que se atiram, num expressivo plongé, sobre as requintadas
vitualhas dispostas na mesa.
A sinopse que reproduzimos mais acima diz-nos que o filme é “uma sátira à pequena-burguesia que
sobrevivera à Revolução”. Na verdade, ela não apenas “sobrevivera”, mas, decerta forma, renascera
durante o período da NEP, a “Nova Política Económica” promovida na URSS entre 1921 e 1928.
Apostou-se, então, na iniciativa dos pequenos produtores e comerciantes para revitalizar uma economia
que se encontrava exangue depois da 1ª Guerra Mundial e da guerra civil que se seguiu à tomada do
poder pelos bolchevistas. No entanto, a implementação da NEP dividiu o Partido. Entre os seus
defensores, destacou-se Bukarine. Na sua opinião, dado o subdesenvolvimento económico da URRS, o
socialismo só poderia avançar aí “a passo de tartaruga”. Outros, como Preobajensky, pelo contrário,
consideravam que a industrialização do país teria que passar obrigatoriamente pela colectivização das
terras, embora defendessem que esse processo fosse realizado à medida que os camponeses fossem
reconhecendo as vantagens das grandes explorações colectivas sobre as pequenas propriedades
individuais. E havia ainda quem visse, no enriquecimento dos NEPmen (os pequenos comerciantes e
proprietários, como Galikov) uma traição aos ideais igualitários da Revolução.
Nesta disputa, o filme de Barnet toma partido. Não é por acaso que a parede da sala da casa dos
Galikov, onde se prepara o banquete de recepção a Parusha, está decorada com a fotografia de
Bukarine. Ora, a data da realização do filme coincide com a da aprovação do 1º Plano Quinquenal que
assinala o fim da NEP e o início de radical processo expropriação das pequenas propriedades que vai
mudar a face do país.
Em 1928, é Estaline quem detém o poder. Primeiro, apoiou-se em Bukarine para afastar Trotsky,
Zinoviev, Kamenev. Preobajensky também não escapou. Mas, muito em breve, o seu antigo aliado vai
tornar-se a sua próxima vítima. O seu retrato afixado na sala dos Galikov é uma subtil introdução à
tragédia que se vai seguir. Bukarine, tal muitos outros daqueles e de outros “velhos bolchevistas”, vai ser
condenado à morte nos tristemente famosos Processos de Moscovo, ocorridos nos anos 30. A
colectivização das terras e a “liquidação como classe” dos Kulaks (os camponeses “ricos”) e dos
NEPmen vai realizar-se rapidamente e com a maior violência. O saldo serão muitos milhões de mortos.
Teria Barnet consciência do papel desempenhado pelo seu filme na preparação da opinião pública para
aquilo que estava para vir? Na última cena, o cabeleiro é informado que vai “passar uns anos na prisão”,
acusado de “ofensas físicas” a Parusha...
A mão negra da Inquisição esconde-se por trás de muitas extraordinárias pinturas do século XVII e,
agora, isso não nos impede de as apreciarmos com gosto. Também a sombra do estalinismo paira sobre
o divertido filme de Barnet. Diante de uma obra assim, como posso eu conciliar o meu prazer estético
com o meu repúdio político?
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