por António Cruz Mendes
Na sequência do ciclo “A Literatura e o Cinema Francês”, exibimos hoje
Diário de Uma Criada de Quarto, a adaptação de Luis Buñuel do
romance de Octave Mirbeau.
Logo nas primeiras linhas do romance, lemos uma entrada do Diário
de Célestine: “Hoje, 14 de Setembro, às três da tarde, por um tempo
ameno, cinzento e chuvoso, dei entrada no meu novo emprego. Em dois
anos, é já o décimo segundo. Já não falo dos que tive nos anos anteriores. Não tinham conto possível. Bem me posso gabar de ter visto por
dentro muita casa, muita cara... muita alma imunda...”. Em Paris ou na
província, em casas aristocratas ou burguesas, Célestine experimenta
o menosprezo dos patrões, que tratam a “criadagem” como coisas, e
testemunha as perversões e ódios dos abastados, numa França onde o
reacionarismo monárquico, o nacionalismo revanchista e o anti-semitismo fazem o seu caminho. A França do “caso Dreyfus”.
Luís Buñuel, adapta o romance permitindo-se algumas alterações. Os
acontecimentos já não se passam na viragem do século, mas trinta anos
mais tarde, concentra-os numa só casa e acrescenta-lhes os episódios
do velho fetichista e da violação e assassinato da pequena Claire. Mas,
o propósito de denúncia social do romance de Mirbeau, continua presente, ainda que tratado sob a óptica singular do cinema de Buñuel,
com a sua ênfase particular na feição erótica dos acontecimentos narrados.
A casa dos Monteil é um microcosmos que a lupa de Buñuel nos vai desvendando. Monteil dedica-se à caça e compensa a frigidez da sua esposa assediando e engravidando as criadas que passam por lá. Madame
Monteil, que se dedica a velar pelos seus preciosos objectos decorativos, não tem ciúmes do marido. De facto, as suas aventuras têm até a
vantagem de ele, “demasiado forte e vigoroso”, a deixar mais facilmente
em paz. O diálogo com o padre esclarece-nos acerca da moral sexual
da Igreja. Porém ela exige que elas não lhe tragam despesas. O seu pai
é um velho “encantador”, apenas tem os botins das mulheres como fetiche sexual. E Joseph, cocheiro e guarda-caça, é um militante da Action
Française que aspira à condição de dono de um botequim.
Pelo meio, uma criança é violada e morta. A tentativa de incriminar
Joseph engendrada por Célestine não resulta. Falhado o assalto a Célestine, Monteil contenta-se com a pobre Muni. E Célestine emancipa-se
da sua condição de criada, substituindo a velha Rose na cama de um
caricatural capitão, de quem aceita um pedido de casamento.
Na sequência final, uma manifestação da Action Française desfila pelas
ruas, passando à porta do botequim de Joseph, bradando contra os
“metecos” – os judeus e os imigrantes. Às suas palavras de ordem,
Joseph acrescenta uma outra, desde logo adoptada: “Viva Chiappe!”
Buñuel não quis deixar escapar esta oportunidade para se vingar do
prefeito da polícia de Paris que, em 1931, a instâncias da extrema-direita, mandou fechar a sala de cinema onde se exibia o seu segundo
filme, A Idade do Ouro.
O filme termina com uma imagem de um céu ameaçador, carregado de
nuvens negras. É difícil ignorar a sua actualidade.
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