sábado, 8 de junho de 2024

Lixo e Companhia Ltd (2012) de David Ferreira



por João Palhares

Dir-nos-ão que é normal e que se deve aceitar esperar pelo menos um ano para submeter um projecto entre centenas de outros projectos para a avaliação de um júri idóneo e isento, que tendo a sorte de se ser seleccionado e acabar com um filme nas mãos também se deve depois então passar outro ano a preencher dezenas e dezenas de formulários de inscrição para os festivais do mundo inteiro e ceder-lhes o exclusivo da estreia internacional, europeia ou nacional e esperar que seja premiado para conseguir que circule nas salas algures no ano seguinte; três ou quatro anos depois, descontando o tempo que se levou a pensar, escrever, re-escrever, procurar um produtor, escolher actores, ensaiar com eles, planear, tentar equilibrar o que é pensado com a frescura do imponderável, filmar, montar, fazer os ajustes de pós-produção, dar entrevistas e esperar que algum jornal contrarie as modas e fale sobre ele e sobre outros circuitos de exibição, e até sendo premiado, pode passar apenas uma semana numa só sala em Lisboa e começar depois a procurar o seu lugar num horário tardio na televisão portuguesa. 

Assim vai a vida para um jovem realizador em Portugal. E como se tem de pagar contas, mesmo que não se desista, que também acontece, há muito quem arranje outros empregos, relacionados ou não com cinema, como há quem se vire para a publicidade e para os casamentos, a televisão e o vídeo institucional, enfim, são as sequelas mais práticas e mais imediatas do esquema de produção por terras portuguesas. Há outras, porque por vezes uma ideia e um projecto podem perder algo de importante e genuíno com todas as filtragens burocráticas e diplomáticas que se lhe arremetem pelo caminho, no que se escreve quando se apresenta o projecto, no que se cede a produtores e equipas técnicas, no que se projecta em termos de recepção e aceitação em festivais e televisões... “Perdemo-nos nas coisas quando contámos o nosso filme,” disse Pedro Costa em entrevista este ano. “Perdemo-nos no nosso próprio discurso, no nosso próprio fascínio. É mau, e o filme devia ser um segredo entre nós e muito poucas pessoas, ou entre nós e o espaço, sabem, é aquela floresta, é aquela rapariga, é aquele homem, devia ficar entre nós, e é muito íntimo, e é parte do segredo. A ideia do pitching, o método ou a política do pitching está a matar uma data de coisas para esses projectos; é óbvio, e depois entra-se num sistema que é a forma normal, convencional, comercial e capitalista de fazer um filme. Financiar e pensar através do discurso à volta destas coisas. Eu nunca pensei que iria chegar a isto, a este lugar horrível a que se chegou. Perguntam-nos quais são as nossas metas para este filme. Quando eu era novo, nunca pensei em metas, e quando eles dizem metas, tem de se concorrer a dinheiro para o filme. Tem de se escrever um texto não só sobre como se planeia financiar o filme mas também sobre a quem o filme se dirige, quantos países, para quantos, que tipo de mercado, etc. Portanto a palavra mercado está lá quase no princípio da vida de um jovem cineasta, e não devia estar.”[1] 

“É uma coisa terrível isto de fazer um filme com tantos técnicos à nossa volta,” disse Arthur Penn em 1967 a Jean-Louis Comolli e André S. Labarthe, “tanta gente muito qualificada e muito hábil: se temos uma ideia, ela vê-se imediatamente filtrada como o fumo pelo filtro de um cigarro. Cada um dos que nos rodeia sabe exactamente como é que a nossa ideia deve ser realizada, e aquilo que acaba por sair de todos esses esforços precisos, não é a nossa ideia, mas o arquétipo da ideia hollywoodiana, o lugar comum, o banal.”[2] Tudo isto são obstáculos evidentes para quem começa e continua o seu trabalho em cinema, em Portugal ou noutro sítio, e há quem crie as suas defesas e os seus mecanismos para os superar. Uma solução, é fazer filmes com poucas pessoas e com poucos meios, tentando aprender as lições dos artesãos da Poverty Row americana, como Edgar G. Ulmer, Phil Karlson, Joseph H. Lewis ou Budd Boetticher, do engenhoso e criativo Roger Corman que tinha como credo e posição na indústria produzir dez filmes de um milhão de dólares em vez de um filme de dez milhões de dólares, ou de uma vasta gama de artistas que vão do cinema experimental aos cinemas novos e recusaram os esquemas tradicionais de financiamento, produção e exibição como se convencionaram dos anos oitenta a esta parte. 

Enfim, o ideal é criar o tempo e os meios necessários para que o trabalho não se apresse, para que a visualização e a discussão desse trabalho também não se apressem, para que o acto de mostrar os próprios filmes não seja assim tão diferente de ter uma conversa calma e cândida sobre um tema sério, sem que o rebuliço dos horários e das próximas sessões e dos almoços e dos jantares e das viagens façam perder o fim em vista. Sem que haja multidões instigadas maliciosamente a não perder a próxima atracção, “mais um filme a não perder”, “o próximo Coppola”, quase 24 horas por dia. Assim, é possível escrever sobre um filme do século passado neste século ou falar de uma curta-metragem de 2012 em 2024. 

O David Ferreira é alguém que, desde os tempos do curso na Covilhã, revelou sempre uma aptidão pouco comum para pensar as coisas em termos de imagens, hierarquias nos enquadramentos, posições de câmara e trajectórias de luz em movimento, quando o esperado e maioritariamente realizado era o demasiado escrito, o delineado em tramas, diálogos e temas em voga, o imaginado pela mente delirante dos jovens criadores. Tem um fascínio salutar pelas pessoas da sua terra, de que tenta dar testemunho em tudo o que vai fazendo e quando o consegue fazer. É possível ver isto nesta sua curta-metragem, em que as personagens de António Parra e Valdemar Santos são olhadas com uma certa reverência, com a câmara posicionada dentro do camião que os transporta (pormenor que terá certamente as suas explicações técnicas, mas que não deixa de ter o seu quê de intrigante e revelador, uma tentativa inocente de aproximação do realizador ao pequeno mundo que o atrai e que decide filmar), e a esgalhar belos apontamentos deles a olhar para a estrada que os embala ou de uma ambulância imprevista a desestabilizar a noite. Também nos gestos da personagem de Santos, certamente modelados a partir de alguém que os fez à sua frente vezes sem conta. Possivelmente faltam silêncios, talvez faltem pistas para o conhecimento mútuo destes dois homens, a noite parece pequena demais para o que quer abarcar, mas é preciso aprender trabalhando, ensaiar e cometer erros, e o David tirou com certeza as suas ilações desta experiência pois fez o Campos Belos o ano passado. 


[1] in «Interview with Pedro Costa», por Enes Serenli, Mert Mustafa Babacan, Matthias Kyska, Othon Cinema, 4 de Abril de 2024.
[2] in «Cahiers du Cinéma», nº 196, Dezembro de 1967.



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