quinta-feira, 20 de junho de 2024

Zerkalo (1975) de Andrei Tarkovsky



por João Campos

“Os destinos de duas gerações sobrepõem-se no encontro entre a realidade e as lembranças: o do meu pai do qual se ouvem poemas no filme e o meu. A casa do filme é a reconstrução exacta da nossa e foi construída no local onde ela estava. Pode dizer-se que se trata de um ‘documentário’. As imagens de actualidades do tempo da guerra, as cartas de amor do meu pai para a minha mãe, são documentos que moldaram a história da minha vida.” 

Esta é a descrição feita pelo próprio Andrei Tarkovsky da temática subjacente ao filme. 

É o filme mais autobiográfico de Tarkovsky. A personagem principal, Alexei, o poeta moribundo é ao longo do filme mostrado em criança, adolescente e quando adulto apenas se ouve a sua voz. 

É um filme com um desenvolvimento descontínuo e não cronológico, em que, as suas memórias, as memórias coletivas russas, os sonhos, as emoções e visões artísticas são encadeadas com imagens de arquivo de acontecimentos históricos como a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Civil Espanhola, o conflito fronteiriço sino-soviético e até o lançamento de balões soviéticos. Ao longo do filme passam três períodos históricos: antes da guerra (1935), durante (anos 40) e pós guerra (anos 60, 70). 
 
Nos filmes de Tarkovsky o tempo e a memória são tratados sem coerência cronológica, ligando as imagens através de uma montagem que obriga o espectador a estabelecer relações entre planos, quase sempre longos e a perceber por si próprio a sua coerência. 

Em off surgem, em certas cenas, a leitura de poemas de Arseny Tarkovsky, o pai do realizador. 

Quando vemos o filme é como se estivéssemos a ver a 34ª versão, a nossa, pois consta que Tarkovsky só ficou satisfeito com a 33ª versão. 

Sentimentos como o desejo de retorno, a nostalgia, a solidão, a defesa de valores, o remorso e o arrependimento estão presentes neste filme, como em quase todos os outros do autor. 

O tempo, a palavra e a espiritualidade têm um papel fundamental neste filme. Ritmo lento e melancólico que nos hipnotiza, embalando-nos e tirando-nos o pé da realidade, como na cena emblemática em que a mãe levita. Planos longos e cenários naturais transformados em imagens metafisicamente carregadas são de uma beleza melancólica ímpar. Para Tarkovsky a Natureza é um espaço redentor. Sempre desejou viver no campo, longe de Moscovo em que tudo condicionava o seu trabalho. As casas, resultado da intervenção humana, têm todas marcas do tempo, paredes com revestimento degradado e soalhos bem gastos, dando a ideia de, apesar de habitados, estarem abandonados. 

É através dos espelhos que, em certos momentos, se passa do presente para as memórias do passado, ou para o sonho e ao contrário. O reforço do título do filme é-nos revelado por Tarkovsky quando disse que muitos espectadores lhe confessaram que tinham visto no filme a sua própria vida, como num espelho. 

O visionamento de O Espelho é uma experiência sensorial intensa, reforçada pela presença dos quatro elementos (Terra, Ar, Água e Fogo) presentes em muitas das cenas. A água sobre a forma de lagos, chuva constante, a escorrer pelas paredes, pelos cabelos de Maroussia, e as próprias lágrimas mergulham-nos num mundo poético caraterístico dos filmes de Tarkovsky. 

Uma palavra também para a banda sonora de Eduard Artemyev, com extratos de Bach, Pergolese e Purcell que, quase sempre num registo minimalista, cria uma densidade dramática excecional. 

Depois de vermos este filme temos de concordar com o autor quando diz: “Vão lá pela experiência da vida, pois o cinema, como nenhuma outra arte, alarga, intensifica e concentra a experiência que uma pessoa tem. E não apenas a intensifica, mas prolonga-a de forma significativa. Esse é o poder do cinema: as estrelas, os enredos e o entretenimento nada têm a ver com isso.”



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