quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Crazy Horse (2011) de Frederick Wiseman



por Alexandra Barros

As obras de Frederick Wiseman, reputado realizador de documentários, exploram maioritariamente a civilização americana e o funcionamento das suas instituições. Wiseman parte para um filme sem ideias pré-concebidas e os filmes parecem querer deixar os juízos críticos para o espectador. Mas, de acordo com o próprio, os filmes não são nem poderiam ser imparciais e representam a sua versão da realidade. Daí não gostar que sejam classificados como documentários. 

Crazy Horse é o seu 39º filme e a escolha do tema causou alguma surpresa. Em resposta a esta reacção, disse sentir-se cativado pelos diferentes usos a que o corpo humano é sujeito, e que lhe interessa fazer filmes sobre tantos diferentes aspectos da experiência humana quanto lhe for possível. 
 
O Crazy Horse é um clube parisiense, que apresenta espectáculos de cabaret, com influências do burlesco e das artes circences contemporâneas. Tornou-se um ponto icónico da Paris turística nocturna e autopromove-se como artístico, sofisticado, avant-garde, glamoroso e elegante. 
 
O filme acompanha a montagem de um novo espectáculo, concebido pelo director de produção e coreógrafo do Crazy Horse, Philippe Decouflé, assistido pelo director artístico, Ali Mahdavi, dois perfeccionistas assumidos, entre os quais existe uma tensão palpável. Guarda-roupa, luzes, cenários, coreografia, tudo é sujeito a um meticuloso e coordenado desenvolvimento. As bailarinas, muitas das quais com formação em bailado clássico, estão sujeitas a um treino exigente e regrado. Neste filme não há histórias individuais (como é aliás característico da restante obra de Wiseman) embora a intensidade de Mahdavi e a sua personalidade exuberante acabe por torná-lo, de alguma forma, uma excepção. Mahdavi é assumidamente um obssessivo-compulsivo cuja obsessão na altura em que o filme foi feito era o Crazy Horse. Entre as obsessões anteriores figuram: Marlene Dietrich, Yves Saint Laurent e Helmut Newton. Assistiu 40 vezes ao primeiro espectáculo que viu do Crazy Horse, “arrepiando-se” tanto como com os filmes de Fassbinder, Fellini ou Michael Powell. Decouflé, que coreografou as cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992 e a cerimónia de abertura dos 50 anos do Festival de Cannes, ambiciona condições de trabalho adequadas aos elevados standards de qualidade do Crazy Horse, tentando (sem sucesso) fechar o clube enquanto prepara o novo espectáculo. Tenta também que seja reconhecido, por parte dos accionistas, que um trabalho de criação artística como o seu não se coaduna com prazos apertados ou deadlines definitivas. O espectáculo tem actos “sofisticados”, como o que é executado ao som de uma versão langorosa de Toxic, de Britney Spears: um espelho divide horizontalmente um palco totalmente negro, para criar imagens caleidoscópicas com braços e pernas que parecem ter-se libertado das suas bailarinas. Noutro acto, há um strip executado ao som de Antony and the Johnsons onde, nos meticulosos jogos de luz e sombra, percebemos a que aspira Decouflé, quando afirma ser um criador da arte da sedução, do desejo, do sonho. Mas apesar das pretensões de Decouflé e Mahdavi, a fasquia nem sempre está tão alta. Algumas coreografias resvalam na vulgaridade e as canções no pimba. 
 
Tal não impede que os dois ou três espectáculos diários do clube estejam sempre lotados. Os clientes (mais homens que mulheres, naturalmente, mas 30% do público são mulheres em casal ou em grupo), bem compostos, têm ar de quem está ali por ter lido num qualquer Guia Turístico de Paris que não devia perder o espectáculo sexy, artístico e com classe deste famoso cabaret. Mas face à hipersexualização do mundo actual, os afamados actos de sedução do Crazy Horse deixaram de ser avant e não são realmente crazy. Estarão mais próximos da disciplina de controlo e postura de Dressage do que com qualquer galope louco. 

Em sintonia com o ar do tempo, em que o lazer e as actividades recreativas e culturais se tornaram produtos comerciais, os espectáculos do Crazy Horse são vendidos em pacotes mais ou menos exclusivos, de acordo com o que se pode gastar. São uma experiência icónica da cultura francesa para os turistas endinheirados acompanharem com champagne superieur e amuse-bouches, e levarem documentada pela fotografia-lembrança incluída apenas nos pacotes de luxo. 

Com o crescimento do turismo de massas, a Disneylização de espaços e experiências “típicos” tem-se vindo a alastrar em todo o mundo, das grandes cidades aos pequenos lugares. Património ma- terial e imaterial é convertido em mercadoria pronta a consumir, de preferência com bilhete reservado, para evitar filas de espera. 
 
Que transformações sofreu o Crazy Horse neste processo? O que procuravam os seus clientes iniciais e o que procuram os actuais? Ser seduzido ou fazer tick numa recomendação do Guia Turístico? Fantasia sexual ou turismo cultural? Embora as respostas sejam possivelmente diferentes, no fundo, todos estarão unidos por um mesmo lugar comum: fantasia, sonho, a evasão do quotidiano e da vida real.



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