sexta-feira, 14 de outubro de 2022

L'arbre, le maire et la médiathèque (1993) de Éric Rohmer



por António Cruz Mendes

O que fazer de terreno abandonado, propriedade do pequeno município de St. Juire, vizinha da bela igreja medieval no centro da povoação? Eis a questão em torno da qual se desenvolve este filme, inserido no ciclo “Lugares Comuns”, tema dos Encontros da Imagem de 2022. Sob as respostas possíveis, escondem-se interesses particulares que, no entanto, como sempre acontece nos filmes de Rohmer, nem sempre são assumidos de uma forma explícita, mas surgem envoltos em “teorias”. E é nisso que, na minha opinião, reside o humor, a ironia, que perpassa todos os seus filmes: o que está em causa são propósitos muito práticos, mas o que se debate são “ideias", longamente argumentadas. 

Neste caso, debate-se, por exemplo, a relação campo-cidade. Onde é preferível viver? Nos tempos modernos, no campo ainda haverá camponeses? Na época do tele-trabalho, actividades tipicamente urbanas não poderão trasladar-se para o campo, beneficiando com outra qualidade de vida muitos trabalhadores? E a chegada de novos residentes, ou até mesmo de turistas, não vai dinamizar a economia local, beneficiando os antigos residentes? Todas as ideias se definem melhor quando se afirmam contra um opositor que as contrariam e é Bérénice Beaurivage, a companheira de Julien Dechaumes, o Presidente da Câmara de St. Juire, quem vai desempenhar esse papel. A contradição cidade-campo resolve-se levando a cidade para o campo, como defende Julien, ou o campo para a cidade, como defende Bérénice? 

Mais prosaicamente, sabemos que o simpático Presidente, derrotado nas eleições regionais, pretende apresentar-se como candidato do PSF às próximas eleições legislativas. Para isso, tem de vencer outros prováveis candidatos, apresentando-se à direcção do seu Partido como sendo aquele que mais apoio reúne entre a população do seu círculo eleitoral. Portanto, como demonstrá-lo? 

Estamos no tempo de François Mitterrand, que quis assinalar a sua passagem pela Presidência da República com a realização de um conjunto de grandiosos projectos arquitectónicos. O Instituto do Mundo Árabe, o Grand Arche de La Défense, as obras do Louvre assinaladas pela famosa pirâmide, o Parque de La Villette... Por que não realizar no seu próprio município, algo de semelhante? Surge assim o projecto da Mediateca, um imenso centro cultural e desportivo, com uma dimensão pouco adequada às verdadeiras necessidades dos actuais habitantes daquela pequena povoação. 

Evidentemente obra de um prestigiado arquitecto, o projecto de Dechaumes conta com defensores e opositores. Entre estes, destaca-se Marc Rossignol. A sua tese: a identidade de um lugar, a sua beleza, invalidam qualquer intervenção, mesmo que ela se pretenda respeitosa da envolvente natural ou construída. Uma majestosa árvore está ameaçada pela construção do grande complexo cultural e desportivo que o Presidente ambiciona construir. Mesmo estando ela, talvez, velha e doente, merecerá a pena condená-la para que possa ser construído um estacionamento para os automóveis dos futuros visitantes da mediateca? 

Aqui ecoa um outro debate travado, entre Julien e Bérénice, onde intervêm também Blandine Lenoir, jornalista, e Regis Lebrun-Blondet, director de uma revista política mensal e primo por afinidade de Dechaumes: serão os ecologistas de esquerda ou reaccionários em oposição radical à modernidade e ao progresso? As suas ideias, não se conjugam elas perfeitamente com a política cultural da direita baseada na intransigente defesa da tradição? Talvez as razões ecologistas possam ser pontualmente invocadas tanto pela direita e como pela esquerda, quando isso mais lhes convém... Não é o próprio Regis Lebrun-Blondet, também ele, “ecologista” quando se trata de proteger a casa que tem na província? E, afinal, o que é “ser de esquerda”? Será Dechaumes, senhor de uma magnífica propriedade, “de esquerda”, como ele próprio pretende, ou comportar-se-á ele como um grand seigneur, um “janota”, como diz Bérénice, guia e protector dos seus pobres e incultos munícipes? 

E Rossignol, que não é um “filho da terra”, mas alguém que nela se refugiou dos tempos modernos que abomina, defenderá ele interesses próprios ou os daqueles que nessa aldeia residem? Em todo o caso, as concepções do “bem comum” de Dechaumes e de Rossignol parecem inconciliáveis. 

Como é que se há-de resolver a questão? A solução, que parece ser simples, foi apresentada por uma criança, Zoé, a filha do professor, e acabou por se concretizar, em parte por causa de um artigo da revista de Lebrun-Blondet. Artigo esse que foi escrito porque, por mero acaso, Blandine pôde presenciar uma entrevista de Dechaumes com o director da revista; entrevista essa que a levou a escrever um artigo sobre os “jovens turcos” do PSF; artigo que apareceu truncado e deformado, por iniciativa do director que, movido por estranhas razões, o transformou numa reportagem sob o impacto da mediateca na vida de St. Juire, onde se destaca o depoimento do professor Rossignol; e que, pôde ser assim publicado porque, na altura, Blandine, estava longe de Paris, a acompanhar uma missão da UNICEF ao Senegal... 

A história termina em happy-end: O projecto megalómano não se concretiza e Dechaumes abre as portas da sua propriedade aos habitantes da aldeia que aí confraternizam alegremente. Mas, também poderia acabar de outra maneira. E também aqui Rohmer expõe, sub-repticiamente, uma outra teoria, enunciada em voz-off. Ouvimo-la num discurso, aliás bastante redundante e aborrecido, num rádio, em casa de Blandine, enquanto, em cena, se passa algo que nos distrai, sem qualquer relação com ele. Trata-se dos “imponderáveis na história”. Logo no início do filme, vemos o professor Rossignol a explicar aos seus alunos a função da conjunção “se”. É por ela que se iniciam os títulos dos capítulos em que o filme se divide: “E se...”



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