segunda-feira, 29 de abril de 2024

341ª sessão: dia 30 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Dina e Django” de Solveig Nordlund no auditório da BLCS 
 
Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, termina terça-feira à noite com a exibição de Dina e Django de Solveig Nordlund, que conta com as interpretações de Maria Santiago e Luís Lucas nos papéis principais e diálogos da poetisa Luiza Neto Jorge. A sessão contará com a presença de “Django” em pessoa, Luís Lucas. 
 
A revolução dos Cravos de 1974 é o pano de fundo para a estória de Dina e Django, jovens apaixonados e delinquentes com a sua própria revolução em curso. De leitarias e bares no Bairro Alto a cozinhas da burguesia intelectual, passando por quartos alugados e pelos passeios da prostituição, acabarão acossados e perseguidos pelas autoridades portuguesas. 
 
“Se há filmes em que a Revolução de 1974 é um eco em pano de fundo,” escreveu Maria João Madeira, “este é certamente o mais literal desses exemplos. Na versão remontada por Solveig Nordlund em 1998 essa dimensão – a terceira do filme, para recorrermos a um termo então empregue pela realizadora – é sublinhada com a utilização de imagens documentais do 25 de Abril, intercaladas com a história de Dina e de Django, a partir de determinado momento do filme, logo depois de a patroa dar a notícia do golpe de Estado à Sra. Ana, abraçando-a efusivamente.” 
 
“Na versão publicamente conhecida até 1999,” continua a programadora da Cinemateca Portuguesa na sua folha sobre o filme, “a presença dos acontecimentos da Revolução, a decorrer a par da ficção, era dada exclusivamente através de elementos sonoros em off.” 
 
“Agora,” termina, “não que o sentido do filme se adense ou adquira outra espessura, mas através da montagem paralela sublinha-se esta perspectiva, acentuando-se, também, a solidão destes heróis dominados pelas frases dos livros de cordel, sem causa que não a sua, capazes de imunidade em relação ao exterior mesmo tratando-se de um momento de excepção.” 
 
As sessões do mês de Abril do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça!

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Continuar a Viver ou Os Índios da Meia Praia (1977) de António da Cunha Telles



por António Cruz Mendes

António da Cunha Telles foi um elemento destacado do Cinema Novo, movimento inspirado na Nouvelle Vague francesa e no neo-realismo italiano que, nos anos 60, veio renovar o cinema português lançando um novo olhar sobre o nosso quotidiano, despindo-o da visão pitoresca e idealizada que caracterizava o cinema promovido pelo Estado Novo. A sua intervenção fez-se notar como produtor (produziu, por exemplo, em 1963, Os Verdes Anos, a primeira longa-metragem de Paulo Rocha e uma obra marcante do início do Cinema Novo português), como distribuidor (foi responsável pela divulgação em Portugal da obra de Eisentein, de Jean Vigo, de Glauber Rocha e de muitos outros notáveis realizadores) e como realizador (O Cerco, de 1970). 

Com o 25 de Abril, o Cinema Novo sofre um novo impulso e inicia uma segunda fase da sua existência. Surgem, então, alguns documentários que, na linha do “cinema verdade”, procuram fixar as experiências e transformações então vividas, cruzando uma perspectiva etnográfica com um compromisso militante. É com esse propósito que António da Cunha Telles filma, entre 1975 e 1976, Continuar a Viver – Os Índios da Meia-Praia

O filme inicia-se com um plano de pescadores que arrastam para a praia uma rede onde saltam pequenos peixes. Seguem-se as imagens de um grupo de pessoas que transportam às costas uma barraca. As apresentações estão feitas: são os “índios da meia-praia”, uma comunidade de pescadores pobres que vivem em barracas numa praia e Lagos, no Algarve. 

Canta José Afonso: “Quem aqui vier morar / Não traga mesa nem cama / Com sete palmos de terra / Se constrói uma cabana”. 

Quem são eles? Vários depoimentos informam-nos donde vieram e das esperanças que os trouxeram até ali. Ainda José Afonso: 

De Monte-Gordo vieram / Alguns por seu próprio pé / Um chegou de bicicleta / Outro foi de marcha à ré”. 

São proprietários de pequenos barcos e confrontam-se com a abissal diferença entre os preços por que vendem o pescado e os preços por que são vendidos os mesmos peixes no mercado, aos consumidores. “Tu trabalhas todo o ano / Na lota deixam-te mudo / Chupam-te até ao tutano / Levam-te o couro cabeludo”. 

Pouparam tostões para poderem comprar embarcações um pouco maiores do que aquelas com que começaram a sua vida. As barracas de colmo onde habitavam foram sendo substituídas por outras de madeira, mas a pobreza continua a pesar sobre eles como uma maldição. O filme revela-nos o seu quotidiano, as crianças que brincam na areia e os homens que se dividem entre os trabalhos do mar e o conserto das redes. 

Com o 25 de Abril, a pobreza permanece, mas novas perspectivas se abrem. “Continuamos pobres, mas estamos mais contentes”, diz-nos um velho pescador. Apoiados pelo SAAL (Serviço Ambulatório de Alojamento Local) poderão finalmente abandonar as barracas e viver em casas com outras condições. Forma-se uma associação de moradores. Não há ainda dinheiro, mas um empréstimo de 45 contos permite- lhes começar os trabalhos. O Fundo de Fomento da Habitação financia as obras. Para que os seus custos sejam mais reduzidos e para que elas se possam iniciar de imediato, os próprios moradores disponibilizam-se para trabalhar na construção das casas. Trabalham nos seus tempos livres, homens e mulheres de todas as idades. 

Eram mulheres e crianças / Cada um c’ o seu tijolo / ‘Isto aqui era uma orquestra’ / Quem diz o contrário é tolo”. 

Realizam-se as primeiras eleições democráticas. Como se vota? Em quem se deve votar? As questões políticas atravessam-se no caminho dos “índios da meia-praia” e o barco da esperança parece ir despedaçar-se contra as duras rochas da realidade. 

Mandadores de alta finança / Fazem tudo andar pra trás / Dizem que o mundo só anda / Tendo à frente um capataz”. 

Mas, apesar de todos os problemas, das dúvidas e desavenças, as obras avançam e as novas habitações começam a ganhar forma. Porém, de que vale ter uma casa se não se tem nada para pôr lá dentro? Junto à costa, o peixe começa a escassear e, no alto mar, mandam os grandes arrastões. As pequenas embarcações não podem concorrer com eles... Surge a hipótese dos pescadores, unidos numa cooperativa, poderem comprar um barco com outras dimensões. 

O filme, que se iniciou com uma rede de peixe miúdo que se puxava para a praia, termina com as imagens de uma traineira que navega pelo mar fora. A quem pertence? Para onde se dirige? O futuro é incerto e problemático, mas, como canta José Afonso: 

E se a má língua não cessa / Eu daqui vivo não saia / Pois nada apaga a nobreza / Dos índios da Meia- Praia”.



segunda-feira, 22 de abril de 2024

340ª sessão: dia 23 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Os Índios da Meia Praia” no auditório da BLCS 
 
Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, continua amanhã à noite com a exibição do documentário de António da Cunha Teles, Continuar a Viver ou Os Índios da Meia Praia, com fotografia de Acácio de Almeida e música de Zeca Afonso, e estreado em Portugal a 25 de Abril de 1977, depois de uma ante-estreia em Lagos. 
 
O filme é sobre os trabalhadores do mar da Meia-Praia e a equipa do SAAL - Serviço de Apoio Ambulatório Local de Lagos, que se juntam para substituir as casas velhas por moradias de pedra com a esperança de constituir uma cooperativa de pesca e construir uma pequena sociedade. A sessão será apresentada pelo professor Manuel Sarmento. 
 
“A realidade excede sempre a ficção,” confessou o arquitecto José Veloso em 2022 sobre as operações SAAL no Algarve e as circunstâncias em torno da produção deste filme de António da Cunha Telles. “A Operação SAAL na Meia-Praia com aquela população peculiar e com a dinâmica do momento histórica que então todos nós vivíamos, observada pelos olhos de hoje parece ser uma ficção, bem plasmada no filme do Cunha Telles.” 
 
“A música e letra do José Afonso ganhou uma globalidade formal muito apreciada,” continuou José Veloso, falecido no passado dia 19 de Janeiro, aos 93 anos, “muito divulgada, mas distante do objectivo de apoio político da altura, que tinha a ver com a “ressaca” social e política que então já se adivinhava.” 
 
“Historiando e registando: o José Afonso,” termina Veloso, “que tinha sido meu colega professor nos anos 50 na Escola Industrial e Comercial de Lagos, procurou-me […] Encontrámo-nos num café em Setúbal perto da Estação de Caminho de Ferro. Estava apinhado de gente, que entrava, saía e cumprimentava o Zeca com fortes palmadas nas costas interrompendo permanentemente a nossa conversa. Foi no meio desta confusão que iam nascendo as estrofes que hoje todos conhecem.” 
 
As sessões do mês de Abril do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Torre Bela (1975) de Thomas Harlan



por António Cruz Mendes

O“25 de Abril” não foi só o golpe militar que pôs fim à ditadura, mas também, e sobretudo, como dizia Ary dos Santos, “as portas que Abril abriu”, essa vaga imensa de iniciativas populares que desenharam possibilidades de construção de uma sociedade diferente daquela em que se viveu durante tantos anos – uma sociedade mais livre, mais democrática, mais justa, mais solidária. 

Uma revolução é sempre um acto fora-da-lei. Faz-se para abolir as leis que regiam o regime deposto e inaugura um período onde as leis que hão-de substituir aquelas que foram revogadas ainda não foram feitas. Uma revolução é um tempo em que aquilo que faz lei é a vontade dos revolucionários, um tempo onde tudo parece ser possível. 

Foi nesse tempo que um grupo de camponeses pobres decidiu ocupar a imensa e desaproveitada herdade da Torre Bela. O filme de Thomas Harlan documenta essa extraordinária aventura levada a cabo por trabalhadores sem instrução que ousam desafiar tradições ancestrais, tomar nas suas próprias mãos o destino das suas vidas e inventar novas formas de decidir colectivamente o seu futuro. 

A ocupação da herdade levanta problemas e origina discussões. Como se forma uma cooperativa? Quem passa a ser o dono das terras ocupadas? Como é que a propriedade vai ser gerida? Como vai se remunerado o trabalho dos cooperantes? Que relação se vai estabelecer entre eles e as autoridades locais e nacionais? Quem vai cozinhar as refeições dos que trabalham nos campos? Tudo se debate, muitas vezes de uma forma acalorada, tantas vezes de uma forma confusa. Não existe nenhum guião processual pré- definido, são novas formas de decisão democrática que estão a ser inventadas. Estamos perante um caso de democracia directa ou participativa. Quais são as suas virtudes, quais são as suas limitações? 

O filme coloca-nos diante de muitas questões. O direito à propriedade é um direito absoluto ou um direito limitado? E, se tem limites, que limites são esses? A quem deve pertencer a terra, a quem a trabalha ou a quem a herdou? E a enxada que um trabalhador comprou, é dele ou da cooperativa que se está a formar? E o “palácio” dos Duques de Lafões, a quem pertence? 

Terão os camponeses o direito de o ocuparem, de dormir nele, de prepararem nas suas cozinhas as suas refeições, ou não? E os objectos pessoais do Duque e da sua família, as suas mobílias, as suas roupas, os seus livros? Sobre tudo isto, as opiniões dos camponeses dividem-se e o realizador recusa-se a tomar partido. As cenas que observamos não foram encenadas, mas filmadas em tempo real. Aparentemente, a câmara limitou-se a registar os acontecimentos e as controvérsias. Mas será realmente possível essa “objectividade” que o chamado “cinema verdade” reclama para si? Temos a sensação que aqueles que participam no filme ignoram a presença do realizador, mas será de facto assim? E qual terá sido o critério que presidiu à montagem das cenas filmadas? 

Torre Bela é um filme que se situa nesse espaço ambíguo entre o documentário cinematográfico e o cinema militante, mas é também essa ambiguidade que faz dele um documento histórico, a marca de um tempo onde tudo, mesmo as mais fantásticas utopias, artísticas ou sociais, pareciam realizáveis. 

O filme termina de uma forma um tanto abrupta com a informação de que, no dia 1 de Dezembro de 1975, a herdade foi devolvida aos seus antigos donos e que os responsáveis pela ocupação foram incriminados e presos, sem explicitar as circunstâncias e razões políticas que explicam esse fim. Entretanto, mais recentemente, a herdade da Torre Bela, que já não pertence ao Duque de Lafões, voltou a ser notícia. Em 2020, realizou-se aí uma caçada que terminou com a morte de centenas de veados. Sendo uma herdade vedada, os animais não tinham por onde fugir à perseguição dos caçadores. Mais do que uma caçada, tratou-se de uma verdadeira chacina que indignou a opinião pública. Mais recentemente, soube-se que muitas centenas de sobreiros e azinheiras, árvores protegidas, vão ser abatidas para que se instale aí uma imensa central fotovoltaica. 

O tempo dos acontecimentos que o filme documenta pode parecer-nos hoje irremediavelmente vencido. Mas, talvez não seja assim. As utopias mesmo quando não se realizam, não morrem. Reaparecem teimosamente sempre que há injustiças. Talvez como um horizonte difícil de alcançar, mas que continua presente, acompanhando a humanidade pelos séculos fora.



segunda-feira, 15 de abril de 2024

339ª sessão: dia 16 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


“Torre Bela” de Thomas Harlan no cineclube 

Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, continua hoje à noite com a exibição do documentário de Thomas Harlan, Torre Bela, estreado em 1977 no Festival de Cannes e que conta com as participações de trabalhadores agrícolas do Ribatejo, Zeca Afonso, Francisco Fanhais, Vitorino ou Camilo Mortágua. A sessão contará com a presença do professor universitário Manuel Carlos Silva. 

O filme debruça-se sobre a herdade de Torre Bela, no Ribatejo, a maior de Portugal com dois mil hectares mas sem qualquer tipo de cultivo, que é ocupada por trabalhadores agrícolas sem trabalho nem terras que formam uma cooperativa durante o PREC para aí produzirem bens de primeira necessidade. Thomas Harlan, que já se tinha envolvido com o movimento de resistência contra Augusto Pinochet no Chile, em 1974, acompanha todo o processo. 

Num texto para o nº 301 da Cahiers du Cinéma, Serge Daney escreveu que o filme de Harlan “é, antes de mais, um documento extraordinário, como por vezes acontece no seio de lutas ou de situações limite, quando a obstinação de “continuar a filmar” prevalece sobre todas as ideias, recebidas ou não, daquele que filma. Os amantes de “real”, os canibais do “instante” (nos quais nos incluímos) ficarão siderados com o filme de Thomas Harlan." 

“Dificilmente teremos visto uma outra colectividade,” continuava Daney, “na sua singularidade, ela própria constituída de singularidades, construir-se e desconstruir-se, envolta num processo político no qual ela é a verdade cega, o ponto de utopia.” 

Em entrevista ao mesmo Serge Daney, Thomas Harlan disse que “na Torre Bela víamos coisas que jamais tínhamos visto, ou sonhado ver. E sem dúvida que os habitantes da Torre Bela poderiam dizer o mesmo: faziam coisas que, sem dúvida, nunca tinham pensado fazer anteriormente. [...] Era preciso que, quer nós quer eles, inventássemos o dia-a-dia.” 

As sessões do mês de Abril ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça!

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Bronenosets Potyomkin (1925) de Serguei Eisenstein



por Serguei Eisenstein

“O COURAÇADO POTEMKINE”. Do ecrã para a vida. 
 
Todos os fenómenos têm uma manifestação casual, superficial. E subjacente a isso está um sentimento profundo que ditou a razão. Também foi assim com Potemkine. Eu e Agadzahanova-Shutko[1] concebemos um grande épico, "1905", na preparação para o vigésimo aniversário de 1905; o episódio do motim do couraçado “Potemkine” era para ter sido apenas um dos muitos episódios desse ano de luta revolucionária. 
 
Os “eventos casuais” começaram. O trabalho preparatório da Comissão do Aniversário arrastou-se. Por fim, houveram complicações com as rodagens do filme como um todo. Chegou Agosto, e o aniversário era em Dezembro. Só havia uma coisa a fazer: escolher um episódio do épico inteiro que encapsulasse o sentido integral, o sentimento desse ano notável. 
 
Outro acaso fugaz. Em Setembro, só se podem filmar exteriores em Odessa e Sevastopol. O motim do “Potemkine” passou-se em Odessa e Sevastopol. Mas depois veio algo predeterminado: o episódio do motim no “Potemkine”, um episódio a que Vladimir Ilyich tinha destacado atenção especial anteriormente, também era um dos episódios mais representativos do ano inteiro. É curioso lembrar agora que este episódio histórico tinha sido mais ou menos esquecido: onde e sempre que conversávamos sobre o motim na Frota do Mar Negro, ouvíamos imediatamente falar do Tenente Schmidt, e do “Ochakov”[2]. O motim do “Potemkine” tinha sido apagado da memória, de alguma forma. Era menos memorável. Menos falado. Portanto era ainda mais importante ressuscitá-lo outra vez, focar a atenção sobre ele, lembrar as pessoas deste episódio que encarnava tantos elementos instrutivos da técnica de insurreição revolucionária, típica do período de um “ensaio geral para Outubro”. 
 
Mas o episódio tinha mesmo a ressonância de quase todos os motivos característicos desse grande ano. O triunfo na escadaria de Odessa e a retaliação bestial encontram o seu eco a 9 de Janeiro. A recusa em disparar sobre os seus "irmãos"; o esquadrão a deixar passar o couraçado amotinado; o estado de espírito de solidariedade geral que se apoderou de toda a gente – tudo isto foi repetido em inúmeros episódios por todo o Império Russo durante esse ano, comunicando o tremor das suas fundações. 
 
Falta um episódio ao filme – a última viagem do “Potemkine”, para Constança[3]. Este foi o episódio que chamou a atenção do mundo inteiro para o “Potemkine” em particular. Mas esse episódio decorreu para além dos limites do filme; decorreu no destino do próprio filme, nessa viagem através dos países capitalistas que nós achamos tão pouco amigáveis e que o filme viveu para ver. 
 
Os criadores do filme desfrutaram da maior das satisfações que o trabalho numa tela revolucionária histórica pode conferir, quando os eventos no ecrã são transferidos para a vida. O motim heróico no couraçado holandês “Zeven Provinziën”, onde os marinheiros que participaram no motim mostraram que tinham todos visto Potemkine, o filme – é isso que eu quero lembrar agora[4]. 
 
Os couraçados a ferver com o mesmo ardor revolucionário, o mesmo ódio pelo poder explorador, a mesma malícia mortal para com aqueles que, ao armar-se a si próprios, não clamam pela paz, mas por mais chacina, por uma nova guerra. O maior mal, cujo nome é Fascismo. E eu quero mesmo acreditar que, dada a ordem do Fascismo para invadir a terra-mãe socialista dos trabalhadores do mundo, os seus couraçados e super-couraçados de ferro responderão com uma recusa idêntica em disparar; a resposta deles não será o fogo das armas mas o fogo do motim, como reagiram os grandes heróis da luta revolucionária – nomeadamente o “Príncipe Potemkine de Táurida”, há trinta anos, e a gloriosa embarcação holandesa “Zeven Provinziën”, mesmo à frente dos nossos olhos. 
 
[1] Nina F. Agadzhanova-Shutko (1889-1974) escreveu o guião para O Couraçado Potemkine. Foi originalmente concebido como um dos episódios de um ciclo de filmes que lidava com toda uma gama de acontecimentos do “Ano de 1905”, um dos filmes encomendados a Goskino pela Comissão do Aniversário estabelecida para supervisionar a celebração do vigésimo aniversário do chamado “ano revolucionário” de 1905. No final, Potemkine foi a única parte que se completou e lançou deste ciclo. (nota de Richard Taylor) 
[2] O tenente Peter P. Schmidr (1867-1906) foi um dos líderes do motim de Sevastopol em 1905. Tinha ajudado anteriormente a formar a Sociedade de Ajuda Mútua dos Marinheiros Mercantes de Odessa, uma das primeiras organizações laborais na frota russa. A 20 de Outubro de 1905 foi preso pelas autoridades por falar num encontro político em Sevastopol, no qual foi imediatamente eleito membro vitalício dos representantes do Soviete dos Trabalhadores de Sevastopol. Foi libertado a 3 de Novembro e, quatro dias mais tarde, permitido a reformar-se com o grau de Capitão de Segunda Classe. A 14 de Novembro embarcou no cruzador "Ochakov" e levantou a bandeira vermelha; no dia seguinte voltou a ser preso. Foi condenado à morte no seu julgamento de Fevereiro de 1906 e executado a 6 de Março com outros líderes do motim. (R.T) 
[3] Incapaz de se reabastecer de combustível e mantimentos, a tripulação do “Príncipe Potemkine de Táurida” navegou para o porto de Constança, na Roménia, para onde foram a terra a 25 de Junho de 1905. (R.T.) 
[4] O motim no navio de guerra holandês “De Zeven Provinciën” aconteceu em 1933; ver J. C. H. Blom, De muiterij op De Zeven Provinciën [O Motim no “Zeven Provinciën”] (2ª edição, Ultrecht, 1983); e G. J. A. Raven e N. A. M. Rodger (editores), Navies and Armies. The Anglo-Dutch Relationship in War and Peace, 1688-1988 (Edinburgo, 1990), pp. 98, 101, 109. (R.T.) 


in «Sergei Eisenstein - Selected Works. Volume III - Writings, 1934-1947» (editado por Richard Taylor)
publicado originalmente in «Komsomolskaya gazeta», 27 de Junho de 1935
Tradução: João Palhares



O Auto da Floripes (1962) da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto



por João Palhares

Os autos são uma forma teatral que surgiu em Espanha, na Idade Média, por volta do século XII. Eram integrados em festividades religiosas e encenados dentro das próprias igrejas ou nas respectivas portas de entrada e em volta dos pátios, sendo posteriormente apropriados pelas populações (e também proibidos pela igreja, a dada altura, devido à linguagem considerada grosseira) e representados em feiras, mercados ou praças públicas. Entre o sagrado e o profano, tinham propósitos satíricos e moralizadores, criticando tudo e todos, do camponês mais miserável ao mais opulento dos cardeais, sendo compostos e encenados também por famosos escritores e dramaturgos portugueses e castelhanos como Gil Vicente (c. 1465-c. 1536), Luís de Camões (c. 1524-c. 1580), Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e Juan de la Encina (1468-1529), Juan de Timoneda (c.1520-1583), Lope de Vega (1562-1635), José de Valdivielso (1565-1638) ou Pedro Calderón de la Barca (1600-1681). 
 
O Auto da Floripes, representado todos os anos no Largo das Neves da freguesia de Nossa Senhora das Neves, a 5 de Agosto, insere-se nesta tradição e foi transmitido oralmente durante vários séculos até ser fixado em texto em 1940 por Leandro Quintas Neves, a partir de recolhas da tradição oral e do romance de cavalaria “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”, traduzido para português por Jeronymo Moreira de Carvalho em 1814. No entanto, a representação deste auto, devido às semelhanças que partilha com “Os sete infantes de Lara”, outro auto medieval fixado em texto na “Crónica Geral de Espanha” de Alfonso X e representado até ao século XX na zona de Miranda do Douro, pode remontar ao século XIII. A estória envolve dois exércitos em contenda, um de cristãos e outro de turcos, centrando-se mais especificamente no duelo entre o cristão Oliveiros e o turco Ferrabraz, e na figura conciliadora de Floripes, irmã de Ferrabraz, que solta os prisioneiros inimigos e permite a vitória do exército de Carlos Magno, convertendo-se no final ao cristianismo junto com os seus irmãos turcos. 
 
Henrique Alves Costa, dirigente do Cineclube do Porto de finais dos anos 40 a inícios dos anos 60, conheceu o auto através da mulher. “Minha mulher,” escreveu ele no programa da sessão nº 420 do Cineclube do Porto, “falava-me frequentemente de uma representação popular coreo-dramática a que muitas vezes tinha assistido no lugar das Neves (distrito de Viana do Castelo) por ocasião da romaria que ali se realiza todos os anos nos primeiros dias de Agosto. 
 
“Um ano (foi em fins de Julho de 1949), estávamos nós em férias em Moledo do Minho, voltou a falar-se nisso, já não me lembro a que propósito. Encontravam-se connosco António Pedro, Rui Feijó e João José Cochofel e de tal sorte minha mulher conseguiu espicaçar a nossa curiosidade que logo ficou decidido irmos todos, dali a dias, à festa das Neves. 
 
“Foi então que vi pela primeira vez o “Auto da Floripes”. 
 
“E do que vi não tardei a trazer circunstanciado relato para a revista Vértice [nº 73, Setembro de 1949], no que me acompanhou João Cochofel escrevendo, para o mesmo número, uma nótula sobre o valor espectacular do Auto da Floripes. Por iniciativa de ambos, mais tarde se publicou naquela revista [nº 102, Fevereiro de 1952] o texto do Auto (com a completa indicação da movimentação dos personagens), tal como havia sido pacientemente recolhido pelo etnógrafo local Leandro Quintas Neves.” 
 
O auto encenado na Senhora das Neves tinha como palco um estrado, onde estava dum lado o exército dos cristãos e do outro o dos turcos, tendo cada um deles uma banda filarmónica atrás das suas fileiras. Durante a representação, encontravam-se a meio do estrado para lutar, parlamentar, cantar ou dançar. “Deve dizer-se que, para quem vê representar o Auto pela primeira vez, sem do seu enredo ter algum conhecimento, ” chamou Alves Costa a atenção no mesmo texto da sessão nº 420, “não é muito fácil entender o que se diz e o que se passa. Pela maneira como falam ou como cantam, pela maneira como pronunciam ou entoam as palavras, os comediantes ouvem-se mal e das suas falas grande parte não se percebe, se já não se conhece o texto. Só espectador que estiver muito bem colocado e muito próximo do estrado acabará por habituar o ouvido ao fim de algum tempo (a representação dura duas horas bem puxadas) e poderá, então, entender melhor as tiradas dos personagens principais. Por isto se pode calcular o “bico de obra” que foi a gravação das falas, com os meios rudimentares de que dispunham os amadores que se arrojaram a registar e sintetizar, num filme, o Auto da Floripes.” 
 
Já no final da representação, canta-se “já se renderam os turcos, já se acabou toda a guerra. Nossa senhora das Neves, sois guia de toda a terra.” O Auto da Floripes foi um marco importante na missão etnográfica do cinema e das artes portuguesas durante os anos 60 e 70, continuando o trabalho de Fernando Lopes-Graça, António Campos e Michel Giacometti e antecipando o de Manoel de Oliveira, António Reis, Margarida Cordeiro e Manuela Serra. Antes da encenação do auto, há uma sequência de abertura que situa o lugar das Neves e os intérpretes da Floripes, embrenhados nos seus trabalhos no campo ou em casas de pasto. Na tradição dos antigos autos e até do teatro isabelino, Floripes é interpretada por um homem, António Miranda, que foi o último a fazê-lo. Em 1962, foi pela primeira vez interpretada por uma mulher, Maria Eulalia Viana, e desde aí a esta parte tem sido assim. Outras mudanças de maior incluem o estrado, que agora é um palco tradicional, e a ausência das armas de fogo.



segunda-feira, 8 de abril de 2024

338ª sessão: dia 9 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Sessão dupla dedicada ao cineclubismo português 
 
Este mês de Abril, o Lucky Star – Cineclube de Braga associa-se ao Sindicato dos Professores do Norte e a outras entidades para promover um ciclo dedicado aos cinquenta anos do 25 de Abril. As sessões realizam-se às terças-feiras às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
O ciclo, intitulado “50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril?”, continua amanhã à noite com a exibição do clássico de Sergei Eisenstein, O Couraçado Potemkine, estreado em Portugal apenas após o 25 de Abril, e Auto da Floripes, da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto, filme muito pouco visto que regista e situa a encenação popular do Auto da Floripes na freguesia de Nossa Senhora das Neves, a quinze quilómetros de Viana do Castelo. 
 
Dedicada ao movimento cineclubista antes, durante e depois do 25 de Abril, esta sessão dupla contará com a presença do arquitecto Alexandre Alves Costa, filho do co-fundador do Cineclube do Porto, Henrique Alves Costa, para uma pequena conversa com o público. 
 
Proibido durante o Estado Novo pela censura, Potemkine estreou-se em Portugal a 2 de Maio de 1974, no Cinema Império, em sessão dupla com Jaime de António Reis. É o filme mais célebre de Eisenstein e celebra o motim de um grupo de marinheiros a bordo de um couraçado. O acontecimento e o sentimento de revolta alastram-se para as ruas de Odessa. 
 
“Surpreendeu-me o mais agradavelmente possível o filme do Cine-Clube,” escreveu Manoel de Oliveira sobre Auto da Floripes. “A frescura, a simplicidade, a naturalidade — sem nenhum pretensiosismo balofo — da visão documental da aldeia e seus hábitos vulgares, criam um estilo próprio, inédito no cinema português, muito português, muito minhoto, cheio de real bucolismo e candura próprios. Por aqui se vê quanto pode ser frutuoso um trabalho honesto.” 
 
“Há quem não goste,” continuava, “deste termo “honesto”. Eu, porém, gosto de usá-lo na sua acepção integral. E acho que aqui a palavra assenta, a todos os títulos como uma luva, e direi até que ela se desprende a todo o momento e de imagem para imagem deste delicioso documentário tão fresco e leve como o vinho verde retinto, maravilhosamente colorido em kodacromo.” 
 
As sessões do mês de Abril ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star e do Sindicato dos Professores do Norte têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Natureza Morta - Visages d'une dictadure (2005) de Susana de Sousa Dias



por Alexandra Barros

Em 2000, Susana de Sousa Dias entrou no Arquivo da PIDE/DGS[1] com o objectivo de fazer investigação para o projecto que tinha em mãos: o filme Processo-crime 141-53, baseado na história de duas enfermeiras que foram presas por quererem casar, numa altura em que vigorava uma lei, instituída pelo Estado Novo, que proibia as enfermeiras de contrair matrimónio. Para a realizadora, a entrada nesse arquivo constitui o momento fundador do seu trabalho e da orientação que iria dar à sua obra como realizadora e como artista na área de multimédia. 

O material do arquivo está na origem das três longas-metragens que se seguiriam a essa primeira obra sobre o Estado Novo: Natureza Morta, Visages d’une Dictature (2005), 48 (2010) e Luz Obscura (2016). Filmes contra o esquecimento e contra a invisibilidade das personagens “secundárias” (particularmente as mulheres da resistência). Filmes sobre as histórias que ficaram por contar e sobre a memória fraca. Nas palavras da realizadora[2]: “As memórias fortes são aquelas que são alimentadas pelos Estados, pelas instituições oficiais, são as que passam para o campo da memória coletiva e são as mais facilmente historicizadas; as memórias fracas, ou seja, as memórias subterrâneas, interditas, proibidas, são as que permanentemente correm o risco do apagamento total. O meu trabalho tem-se focado nas memórias fracas. Eu abordo o que não está fixo, que não é dito, que é escondido [...].” 

Natureza Morta é um filme construído só com imagens e música. Susana de Sousa Dias não quis condicionar a nossa interpretação com um relato próprio, após eliminar o som dos filmes propagandísticos do regime ditatorial que usou como matéria-prima. Porém, a música com que substituiu as narrativas dos filmes originais transporta inevitavelmente um olhar pessoal e uma forte carga expressiva. Dou-lhe agora a palavra para falar sobre o que nos quis mostrar e quais os métodos que utilizou para o conseguir fazer. 

Natureza Morta é um filme na origem do qual se encontram as fotografias dos presos políticos portugueses, depositadas no Arquivo da PIDE/DGS. O filme partiu da vontade de pensar essas imagens, imagens que, aparentemente, são iguais a todas as outras imagens de todos os presos políticos de todas as ditaduras. Imagens que me conduziram a outras do mesmo tempo, todas elas resultantes de uma certa encenação do poder: atualidades, reportagens de guerra, filmes documentais de propaganda, mas também rushes nunca utilizados nas montagens finais. Imagens de arquivo, na maior parte das vezes a preto e branco, que constituem um vasto espectro de documentos visuais da época. Através delas, Natureza Morta pretende mostrar a vida (e, em certa medida, o seu reverso) de um regime autoritário, tomando como linha orientadora os traços que são comuns à generalidade das ditaduras: uma ideologia de integração, um sistema de controlo da sociedade, um modelo que reconstrói o passado e determina o futuro em função da ideologia, a utilização da figura do "salvador", o envolvimento da família na nação. No entanto, a ausência de materiais filmados por opositores ao regime colocava um problema essencial: como mostrar o outro lado de um regime autoritário através de imagens maioritariamente produzidas por esse mesmo regime? É preciso dizer que Natureza Morta é um filme sem palavras; para além de um breve texto inicial, não existe um discurso que nos diga como devemos ler as imagens que nos são apresentadas. 

A concepção do filme e a determinação da sua estrutura foi-se desenvolvendo durante todo o período de pesquisa de imagens. Nesta fase, que se estendeu por alguns anos, vi centenas de horas de materiais de arquivo. Ao longo do processo, comecei a aperceber-me que, por vezes, no interior da imagem apareciam sinais de desintegração interna da própria mensagem que o regime pretendia veicular, ou seja, quase como um ponto de doença da própria imagem. A procura de sintomas nas imagens que nos remetessem para uma outra realidade, uma realidade que estivesse para além daquela que é percepcionada num primeiro momento, tornou-se na démarche principal do filme. 

Para os tornar visíveis, foi necessário proceder a uma série de operações. Estas constituíram os princípios formais do filme e foram essencialmente três: câmara lenta, reenquadramento e fusão a negro[3]. Iniciei o processo de montagem com cerca de 20 horas de imagens, que fui selecionando durante os visionamentos, e acabei o filme, que tem 72 minutos, utilizando apenas 12 minutos de imagens, para além das imagens filmadas na ocasião, ou seja, as fotografias dos presos políticos. Ao tornar a imagem mais lenta e ao reenquadrá-la, trouxe para primeiro plano detalhes que de outra forma não seriam visíveis. Por outro lado, como já referi, optei por não usar palavras para não condicionar a leitura da imagem. Este foi um dos princípios estruturantes do filme [...] 

O facto de estar a lidar nos meus filmes com imagens de carácter histórico tornou o trabalho particularmente complexo, sobretudo porque a lógica seguida foi a [...] de procurar abrir a imagem dentro da sua especificidade própria dando-a a ver para além do seu sentido imediato, sem, no entanto, subverter a sua natureza intrínseca. A questão é complexa, tanto mais que, como sublinha Arlette Farge, ‘o arquivo pode dizer tudo e o seu contrário’.”[4] 

Susana de Sousa Dias, com o seu olhar demorado e atento, desenterrou dos arquivos oficiais um contra-arquivo (nas suas próprias palavras[2]) e conseguiu a proeza de nos dar a ver o segundo ao mesmo tempo que nos dá a conhecer os primeiros. 

[1] Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) / Direcção-Geral de Segurança (DGS) - Polícia política portuguesa responsável pela repressão de qualquer forma de oposição ao regime político do Estado Novo. Entre outras funções, censurava, prendia, torturava e matava “inimigos” do Estado. 
[2] Em entrevista realizada por Margarida Esteves Pereira, transcrita no capítulo “Susana de Sousa Dias - Uma espécie de arqueologia da memória”, incluído em “Mulheres, Artes e Ditadura – Diálogos interartísticos e narrativas da memória”, Coordenação: Ana Gabriela Macedo, Márcia Oliveira, Margarida Esteves Pereira, Joana Passos e Laís Natalino, Editora Húmus, 2022.
[3] Fade-in/fade-out (a partir de/para negro). 
[4] Corpos estranhos ou (des)igualdades inscritas na película, Susana de Sousa Dias, in “Arte e género: mulheres e criação artística”, páginas 230-240. Lisboa, Portugal: Faculdade de Belas Artes, CIEBA, 2012.