por Alexandra Barros
As obras de Frederick Wiseman,
reputado realizador de documentários, exploram maioritariamente a civilização americana e
o funcionamento das suas instituições. Wiseman parte para um
filme sem ideias pré-concebidas
e os filmes parecem querer deixar
os juízos críticos para o espectador. Mas, de acordo com o próprio,
os filmes não são nem poderiam
ser imparciais e representam a sua
versão da realidade. Daí não gostar que sejam classificados como
documentários.
Crazy Horse é o seu 39º filme e
a escolha do tema causou alguma surpresa. Em resposta a esta
reacção, disse sentir-se cativado
pelos diferentes usos a que o corpo humano é sujeito, e que lhe
interessa fazer filmes sobre tantos
diferentes aspectos da experiência
humana quanto lhe for possível.
O Crazy Horse é um clube parisiense, que apresenta espectáculos de cabaret, com influências do
burlesco e das artes circences contemporâneas. Tornou-se um ponto
icónico da Paris turística nocturna
e autopromove-se como artístico,
sofisticado, avant-garde, glamoroso e elegante.
O filme acompanha a montagem
de um novo espectáculo, concebido pelo director de produção e
coreógrafo do Crazy Horse, Philippe
Decouflé, assistido pelo director
artístico, Ali Mahdavi, dois perfeccionistas assumidos, entre os
quais existe uma tensão palpável.
Guarda-roupa, luzes, cenários, coreografia, tudo é sujeito a um meticuloso e coordenado desenvolvimento. As bailarinas, muitas das
quais com formação em bailado
clássico, estão sujeitas a um treino exigente e regrado. Neste filme
não há histórias individuais (como
é aliás característico da restante
obra de Wiseman) embora a intensidade de Mahdavi e a sua personalidade exuberante acabe por
torná-lo, de alguma forma, uma
excepção. Mahdavi é assumidamente um obssessivo-compulsivo
cuja obsessão na altura em que o
filme foi feito era o Crazy Horse.
Entre as obsessões anteriores
figuram: Marlene Dietrich, Yves
Saint Laurent e Helmut Newton.
Assistiu 40 vezes ao primeiro espectáculo que viu do Crazy Horse,
“arrepiando-se” tanto como com
os filmes de Fassbinder, Fellini ou
Michael Powell. Decouflé, que coreografou as cerimónias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1992 e
a cerimónia de abertura dos 50
anos do Festival de Cannes, ambiciona condições de trabalho adequadas aos elevados standards
de qualidade do Crazy Horse,
tentando (sem sucesso) fechar o
clube enquanto prepara o novo espectáculo. Tenta também que seja
reconhecido, por parte dos accionistas, que um trabalho de criação
artística como o seu não se coaduna com prazos apertados ou deadlines definitivas. O espectáculo tem
actos “sofisticados”, como o que é
executado ao som de uma versão
langorosa de Toxic, de Britney
Spears: um espelho divide horizontalmente um palco totalmente
negro, para criar imagens caleidoscópicas com braços e pernas que
parecem ter-se libertado das suas
bailarinas. Noutro acto, há um
strip executado ao som de Antony
and the Johnsons onde, nos meticulosos jogos de luz e sombra,
percebemos a que aspira Decouflé, quando afirma ser um criador
da arte da sedução, do desejo, do
sonho. Mas apesar das pretensões
de Decouflé e Mahdavi, a fasquia
nem sempre está tão alta. Algumas coreografias resvalam na vulgaridade e as canções no pimba.
Tal não impede que os dois ou três
espectáculos diários do clube estejam sempre lotados. Os clientes
(mais homens que mulheres, naturalmente, mas 30% do público são
mulheres em casal ou em grupo),
bem compostos, têm ar de quem
está ali por ter lido num qualquer
Guia Turístico de Paris que não
devia perder o espectáculo sexy,
artístico e com classe deste famoso cabaret. Mas face à hipersexualização do mundo actual, os afamados actos de sedução do Crazy
Horse deixaram de ser avant e não
são realmente crazy. Estarão mais
próximos da disciplina de controlo
e postura de Dressage do que com
qualquer galope louco.
Em sintonia com o ar do tempo, em
que o lazer e as actividades recreativas e culturais se tornaram produtos comerciais, os espectáculos
do Crazy Horse são vendidos em
pacotes mais ou menos exclusivos, de acordo com o que se
pode gastar. São uma experiência
icónica da cultura francesa para os turistas endinheirados acompanharem com champagne superieur e
amuse-bouches, e levarem documentada pela fotografia-lembrança incluída apenas nos pacotes de
luxo.
Com o crescimento do turismo
de massas, a Disneylização de
espaços e experiências “típicos”
tem-se vindo a alastrar em todo o
mundo, das grandes cidades aos
pequenos lugares. Património ma-
terial e imaterial é convertido em
mercadoria pronta a consumir, de
preferência com bilhete reservado,
para evitar filas de espera.
Que transformações sofreu o Crazy Horse neste processo? O que
procuravam os seus clientes iniciais e o que procuram os actuais?
Ser seduzido ou fazer tick numa
recomendação do Guia Turístico?
Fantasia sexual ou turismo cultural? Embora as respostas sejam
possivelmente diferentes, no fundo, todos estarão unidos por um
mesmo lugar comum: fantasia,
sonho, a evasão do quotidiano e
da vida real.
Sem comentários:
Enviar um comentário