por Alexandra Barros
Trabalhos de Casa é uma investigação em forma de filme (nas palavras de Kiarostami) sobre essa
ferramenta pedagógica. Partindo das suas próprias dificuldades em ajudar os filhos a realizar as suas
tarefas escolares e sem ideias pré-definidas sobre o que o filme deveria ser, Kiarostami decide interrogar
alunos do ensino primário de uma escola iraniana acerca do tema.
O filme, com o formato de um documentário, centra-se em grandes planos desses alunos captados
durante a série de entrevistas. Estas imagens são recorrentemente intercaladas por imagens do operador
de câmara a apontar-nos/-lhes a sua lente, uma decisão de montagem tomada por Kiarostami em função
das declarações, nem sempre sinceras, que recolheu. Caso exemplar é o da reacção à pergunta “Preferes
ver desenhos animados na televisão ou fazer os trabalhos de casa?”. Todas as crianças declaram a sua
preferência pelos últimos. Estas respostas, tão claramente distorcidas pela vontade de “ficar bem na
fotografia”, colocam em evidência o lado performativo dos depoimentos, induzido pelas circunstâncias em
que decorrem. O efeito do observador, fenómeno com especial relevância na física quântica, designa as
modificações que o processo de observação produz no objecto observado. Por exemplo, para que um
electrão possa ser detectado é necessário que um fotão interaja com ele; porém, essa interacção altera
necessariamente o estado inicial do electrão. Analogamente, por estarem sob o “olhar” de uma câmara
de filmar, o comportamento dos filmados está sujeito ao efeito do observador.
Mas não é só (nem principalmente) por causa do efeito do observador que a “verdade” de um
documentário é dúbia. Mais do que o que é filmado, o que nos é dado a ver é determinado por como é
filmado. No início do filme, vemos todos os alunos da escola alinhados no pátio para a endoutrinação
diária. Em resposta a uma voz de comando, as crianças clamam em uníssono louvores aos seus líderes
religiosos e políticos e dirigem ataques agressivos aos inimigos e ao mundo dos “infiéis”. Captadas em
grandes planos, as imagens sugerem um grupo coeso, convicto e disciplinado. No final do filme,
regressamos aos “cânticos” de adoração e ódio, mas agora a câmara aproxima-se das crianças e o som
é eliminado. O que vemos então não podia estar mais longe do que vimos anteriormente. Esta cena, que
a censura desejou suprimir, fala demasiado alto e o que diz não fica bem na “fotografia oficial”.
O filme abre janelas para a sociedade iraniana e através delas avistamos: pais preponderantemente
incapazes de ajudar os filhos nas suas tarefas escolares por serem analfabetos ou não estarem
familiarizados com os novos métodos e conteúdos educativos; ambientes escolar e familiar fortemente
marcados pelo autoritarismo, repressão, medo; uma sociedade que perpetua e incentiva o belicismo e a
violência física e emocional. Todos os miúdos sabem o que é um castigo, e já todos foram sujeitos a actos
de punição. Aliás, os castigos corporais, exercidos pelos pais sobre os filhos, são vistos pelos últimos
como necessários e desejáveis (ou pelo menos, assim o afirmam). Por outro lado, as crianças
desconhecem o que é um incentivo e nunca foram encorajadas ou recompensadas, mesmo quando
tiveram excelentes resultados.
Também assistimos a duas entrevistas feitas a pais. Um deles, muito informado sobre os métodos
educativos de vários outros países (que considera mais civilizados), discorre longamente sobre os danos
e inconvenientes dos TPC[1]. O tema vem sido debatido há décadas, por todo o mundo, com diversas
objeções aos TPC a serem apontadas consistentemente. É o caso do agravamento da desigualdade de
oportunidades provocado pelos mesmos. Devido à diversidade de situações sócio-económicas das
famílias dos alunos, existirão crianças com boas condições materiais e adequado apoio educativo familiar
na realização das tarefas escolares, enquanto outras ver-se-ão em desvantagem por não disporem nem
dos meios físicos e materiais necessários (espaço, equipamento informático, ...), nem de ajuda educativa.
Outra grande questão, transversal a todos os meios sócio-económicos, é o atrito e a tensão que os TPC
provocam entre pais e filhos. No final do dia de trabalho, os pais estão pouco disponíveis (por causa dos
afazeres domésticos, por exemplo) e sem paciência ou energia para acompanhar a realização dos TPC.
Os filhos, depois de muitas horas passadas em salas de aula, querem estar com os amigos e a família,
dedicar-se a hobbies e a actividades extra-curriculares ou “simplesmente” divertirem-se e descansar.
Aliás, tudo práticas importantes para o desenvolvimento pessoal e social das crianças. A falta de tempo
para as mesmas é uma questão que preocupa o referido pai.
Outro pai expõe com lucidez os traumas que entende ter provocado no filho pela sua própria falta de
habilidade ou competência para lidar com as dificuldades escolares que era suposto ter ajudado o filho a
ultrapassar. Num efeito bola de neve, os problemas e as ansiedades de um alimentam os problemas e
ansiedades do outro num crescendo de angústias e dificuldades.
Apesar de Trabalhos de Casa reflectir o Irão do final dos anos 80, é um filme intemporal e universal.
Mais que uma investigação filmada sobre o sistema educativo iraniano, é um filme sobre relações
humanas, particularmente sobre o lado performativo das mesmas, a perpetuação inquestionada de
hábitos e comportamentos ao longo de gerações, os problemas de comunicação, os equívocos na
avaliação e compreensão do outro, as relações de poder. É, além disso, um filme muito kiarostamiano,
no que nele emerge da sua continuada reflexão sobre a (im)possibilidade de chegar à verdade através
do acto de filmar.
[1] Trabalhos Para Casa.