sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Jochukko (1955) de Tomataka Tasaka



por Duarte Mata

Se o relógio não me enganou, o meu enquadramento favorito de Jochukko (O Menino da Ama, 1955) encontra-se no minuto 46. Trata-se de um plano de conjunto em picado que reúne uma mulher e um homem. Ela é a sobrinha da dona da casa que é o espaço central do filme, ele um visitante externo que não voltaremos a ver após esta cena. Ela ocupa o centro da composição, ele a zona próxima da margem direita. É uma conversa tranquila? A forma como o plano está filmado é o suficiente para nos indicar que não. Como? Neste enquadramento, está colocado graficamente um corrimão de escadas sobre o homem, este último visível à audiência apenas por entre as hastes verticais de madeira do dito elemento doméstico decorativo. A singularidade imagética deixa o espectador em estado de alerta: “Porquê um plano picado?”, “Porquê o corrimão sobreposto ao visitante?”, “Porquê esta imagem com o seu quê de incomodativo?” Um cineasta que sabe o que faz nunca filmaria um plano destes aleatoriamente, e é bom que Tomotaka Tasaka tenha uma razão para fazê-lo. 
 
E Tasaka tem essa razão. Como o decorrer da cena demonstrará, este visitante é, na realidade, um embusteiro, andando de casa em casa com manobras de intimidação para forçar a venda de produtos inúteis. O corrimão sugeria, então, já um antagonismo entre as duas personagens, tanto pela rejeição em ambas compartilharem um enquadramento visualmente desobstruído, como pelo facto de as hastes dificultarem qualquer espécie de identificação com a figura masculina. Ao mesmo tempo, o ângulo de câmara é sugestivo de uma certa opressão ou vulnerabilidade, neste caso, aquela sentida pela figura feminina. A desconsolação imagética inicial ver-se-á, deste modo, confirmada pela narrativa, associando-se a inquietação espacial da imagem ao desconforto emocional da jovem. Momentos entusiasmantes de analisar como este há muitos em Jochukko, mas referir a perfeita sintonia de forma e substância não é dizer tudo (nem, provavelmente, o mais importante) sobre aquele que é definido por Donald Richie e Joseph L. Anderson, em The Japanese Film: Art and Industry, como “o retrato definitivo das milhares de jovens raparigas que vêm das áreas agrícolas deprimidas do Norte, todos os anos, para se tornarem no novo suprimento de empregadas domésticas de Tóquio.” 
 
Trata-se de um filme do género shomin-geki – “sobre as vidas de pessoas comuns, particularmente as de classe média-baixa” (Richie/Anderson outra vez) – onde, não mostrando mais do que eventos quotidianos, Tasaka é capaz de traçar cuidadosamente um retrato psicológico e afectivo das personagens, assim como sociológico e económico de um país (o Japão do pós-guerra, no caso). É um universo íntimo a espelhar, na sua modesta escala, um outro mais abrangente, o particular como reverberação do geral, transformando uma casa num observatório de questões classistas com as suas dicotomias campo/cidade, tradição/modernidade, sempre de maneira simples, leve e justa. 
 
Um exemplo para o parágrafo anterior? Numa cena onde a já referida sobrinha e a ama do título, Hatsu, vão passear ao mercado, estas dialogam brevemente sobre o preço das salsichas e dos rabanetes, nomeadamente o facto de o das primeiras ser dez vezes mais caro que o dos segundos. “Não é justo para o rabanete! E os pobres dos agricultores? Têm tanto trabalho a cultivá-los.”, comenta indignada a criada. Resposta da sobrinha: “A salsicha é uma comida modernamente preparada e o seu valor é naturalmente diferente do rabanete, onde só é preciso arrancá-lo do solo.” Neste curto diálogo estão colocados, de jeito espirituoso e sem discursos pregadores, todos os contrastes previamente referidos, abordando metaforicamente como o cidadão “moderno” (e, por consequência, “urbano”) é ilusoriamente encarado como superior ao mais “tradicional” (e, por consequência, “rural”) por beneficiar de uma educação mais sofisticada e de uma aparência que envolve mais “preparação”. É uma das várias exibições da condescendência cosmopolitana que, como o realizador mostrará numa das últimas cenas (aquela na neve), de nada vale quando os cidadãos citadinos se confrontam com a força da Natureza no campo, esse espaço onde o ser humano está despido das comodidades e aparências para melhor descobrir o seu verdadeiro valor. 
 
Estas dinâmicas sociais estão presentes, em maior ou menor grau, desde a primeira cena, decorrida no interior de um metro com Hatsu a observar admirada uma passageira à sua frente, uma mulher adulta enfeitada com um colar, brincos e outros adereços (“modernamente preparada”, portanto), anunciando já o ponto-de-vista do filme inteiro: o olhar exterior da província sobre a metrópole. A câmara da Tasaka está, então, a partir do começo, do lado da criada, e é nele que explorará as várias microdinâmicas dentro do lar, sendo a mais importante aquela estabelecida com a criança mimada, irascível e egoísta da família dos patrões, de quem Hatsu se tornará a genuína figura didáctica. Um exemplo: uma birra provocada pelo rapaz para obter uma pressão de ar (cuja origem está numa outra cena de exposição exclusivamente visual e montagem de efeito kuleshoviano, com o rapaz a contemplar atentamente as balas, espingarda e aves abatidas de um caçador) só será resolvida pela intervenção da ama ao apresentar um método mais arcaico para capturar passarinhos. Comprar uma arma letal para matar animais? Não. Ao invés, construir uma armadilha segura com as suas mãos e escolher cuidar deles. A agressividade masculina, infantil e urbanita é, assim, vencida pela gentileza feminil, matura e campestre. É em instantes como este que melhor se enaltecem a cumplicidade silenciosa, confiança mútua e proximidade discreta entre educadora e educando (e não é por acaso que as sequências entre eles são aquelas onde a câmara está mais perto dos sujeitos). 
 
Há muito mais que se poderia discutir. A forma quase ozuiana (sem o rigor composicional tão característico do colosso nipónico) como a câmara estuda as personagens, adereços e objectos por entre as portas internas e divisões mais ou menos vazias desse componente fulcral narrativo que é o espaço doméstico; a batalha entre as crianças com o uso expressionista do som de um avião em pleno voo sobre elas; a conversa amarga final entre criada e patroa, com uma sucessão de curtos travellings rumo à face magoada da protagonista enquanto esta atravessa um dilema moral: revelar a verdade à matriarca ou manter a lealdade junto do petiz; e a última cena, descendente quase certa da do Modern Times (Tempos Modernos, 1936) de Chaplin (a caminhada determinada rumo a um futuro incerto) e ascendente totalmente impossível da de Le notti di Cabiria (As Noites de Cabíria, 1957). “Totalmente impossível” porque, dada a relativa obscuridade da obra de Tasaka no Ocidente, é pouco provável que Fellini a tenha visto. E, no entanto, ambas têm nos seus desfechos um plano fechado do rosto da heroína e do seu sorriso resignado passadas as provações, uma imagem consoladora e esperançosa que anuncia a superação sobre o que veio e há-de vir. Que dois finais pareçam tão semelhantes sem nunca um ter influenciado o outro é qualquer coisa como um milagre. O tipo de milagre misterioso de que só filmes como Jochukko, Cabiria, Modern Times e outras obras-primas são feitas.

in «"O Menino da Ama": a cidade e as serras nipónicas», À Pala de Walsh, 15 de Novembro de 2021. 



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