segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Nós (2021) de Nelson Fernandes



por Mário Fernandes

«A animação trata problemas sérios, convida à meditação como qualquer filme de Antonioni ou Buñuel.» 

Vasco Granja 
 
«Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.» 
 
“O Fazedor”, Jorge Luis Borges 
 
Milhares de desenhos, rostos a gerarem-se e a desfazerem-se no desconhecido, cenários fantásticos e mágicos, figuras atormentadas e irónicas: é este o pano de fundo de uma vida a saltar os muros das percepções comuns. Anos de labor incansável de um fazedor discreto, que não integra os circos merdiáticos, no país das galerias ocupadas por quem tem mais padrinhos que talento, no país das rotundas assinadas pela gorda dos Galos de Barcelos. 
 
Nas mãos que pensam deste fazedor, a animação está pelas horas da poesia, sem lucro material, apenas com a satisfação de gerar vida e movimento, frame a frame, num ofício de amor e paciência, demorado e atento. Falo obviamente de Nelson Fernandes (Zina), um artífice refinado em contra-corrente, cuja animação nada tem que ver com exércitos de assalariados, bonecas, hologramas, afterefects, estúrdia de coloridos do milionário Wes Anderson. 
 
Zina, nos antípodas, afirma a veia orgânica dos materiais e da matéria, e logo a poesia, fiscalidade metafórica, que deles retira. Não o mundo cor-de-rosa e postiço do guloso americano, mas o desenho genuinamente animado, na sua concretize e abstracção, a expressão plástica da condição humana e o respirar de uma íntima verdade, que se inscreve na arte moderna, tal como a definiu Baudelaire: «Criar uma magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objecto e o sujeito, o mundo exterior do artista e o artista ele próprio.» 
 
Em Nós, que tanto remete para o “nós” como inquietação colectiva como para os “nós” da solidão que este filme tenta desatar, nada pousa tranquilamente, em descanso; tudo é interrogação muda aos céus, aos mares e aos desertos. Estamos perante a recordação de um sonho catastrófico, em “plano-sequência”, do Homem emparedado na sua loucura? Uma metáfora do artista martirizado, Ícaro de asas cansadas que cai no real quotidiano, e do silêncio a que são votados os proscritos? Uma casa de imagens saqueada, destroçada, simbolizando o drama cósmico do Homem? Um requiem pelo frágil bote da humanidade, afundado nos abismos de plástico (materialmente, literalmente) do oceano? A estupefacção do Homem face à sua circunstância e ao momento histórico? Uma viagem à procura de um outro mundo? 
 
Neste filme sobre a incomunicabilidade, a angústia face ao insondável e a incapacidade humana de lidar com o desconhecido sem causar destruição, a fronteira muda constantemente entre a vida normal e um pesadelo que parece ser mais real. A textura dramática de papel, pele convulsa do filme, é a sagração trémula da ruína, miséria e solidão, união frágil da perenidade e da morte. 
 
No cimo do campanário, força cósmica, um sino plangente (por quem dobra?) expande-se, desce, ecoa, leva a notícia aos confins do silêncio. Uma delicada flor perde as pétalas a um sopro de vento, inocência massacrada por um tanque de guerra. Os relógios interiores do Homem e da flor batem em uníssono com o relógio exterior da torre sineira. O Homem, como a flor no deserto, um ponteiro de sombra. Da raiz ao frutificar das chamas. 
 
Cenas que exemplificam o poder da perfuração desta animação dramática, explosiva, um universo de agitação e malogro, e que projectam as ansiedades comuns desde que o homem é homem, as calamidades domésticas, colectivas e planetárias feitas a mesma carne, o mesmo papel, num preto-e-branco que deflagra como um grito queimado. 
 
Neste filme de destroços e detritos, de cosmos e intimidade, de voos e quedas, a várias mudanças, vertiginoso até à morte em lume brando, sem apelo, o Homem tanto pode ser levantado do chão como esmagado sob o peso de acontecimentos que fazem tremer o mundo. 
 
Chegamos ao dilacerante momento final. Caído dos astros, janelas vazadas pela câmara pergunte , o Homem vinga-se cortando a planta que regara e, já um outro (castigo?), prostra-se no deserto. Da escuridão mais funda da condição humana, sobe uma árvore. Ecce Homo. Pièta. Irrupções de fumo. Sinais de fumo. Veladas cintilações. Ao regaço do fim. No estertor do fim. 
 
P.S.: 24 de Dezembro. Estou a vê-lo na Rua da Cale, nº 82, ao lume de uma mesa de luz onde nascem as formas cinematográficas, como se fosse o seu presépio. Aí está Zina (até quando este país vai ignorá-lo?), recortando as chamas, desafiando a noite, para um clarão breve.

in «Jornal dos Encontros Cinematográficos» de 2021



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