sábado, 12 de novembro de 2022

Le Journal d'une femme de chambre (1964) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

Na sequência do ciclo “A Literatura e o Cinema Francês”, exibimos hoje Diário de Uma Criada de Quarto, a adaptação de Luis Buñuel do romance de Octave Mirbeau. 

Logo nas primeiras linhas do romance, lemos uma entrada do Diário de Célestine: “Hoje, 14 de Setembro, às três da tarde, por um tempo ameno, cinzento e chuvoso, dei entrada no meu novo emprego. Em dois anos, é já o décimo segundo. Já não falo dos que tive nos anos anteriores. Não tinham conto possível. Bem me posso gabar de ter visto por dentro muita casa, muita cara... muita alma imunda...”. Em Paris ou na província, em casas aristocratas ou burguesas, Célestine experimenta o menosprezo dos patrões, que tratam a “criadagem” como coisas, e testemunha as perversões e ódios dos abastados, numa França onde o reacionarismo monárquico, o nacionalismo revanchista e o anti-semitismo fazem o seu caminho. A França do “caso Dreyfus”. 
 
Luís Buñuel, adapta o romance permitindo-se algumas alterações. Os acontecimentos já não se passam na viragem do século, mas trinta anos mais tarde, concentra-os numa só casa e acrescenta-lhes os episódios do velho fetichista e da violação e assassinato da pequena Claire. Mas, o propósito de denúncia social do romance de Mirbeau, continua presente, ainda que tratado sob a óptica singular do cinema de Buñuel, com a sua ênfase particular na feição erótica dos acontecimentos narrados. 

A casa dos Monteil é um microcosmos que a lupa de Buñuel nos vai desvendando. Monteil dedica-se à caça e compensa a frigidez da sua esposa assediando e engravidando as criadas que passam por lá. Madame Monteil, que se dedica a velar pelos seus preciosos objectos decorativos, não tem ciúmes do marido. De facto, as suas aventuras têm até a vantagem de ele, “demasiado forte e vigoroso”, a deixar mais facilmente em paz. O diálogo com o padre esclarece-nos acerca da moral sexual da Igreja. Porém ela exige que elas não lhe tragam despesas. O seu pai é um velho “encantador”, apenas tem os botins das mulheres como fetiche sexual. E Joseph, cocheiro e guarda-caça, é um militante da Action Française que aspira à condição de dono de um botequim. 

Pelo meio, uma criança é violada e morta. A tentativa de incriminar Joseph engendrada por Célestine não resulta. Falhado o assalto a Célestine, Monteil contenta-se com a pobre Muni. E Célestine emancipa-se da sua condição de criada, substituindo a velha Rose na cama de um caricatural capitão, de quem aceita um pedido de casamento. 

Na sequência final, uma manifestação da Action Française desfila pelas ruas, passando à porta do botequim de Joseph, bradando contra os “metecos” – os judeus e os imigrantes. Às suas palavras de ordem, Joseph acrescenta uma outra, desde logo adoptada: “Viva Chiappe!” Buñuel não quis deixar escapar esta oportunidade para se vingar do prefeito da polícia de Paris que, em 1931, a instâncias da extrema-direita, mandou fechar a sala de cinema onde se exibia o seu segundo filme, A Idade do Ouro

O filme termina com uma imagem de um céu ameaçador, carregado de nuvens negras. É difícil ignorar a sua actualidade.



Sem comentários:

Enviar um comentário