sábado, 27 de janeiro de 2018

78ª sessão: dia 30 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


Demoramos a chegar à primeira longa-metragem de Charlie Chaplin, também ela envolta em grandes demoras e muitos receios por parte dos investidores devido a essas mesmas demoras - o tempo necessário a Chaplin para chegar aos resultados que se vêem no ecrã. The Kid é então a nossa próxima sessão, no ecrã grande do Braga Shopping, e será apresentada em vídeo pelo diplomata brasileiro José Roberto Rocha, que já nos apresentou Copland em Junho do ano passado.

Gerald Mast, no capítulo dedicado a Chaplin de The Comic Mind, escreveu que "em The Kid (1921), Chaplin regressa a um material menos irónico e mais sentimental. No centro do filme está a relação entre Charlie e Jackie Coogan, uma criança pequena que, como Scraps em Vida de Cão, é um substituto mais pequeno de Charlie. Embora os críticos admirem o amor e a ternura na relação de Charlie com o seu filho adoptivo, também encontram falhas graves com o tratamento melodramático do filme em relação à mãe solteira do miúdo, bem como o sonho irónico em que a favela de Charlie se transforma num paraíso branco cor de pérolas. Mas embora a relação Jackie-Charlie seja o centro emocional do filme, o tema dele não é esse. Descartar as outras secções do filme como irrelevantes é perder a unidade pretentida. Como Sunnyside, The Kid contrasta a teoria moral e social com a prática humana.

"O tema de The Kid é o amor familiar e paternal. É um tema sobre o qual Chaplin, privado deste amor, obviamente tinha sentimentos profundos. O filme começa com a mãe e o pai físicos porque Chaplin quer contrastar as definições ofiçiais da paternidade "legítima" com definições mais genuínas e humanas. Segundo a sociedade, a mãe e o pai têm que ser casados—daí a secção de abertura que mostra Edna a ser rejeitada pela sociedade como mãe solteira, e a assistir a um casamento de dois futuros pais legítimos. Ironicamente, este casamento une uma jovem bonita a um bode velho e rico. A cerimónia social define como legítimo o que é ilegítimo e imoral em termos humanos. A mãe sente-se tão ilegítima e tão culpada que se livra da criança—embora a ame—e até contempla o suicídio. Ironicamente, ela deixa a criança num carro luxuoso (quer-lhe dar um "bom lar"), que depois é roubado. Os dois criminosos em fuga depositam a criança numa pilha de lixo. Esta equação metafórica entre criança e lixo não é acidente nenhum. A definição social da criança como "ilegítima" não lhe dá esperança por um futuro mais rico."

Louis Skorecki, para o Libération, escreveu que "é em 1921 que Charlie Chaplin realiza por fim a sua primeira longa-metragem, o Kid, que conhecerá um sucesso fulgurante. O pequeno vagabundo burlesco já tinha preocupado bastante os seus patrocinadores: demora um ano inteiro a parir este filme. O mais milagroso, é que nada da gestação penosa do filme transparece no ecrã. Pelo contrário, há uma fluidez incrível de narração, uma transparência tal que se diria que Chaplin acabou o filme em três semanas. A história é bem conhecida: uma mulher à beira da depressão (Edna Purviance) abandona o seu bebé. Charlot, que passa por lá, apodera-se da pequena coisa enrodilhada e não consegue livrar-se mais dela. Um agente da polícia obriga-o a manter a criança. Cinco anos depois, o bebé transforma-se em kid, uma versão em miniatura do vagabundo. Interpretado pelo adorável Jackie Coogan, o miúdo usa um boné deliciosamente traquina e parte os vidros das casas que o seu pai vem de seguida propor-se a substituir. As aventuras do vidraceiro e do seu filho alimentam todo o início da história de gags aguçados. Porque é que Chaplin é tão comovente? Se estivermos bem atentos, parece que é porque ele ousa olhar frequentemente para a câmara de frente, injectando desse modo uma dose considerável de realidade no seu cinema. Nos anos heróicos da cinefilia francesa (1953-1968), era de bom tom denegrir as alegrias popular de Chaplin e preferir, em vez dele, a comédia altiva e geométrica de Buster Keaton. Certo que os filmes de Chaplin eram vulgares e populistas de um ponto de vista estético. São filmes impuros, que actuam em vários terrenos, misturando de boa vontade os géneros, passando do puro slapstick ao puro melodrama, do burlesco ao sentimental. Hoje em dia, estaremos prestes a preferir o impuro Chaplin ao etéreo Keaton. Ele prova neste Kid maravilhoso que a arte da infância é tão difícil de inventar como a infância da arte. Que as crianças são os deuses escondidos de um cinema novo, esplendidamente bastardo."

No maior dos Dicionários, Jacques Lourcelles escreveu que é a "primeira longa-metragem realizada por Chaplin. É também o começo da sua completa e plena liberdade autoral e das suas condições de trabalho absolutamente fora do comum, isto é, livres de quaisquer restrições financeiras, que vai manter até ao Ditador. Aqui, a rodagem prolongar-se-á por um ano (para grande desagrado dos accionistas da First National, depois amplamente compensados pelas suas ansiedades). Imprimir-se-á uma metragem colossal de película para chegar às seis bobinas finais. O filme já não tem quase nada que ver com o burlesco: trata-se de uma comédia sentimental e, em certas sequências, de um melodrama puro. Para o público, o choque emocional do Kid foi considerável. Isso deve-se principalmente ao tema: encontro de duas solidões, de dois órfãos, um adulto e o outro criança; às qualidades da interpretação: o talento de Chaplin e o de Jackie Coogan equilibram-se perfeitamente sem nunca se prejudicarem um ao outro; à dosagem inteligente entre o riso e as lágrimas. Não deve ser esquecida uma outra razão essencial para o sucesso do filme : nunca o carácter recorrente da personagem central serviu tão bem um filme. Foi tudo o que o espectador sabia de um herói conhecido e frequentado, agora, há sete anos, foi tudo aquilo de que gostava em Charlot, que, em The Kid, abriu tão generosamente as válvulas da emoção. A memória do público tornou-se cúmplice e parceira do realizador para desmultiplicar as virtudes da sua obra. Vai ter lugar um fenómeno da mesma ordem, mais tarde, com a trilogia marselhesa de Pagnol. 

"N.B. Alguns planos e cenas simbólicas e melodramáticas com Edna Purviance (como aquela em que ela assiste a um casamento entre um velho e uma rapariga) desapareceram da maior parte das cópias reeditadas nos anos 70."

Até Terça-Feira!

City Lights (1931) de Charles Chaplin



por Egon Erwin Kisch

“Charlie? Sim, podemos parar e ir vê-lo, se quiseres.” Naturalmente, eu queria, porque ele é um desses espíritos escolhidos que vai impedir a América de conhecer o destino que atingiu Sodoma e Gomorra. O homem que me fez esta pergunta é outro espírito escolhido—Upton Sinclair. Estávamos perto de um dos grandes estúdios de cinema em Hollywood onde Sinclair tinha estacionado o carro. “Charlie? Sim, podemos parar e ir vê-lo, se quiseres.” 

Eu respondi que tinha há muito o desejo de o conhecer, e que ontem um dos magnatas do cinema me tinha dito que todas as tentativas para ver Charlie estavam fadadas a acabar em fracasso, mas que todos os fanfarrões de Hollywood se gabavam de ser amigos de Charlie por uma vez o terem visto a jantar no restaurante do Henri.

"Sim, ele é terrivelmente perseguido," disse Sinclair. "Vêm-no ver todos os dias mais de cem pessoas por toda a espécie de razões." Sinclair levou o carro dele para a esquina da Avenida de Longpre com a Avenida de La Brea, atrás de um grupo de casas com telhados vermelhos. Nada nelas sugeria um estúdio de cinema, porque os estúdios de cinema em Hollywood são estruturas gigantescas rodeadas de muros com portões de grades de ferro e seguranças. No entanto, aqui só havia uma pequena placa de metal a dizer "Chaplin Studios." Entrámos num escritório onde estava uma rapariga que dividia o tempo dela a atender o telefone e a dactilografar a correspondência. Passámos por ela a caminho da sala de espera, onde dois homens saudaram Sinclair, tendo um deles dito, "Ali vem o patrão."

O patrão—o velho—o chefe—voltámo-nos para olhar para ele, para olhar para Charlie Chaplin.

"Olá, Upton," gritou ele. "Como é que acontece deixares-nos ver-te outra vez?"

Sinclair disse qualquer coisa sobre o convidado que tinha trazido consigo.

"Óptimo," respondeu Charlie Chaplin e apertámos a mão.

Ele estava ocupado a trabalhar num filme novo, Luzes da Cidade, mas "Agora chegamos a um beco sem saída e não conseguimos avançar. Não me ajudas, Upton?'

Como se pudéssemos ajudar Charlie Chaplin!

*

Mas o homem que nós vemos não é o mesmo Charlie Chaplin que aparece nos filmes. Acaba de vir do trabalho, certamente, mas não esteve propriamente a interpretar. Não tem o seu pequeno chapéu maltratado, a sua bengala de bambu, ou o seu bigode preto. Além disso, os sapatos dele não são tão divertidos ou tão ridículos como parecem nos filmes. Fazem barulho enquanto ele anda e estão sujos e um bocado grande para ele, mas são sapatos normais. O seu significado cósmico deve-se inteiramente à arte do dono deles, que agora nos guia, uma vez que o vamos ajudar, até à sala de projecção. Os sapatos tornam-se imediatamente imperceptíveis e o homem que os usa só parece um bocado desajeitado. Põe um par de óculos de massa, porque vê tão mal ao perto que nem sequer consegue escrever o seu nome sem eles.

Enquanto esperamos sentados na sala de projecção, enquanto o filme está a ser preparado, Charlie Chaplin toca uma canção chamada "Violetera" num harmónio e canta palavras espanholas imaginárias. Convida-me a ir a casa dele, onde irá tocar para mim no órgão dele.

Mas agora chegou a altura de vermos o filme. Só um quarto dele é que está pronto e grande parte disso foi mudado e cortado, mas o espectáculo começa mesmo assim.

Durante o incidente da corrente do relógio, que mais tarde descreverei, rio-me alto e, assim que o faço, alguém me põe a mão no joelho e me diz para estar quieto. Quem é que tem o direito de me impedir de rir descontroladamente de um dos números mais selvagens de Charlie Chaplin? Ninguém mais que o próprio Charlie Chaplin, porque é ele que está sentado ao meu lado.

O filme ainda não está pronto. Temos que o ajudar e o meu riso está deslocado. É como os risos que o próprio Charlie deu no Circo quando estava a ver os números dos palhaços.

"Maravilhoso, maravilhoso!" sussurrámos nós depois do bocado de filme ter passado e a sala de projecção ter sido acesa outra vez. Mas o patrão pergunta, "Podiam-me dizer o que é que viram?"

"Claro, facilmente. Está uma rapariga a vender flores numa esquina. Depois aparece Chaplin."

"Oh, ainda não." "Antes disso vem um homem com a mulher e compra uma flor."

"Um homem? Que tipo de homem?"

“Um homem que se parece um bocado com o Adolphe Menjou."

"É um homem elegante com uma senhora. Isso é importante. Agora o que acontece?"

"Depois o Charlie dobra a esquina da rua. Vê uma fonte de água a jorrar da parede e começa a tirar as luvas, como preparação para beber. Mas não tira a luva toda duma vez. Fá-lo dedo a dedo. No entanto, falta um dedo. Charlie procura-o em vão."

"Não, isso não está claro. Temos que filmar essa cena outra vez." (Ele explica-me que a cena é um fracasso. Ele tinha tentado tirar o primeiro dedo da luva e, como não o encontra lá, procurou-o no chão e depois começou a tirar os dedos da luva que existia mesmo.)

"Agora Charlie tira o copo do muro."

*

"Reconheceram o papel que estou a interpretar?"

"Como assim?"

"Estou um bocado diferente do que tinha sido antes, desta vez."

"Sim, tens um pequeno laço em forma de morcego e luvas. Queres parecer um vagabundo bem elegante, desta vez, não é? É esse o significado do incidente com o copo."

"Descreve-o, por favor."

"Charlie pega no copo, que está agarrado a uma corrente. A corrente cai sobre o estômago dele e, notando que daria uma esplêndida corrente para um relógio, ele tenta arrancá-la do muro, enquanto está a beber. Não consegue e afasta-se com um ar resignado na direcção da florista. Ela está a pedir."

"Pára, pára! Há uma coisa no meio."

Não, não nos conseguíamos lembrar absolutamente de nada.

"Vem um carro."

"Depois do carro chegar, sai um cavalheiro de lá e passa por Charlie, que o cumprimenta na sua maneira habitual."

"O que é que o carro faz?" Eu respondo que não sei e Upton Sinclair faz o reparo, "Acho que se vai embora."

"Oh, com os diabos, com os diabos," resmunga Charlie, angustiado, "um falhanço completo."

As pessoas que trabalham com ele estão igualmente angustiadas.

*

Continuo a descrever o que aconteceu. "A rapariga oferece uma flor a Charlie, naturalmente. Cai ao chão; baixam-se os dois e Charlie apanha a flor, mas a florista continua a procurá-la, embora ele lhe esteja a estender a flor. Apercebendo-se que a rapariga é cega, ele compra a flor e vai-se embora. Depois volta outra vez para descobrir se a rapariga é mesmo cega."

"Não, não! Como é que ele entra em cena da segunda vez?"

"Da segunda vez ele entra de forma muito precipitada, como se estivesse com pressa, mas na verdade fica no mesmo sítio e levanta os pés dele para cima e para baixo para que o barulho dos seus passos pareça desaparecer gradualmente à distância. Depois volta-se calmamente em bicos de pés e vai na direcção da rapariga e senta-se ao lado dela. Entretanto, ela esta a regar as flores e finalmente atira o resto da água no regador para a cara de Charlie. Ele escapole-se, volta uma terceira vez, e compra uma flor novamente. A rapariga quer fixá-la sobre ele e, enquanto procura a botoeira dele, descobre que a flor que ele tinha comprado antes já lá está. Assim, ela apercebe-se que foi por causa dela que ele regressou. Charlie indica que a outra botoeira ainda está livre, mas ela responde que as pessoas não usam flores nas duas botoeiras. Depois ele implora-lhe que fique com a flor, que ela prende no peito.

"E agora ela está apaixonada."

"Por quem?"

"Pelo Charlie."

"Oh, com os diabos, com os diabos!"

"O que é que foi?"

"Não passou ninguém?"

"Não, que eu saiba não."

"Oh, com os diabos, com os diabos. Não repararam outra vez no carro e no cavalheiro?"

"Não, não reparei em nada."

Charlie enterra cara dele nas mãos em desespero. Os assistentes dele também estão deprimidos com o que aconteceu. Porque é que é tão terrível que um estrangeiro, de passagem pela cidade, não compreenda um dos seus gags?

Mas é muito mais que um gag. É a ideia fundamental do filme. E falhou completamente a ser registada. Não era possível retirar outra conclusão da descrição que eu dei do que tinha visto. A rua é uma rua elegante, simbolizada pelo cavalheiro e pela senhora elegantes que lá aparecem primeiro. A florista pensa erradamente que o homem que sai do carro é o que lhe compra a flor e que voltou para a ver. O carro—ninguém reparou nisso—mantém-se na esquina da rua durante toda a primeira cena e volta a aparecer quando a rapariga cega está a dar a segunda flor a Charlie. Enquanto isto está a acontecer, o cavalheiro regressa e entra no carro dele. É ele, o homem rico com o carro, que desperta mesmo o amor dela. Charlie repara imediatamente neste erro, e durante o resto inteiro do filme tenta-se fazer passar pelo homem rico. Rouba dinheiro que dá a um médico para a curar da cegueira dela. É preso, e quando a rapariga o vê depois de ser libertado, parte-se a rir, porque não suspeita quem ele seja e ele parece tão engraçado como Charlie sempre pareceu. Mas se o público não compreende o quid pro quo trágico, o desespero de Charlie, a sua sensibilidade em relação à pobreza, o seu desejo súbito em assumir uma nova personalidade roubando dinheiro e ganhando depois a afeição da rapariga—estas coisas também não se percebem, e está tudo perdido.

"Temos que filmar a coisa toda outra vez," diz Charlie.

*

E agora começa o trabalho árduo e sério de dramaturgia e realização. Dura quase oito dias, e Charlie, mesmo a meio da noite, pode-se sair subitamente com um "Como é que seria se assim e assado com a florista?"

Foram escritos livros sobre actores, realizadores, pantomima, e o drama popular, mas ainda ninguém tentou descrever Charlie Chaplin, cujos métodos de realização são únicos, e cuja reputação é fabulosa, porque Charlie Chaplin escreve a história, adapta-a para cinema, e realiza-a. Não se devia anotar à mão ou gravar num ditafone tudo o que ele diz durante esta actividade?

A cena foi ensaiada durante oito dias a fio, e cada um de nós interpretava o papel da florista, o papel do homem a sair do carro, e o papel do motorista uma e outra vez, mas Charlie Chaplin era sempre Charlie Chaplin. Ele entregava-se cheio de entusiasmo a cada nova tentativa.

 "Como é que seria se...?"—e assim continua, interrupção a interrupção. Os defeitos dramáticos da situação inaugural são logo explicados. O facto de a rapariga confundir Charlie pelo homem a sair do carro não pode ser compreendido de maneira nenhuma pelo público, porque ainda não sabe da cegueira dela. Portanto este facto tem que ser revelado mais cedo, mas Charlie não o quer fazer porque acha que a descoberta trágica tem que ser feita por si próprio e pelo público simultaneamente. Será que se podia tornar a cena com o carro vívida o suficiente para o público se lembrar dela? Como é que seria se o homem saísse do carro e dissesse ao motorista, "Espera aqui." Imagine-se que Charlie fecha educadamente a porta do carro e a rapariga dá um par de passos nessa direcção!

Ou poderia ser feito desta maneira: suponha-se que o homem caminha atrás de Charlie ao mesmo ritmo que ele, continua atrás dele e acende um cigarro, para que Charlie pense que a flor que é estendida ao outro homem é para ele. O homem no carro deve ser de aparência bem indiferente ou deve ser um jovem muito elegante? Claro, a rapariga não o vê, mas o público vê e sente que ele deve causar uma grande impressão à rapariga. Desta forma o público tem à frente dos olhos a ilusão que existe na mente da rapariga cega.

Como é que seria se a rapariga, que o público agora reconhece como cega, dissesse a Charlie quando ele compra a segunda flor, "Dê isto ao motorista?" Como é que seria se Charlie estivesse a tentar ajudar o cavalheiro a entrar no carro e a florista tentasse dar a segunda flor pela janela? Mas a janela estaria fechada e não seria a janela, mas a porta aberta do carro, atrás da qual estaria Charlie.

"Maravilhoso, maravilhoso!" grita Charlie e tenta-o fazer. Volta à sua interpretação, mas de repente sai da sua bolha e recua outra vez, dizendo, "Não vai funcionar. Não conseguia interpretar o papel dum lacaio imediatamente a seguir a ter sido surpreendido pelo conhecimento de que a rapariga era cega e de que estava apaixonado por ela."

*

Permitam-me terminar descrevendo um episódio que ocorreu no camarim dele. À esquerda da divisão está um espelho e uma mesa de caracterização com um pente em cima e do outro lado está uma casa de banho. Uma tarde estávamos a beber chá quando uma senhora muito famosa, a melhor amiga de Charlie, foi anunciada. Ele foi ter com ela e eu apressei-me para dentro do camarim para pentear o meu cabelo. À frente do espelho estava pousado um pente, que era branco mas não estava muito limpo. Tinha uma grande massa de cabelo emaranhado. Arranquei-o, atirei-o para o chão e pus o meu cabelo em ordem. Depois ocorreu-me que alguém podia notar no monte de cabelo no chão polido e podia perceber que alguém tinha estado a usar o camarim do patrão em segredo. Talvez o cabelo estivesse a servir algum propósito, portanto voltei a pegar nele e pousei-o ao lado do pente.

Neste momento, um dos amigos de Charlie, Harry Crocker, entrou para se pôr um bocado mais apresentável. "Olha," disse-me ele e apontou para o objecto preto ao lado do pente branco. "Isso é o bigode. Ele teve sempre o mesmo durante quinze anos. Foi escolhido especialmente para ele por um barbeiro teatral nova-iorquino. Nenhum outro bigode consegue aguentar todo o tipo de tempo como este e nós perdemos completamente o rasto do barbeiro nova-iorquino que no-lo arranjou. O Charlie sempre disse que se este bigode se perdesse interpretava de barba feita." Devo ter ficado pálido com o medo. Pensem nisso—Charlie Chaplin sem um bigode—e a culpa era minha!  

in « I Work with Charlie Chaplin », Frankfurter Zeitung, 1929.
traduzido por João Palhares

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

77ª sessão: dia 26 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


E chegamos às Luzes da Cidade, filme de todos os milagres, de todos os sorrisos e de todas as lágrimas que será a nossa próxima sessão, de regresso ao sótão da velha-a-branca. Fruto de dois anos de trabalho com muitos avanços e recuos da parte de Chaplin, que não queria menos que a perfeição, estreou quando o cinema falado era a regra da indústria mas não foi menos bem sucedido por isso.

Chaplin, em Março de 1931 para o Cinéa-Ciné pour Tous, mostrando as suas reservas para com o cinema falado, contou que muito pensou sobre o assunto, dizendo que "quanto mais discutia esta questão com uns e com outros mais perplexo me via. Foi então que recordei alguns dos episódios mais marcantes dos meus filmes antigos, tentando discernir se ao lhes acrescentar palavras as diferentes cenas melhorariam em alguma coisa.

"Lembrei-me então da cena da caneta em Shoulder Arms, da consoada falhada da Quimera do Ouro, da cena do camião em que volto a encontrar Jackie, em The Kid, etc, e isso confirmou a minha primeira resolução: a palavra não teria acrescentado nada a isto tudo, bem pelo contrário."

Henry Bergman, colaborador de sempre de Chaplin, assistiu à construção da mais famosa das cenas da obra do realizador, e confessou a Mayme Ober Peak do Boston Globe em 1931 que "quando ele fez a última cena das Luzes da Cidade, em que a florista o reconhece. Eu estava sentado ao lado da câmara. Conseguia sentir os meus olhos a encherem-se de lágrimas gradualmente. 'É engraçado que me afecte desta maneira,' pensei eu. Voltei-me para trás e a anotadora tinha lágrimas a escorrer-lhe pela cara. Olhei para o operador de câmara, o Sr. Totheroh, que estava com o Charlie há 15 anos, e ele estava a chorar."

"Quando o Charlie viu a reacção, ficou como uma criança. Olhou para mim e disse, 'Ficou bem, Henry?' Depois ficou um bocado convencido e disse, 'Vou fazê-la outra vez' 'Oh, não a estragues, Charlie.' urgi eu. Mas ele fez a cena mais duas vezes e sempre melhor."

Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreveu que é o "penúltimo filme mudo de Chaplin, mas contendo uma banda sonora com música e efeitos sonoros. A rodagem durou quase três anos, do começo de 1928 ao fim de 1930. Sofre várias interrupções devido à chegada triunfal do filme falado, às hesitações de Chaplin e de forma mais geral aos seus métodos de trabalho, que ele queria tão livres, tão solitários e tão desligados de qualquer contingência material como os de um escritor ou de um pintor. Foi impressa uma metragem de película equivalente a cem ou cento e cinquenta vezes a metragem do filme definitivo. Graças a diversos testemunhos, sabe-se há já muito tempo que o primeiro encontro entre Charlot e a cega tinha requerido meses de rodagem. Mas um documento fabuloso e único (incluído no segundo dos três episódios sobre Chaplin de Kevin Brownlow e David Gill produzidos pela televisão inglesa e programados na França em Julho de 1983) permite ver – com esboços a apoiar – Chaplin nas roupas do seu papel no processo de realizar a cena e de procurar a melhor solução para mostrar que a cega toma Charlot por um milionário. Começada à volta do início da rodagem, essa cena só encontrou a sua conclusão em Setembro de 1930, no 534º dia de rodagem (dos quais só 166 tinham sido consagrados a verdadeiro trabalho com a equipa). Entre outras peripécias, Chaplin pensou em substituir Virginia Cherrill a meio da rodagem por Georgia Hale, a estrela de A Quimera do Ouro. Teve que desistir. (O episódio de Kevin Brownlow contém testes da última cena com Georgia Hale.) Por outro lado, ele voltou mesmo a rodar todas as cenas do milionário bêbado, substituindo Henry Klive por Harry Myers. Como sempre em Chaplin, estas condições de trabalho ao mesmo tempo ideais e extravagantes (se as compararmos às da maior parte dos filmes) ajudaram o autor a encontrar aquela simplicidade na perfeição que caracteriza a sua mise en scène. Como notaram muitos comentadores, e Pierre Leprohon em particular (in « Chaplin », Nouvelles Éditions Debresse, 1957), o « vagabundo », usando aqui, além do seu chapéu e da sua bengala, uma roupa relativamente asseada (antes da sua saída da prisão), é o personagem mais activo, mais lúcido e menos sonhador do filme. Mantém vivo o milionário deprimido e alcoólico e fá-lo experimentar os prazeres da amizade (nos períodos muito intermitentes em que este é capaz de os sentir). Ele alimenta os devaneios românticos da cega, permite-a curar-se e fá-la aceder a um melhor estatuto social. Sem ceder aqui a nenhum estudo social propriamente dito, Chaplin concretiza todo o conteúdo social e sentimental do seu filme através de duas personagens principais que nunca se vão encontrar, o milionário e a cega. A personagem do milionário permite a Chaplin representar de uma maneira memorável a relação episódica que existe a seus olhos entre o pobre, o marginal e as classes apossadas. O dia comum do vagabundo, é um banho de água fria tortuoso como um pesadelo, aliado a incertezas e a uma angústia permanentes. Todas as cenas do filme estão ligadas entre si por uma trama melodramática que é como a melodia eterna da obra, assegurando-lhe unidade e coerência e mantendo essa abstracção que observa o estilo de Chaplin desde as suas primeiras longas-metragens. Tendo confiado a duas personagens a responsabilidade de exprimir os aspectos fundamentais do filme, Chaplin pode dedicar um grande número de cenas ao burlesco puro. (Neste sentido, Luzes da Cidade é o último dos seus filmes em que a sua vitalidade cómica triunfa com tanta despreocupação e brio.) O burlesco puro aparece na evocação cómica da inadaptação do herói, especialmente quando este é confrontado, não com um indivíduo, mas com um grupo, com uma classe e com uma dada situação através dos quais só passa, como um meteoro, o espaço de uma sequência. O burlesco triunfa sobretudo nas cenas do apito e do combate de boxe. Esta última sequência (genial) dá-nos uma das chaves para o estilo de Chaplin. Ela é feita de planos muito longos (devido ao elevado número de deslocamentos de personagens). Não contém nenhum plano de corte. O seu ritmo quase coreográfico é essencial para a eficácia dos gags. Esse ritmo existe como tal e não precisa de ser apoiado por nenhum efeito de montagem. A câmara contenta-se em registar a acção e de a reflectir como um espelho. O público do mundo inteiro fez deste filme mudo e sonoro um triunfo, em 1931. A reposição de 1950, numa altura em que o mudo não era mais do que uma memória distante, não foi menos triunfal."

Até Sexta!

The Gold Rush (1925) de Charles Chaplin



por José Oliveira

Hoje, pouco depois do LUCKY STAR - Cineclube de Braga ter completado dois anos de existência, uma nova sala de cinema acolherá espantosas aventuras, dramas, gargalhadas, emoção, enfim, todos os segredos e revelações de uma arte puramente encantatória e ainda com tudo para dar. Dado este passo, e continuando o ciclo Charles Chaplin, nada melhor do que estrear um grande ecrã com uma obra que só pode ser vista na sua máxima força em dimensões desmesuradas, pois assim ela foi pensada e concretizada, de onde a demanda dos executantes do filme, dos protagonistas e dos próprios espectadores remete a todo o momento para uma experiência física que se perfaz plenamente no insubstituível gigantismo onde bate e se transfigura a fonte de luz primordial da sala escura. 

Em 1925, data de estreia do filme que seguidamente veremos, os grandes cineastas Americanos já tinham inventado o épico, com D.W. Griffith à cabeça e o seu The Birth of a Nation como paradigma; na Europa, o milionário Cabiria, de Giovanni Pastrone, dois anos antes do grande “patrão” americano ter apostado tudo na visão do nascimento de um tão convulso país, já tinha feito aparecer o grande fresco histórico e, por consequência, a monumentalidade possível numa arte nova que a isso se prestava. Por essa altura John Ford estreava The Iron Horse sobre o nascimento das inacreditáveis linhas férreas e Cecil B. DeMille já tinha dado o tiro de partida para a sua poesia bíblica e maior do que o ecrã; por outro lado, Griffith refugiava-se em melodramas íntimos onde seres fugitivos podiam chegar da grande paisagem mas se escondiam em quartos. The Gold Rush combina a grande e a pequena escala, o épico carregado de efeitos especiais que hoje está na saga Star Wars e a pequena história de amor, de costumes e de destino que poucos ainda cultivam, sendo James Gray por ventura o mais precioso. 

Inspirado na febre do ouro do Klondike, Chaplin, já detentor de grandes meios e autoridade, começou mesmo por se aventurar na Sierra Nevada ela mesma, atirando-se à fera da natureza como muitos anos depois aventureiros inconscientes como Werner Herzog ou Francis Ford Coppola fariam, tocando a loucura; mas como veremos no filme as forças da natureza nunca ninguém as deteve, e o realizador teve de se recolher nos estúdios para chegar às proezas técnicas e estéticas que marcariam um antes e um depois: a fúria incontrolável dos ventos e da neve com os homens no centro do turbilhão a bailarem ao Deus-dará, a casa oscilante em equilíbrio trágico-cómico, a morte do criminoso Black Larsen. Mas se Chaplin é um inventor de formas, um pioneiro da mecânica e da pura ilusão cinemática e circense, o seu poder de figuração encontra aqui um ponto de chegada, um risco e um inesperado que hoje confunde todas as cronologias: em tempo de vanguardas e de não-definição que o começo dos anos 20 do século passado trouxe à história da arte em geral e também marcadamente ao cinema – de Marcel Duchamp a Man Ray, passando por René Clair – e poucos anos antes de Un chien andalou de Luis Buñuel, já Chaplin fazia curto-circuito na narrativa e na sua lógica de causa-efeito para nos oferecer largos momentos de puro delírio ou transformar um vagabundo num grande galo sob a demência da fome. 

The Gold Rush é um espanto a todos estes níveis e um nunca mais acabar de surpresas, à imagem do famoso plano da fila humana que troca o amor à vida pelo brilho possível do ouro tentando vencer o inferno gelado da montanha a perder de vista, breve cena que compacta essa loucura animalesca justificando por si a invenção do cinema, numa vertigem sensorial que a literatura ou a pintura só de outro modo podem escancarar. Mas no meio de tantos truques o que Chaplin nos prova, frontalmente, subtilmente e de corpo inteiro, é que o maior efeito especial continua a estar na imaginação e no mundo interior de cada homem. Por isso a dança dos pãezinhos ou o suculento cozinhado das botas tem uma graça e uma luz que emana dos seus mágicos artistas que ao mesmo tempo que “rivaliza” com as ilusões impossíveis nos faz perceber que esses impossíveis foram feitos pelos mesmos mestres do pequeno teatro, do pequeno gag, da pequena nuance. Homens, em primeiro lugar, e não máquinas anónimas, preparando já terreno para o Modern Times que veremos brevemente. 

Mas outra das coisas que continua a impressionar cada vez mais a cada nova visão é a maneira como da máxima inverosimilhança – seja das situações, seja do modo como se chega ao final feliz no barco onde tudo se une – se encontra a máxima nitidez, se acredita sempre, se chega ao fluido movimento da realidade que é por excelência o movimento desta arte. Serge Daney disse certo dia que somente pelo movimento se percebia tudo em Kenji Mizoguchi - das lendas e bruxarias à ancestralidade – e o que acontece em Chaplin, e mais do que nunca neste filme que passa da febre da ganância nos altos à febre do poder e do sexo em salões manhosos de ampla sociedade, terminando em águas que nos seus filmes tanto podem ser de ninguém e de liberdade como de aprisionamento, é dessa ordem: percebendo-se que a interacção dos seres com o meio é deste mundo e não fazendo batota, não suavizando os vagabundos dentro do salão ou a fronha dos poderosos, consegue-se depois acreditar no extraordinário, seja na casa sobre o precipício, na redescoberta do ouro ou na aparição milagrosa da mulher; isso, e evidentemente um olhar e uma pesquisa, uma compreensão e uma elevação moral que permite sempre achar o ângulo justo, a luz adequada, o ritmo e a sucessão das cenas sem margem para dúvidas, o andar fugitivo e o brio do solitário prospector e depois a atrapalhação e a relativa indistinção quando se torna milionário, enfim, a impertinência inicial da mulher e o seu coração a guiá-la para a verdade do seu sonho, a sua graça. 

Chaplin, muitos anos depois de ter feito este filme, quando chegou a colocar comentários por cima da imagem e a arrancar uma banda-sonora que não diminuiu o assombro visual mas antes se fundiu harmonicamente com ele – as notas colando-se à luz ou havendo luta mútua – confessou que seria por The Gold Rush que gostaria de ser recordado. Da montanha mais alta e da solidão mais aguda para o quarto da juventude e do mundo interior, uterino – e A Countess from Hong Kong, o seu último opus, seria isso na sua totalidade – eis o movimento necessário e talvez salvador. O incomensurável ou o minúsculo, no maior ecrã do mundo. Assim seja feita a sua vontade.

sábado, 20 de janeiro de 2018

76ª sessão: dia 23 de Janeiro (Terça-Feira), às 21h30


Das arenas e dos trapézios do Circo, voltamos agora ao Alaska da Quimera do Ouro, a nossa próxima sessão, iniciando as exibições na sala de cinema do Braga Shopping. É a terceira longa-metragem de Charlie Chaplin, feita depois do insucesso de A Woman of Paris, em que regressa à sua personagem do vagabundo e cujas vestes não tirará até ao Grande Ditador. É um dos filmes mais bem amados do realizador, pleno de cenas míticas, conhecidíssimas e que talvez dispense apresentações. Mas fazemo-lo na mesma.

Chaplin, na sua autobiografia, descrevendo a sua inspiração para o filme, escreveu que "estava agora livre para fazer a minha primeira comédia para a United Artists e ansioso para superar o sucesso de The Kid. Esforcei-me, pensei e cismei durante semanas para tentar ter uma ideia. Dizia continuamente a mim próprio: ‘Este próximo filme tem que ser um épico! O maior de todos!’ Mas não me vinha nada. Então, num Domingo de manhã, enquanto passava o fim-de-semana na casa dos Fairbanks, sentei-me com o Douglas depois do pequeno-almoço, a olhar para vistas estereoscópicas. Algumas eram do Alaska e do Klondike; uma era uma vista do Porto de Chilkoot, com uma longa fila de garimpeiros a escalar pela sua montanha congelada, com uma legenda impressa no verso a descrever as provações e as dificuldades suportadas ao tentar transpô-lo. Isto era um tema maravilhoso, pensei eu, suficiente para estimular a minha imaginação. Começaram-se a desenvolver ideias e objectivos cómicos imediatamente, e, embora não tivesse história, começou a crescer a imagem de uma.

"É paradoxal que na criação de comédia a tragédia estimule o espírito do ridículo; suponho eu porque o ridículo é uma atitude de desafio: temos que rir face à nossa impotência contra as forças da natureza – ou dar em maluco. Li um livro sobre a Expedição dos Donner que, a caminho da Califórnia, perderam a estrada e ficaram bloqueados pela neve nas montanhas da Sierra Nevada. Só sobreviveram dezoito dos cento e sessenta pioneiros, morrendo a maioria de fome e de frio. Alguns recorreram ao canibalismo, comendo os seus mortos, outros grelharam os seus sapatos para aliviar a fome. Eu concebi uma das nossas cenas mais engraçadas a partir desta tragédia angustiante. Em fome extrema eu fervo o meu sapato e como-o, tirando os pregos como se fossem ossos de um capão delicioso, e comendo os atacadores como se fossem esparguete. Neste delírio de fome, o meu parceiro está convencido que eu sou uma galinha e quer-me comer.

"Desenvolvi uma série de sequências cómicas durante seis meses e comecei a filmar sem um guião, achando que uma história se desenvolveria das rotinas e dos objectivos cómicos. Claro que fui conduzido a muitos becos sem saída, e foram descartadas muitas sequências engraçadas. Uma delas foi uma cena de amor com uma rapariga esquimó que ensina o vagabundo a beijar à esquimó esfregando os narizes. Quando ele parte na demanda do ouro, esfrega o nariz dele apaixonadamente contra o dela numa despedida carinhosa. E enquanto se afasta volta-se para trás e toca no seu nariz com o dedo do meio e atira-lhe um último beijo carinhoso, limpando depois o dedo nas calças, subrepticiamente, porque está um bocado constipado. Mas a parte da esquimó foi cortada porque entrava em conflito com a história mais importante da rapariga do salão de dança."

O realizador italiano Michelangelo Antonioni escreveu sobre A Quimera do Ouro para o jornal L'Italia libera em 1944, dizendo que "o filme é um dos mais belos que o cinema já nos deu, é uma obra de poesia e, portanto, está completa em si mesma, perfeita. Nascida muda, muda deve permanecer. Sob um ponto de vista comercial, talvez possamos tolerar a música, considerando o facto de que todos os filmes mudos já foram projectados com o acompanhamento tradicional do pequeno piano, mas o comentário falado é verdadeiramente insuportável. Se se chega a deixar de o ouvir é graças ao valor intrínseco da obra que continua a ser, com O Circo, a síntese mais completa da arte de Chaplin. Falou-se muito deste trabalho porque ainda se tem que elogiá-lo; basta dizer que, depois de muitos anos, isso confirma uma impressão antiga: que Chaplin, aqui, chega também a uma unidade plástica excepcional com a unidade psicológica normal. Avesso a qualquer complacência formal, ele compôs aqui uma sinfonia discreta e sóbria a preto e branco que da fila de garimpeiros na montanha à silhueta do mimo na tempestade, passando pelo prodigioso arabesco do travesseiro estripado, potencia ainda mais o testemunho extraordinário dos sentimentos. O final continua estranho, mas isto também continua estranho à solidão humana de Charlot."

Já Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreveu que é a "segunda longa-metragem de Chaplin (depois de A Woman of Paris) para a United Artists, que tinha co-fundado em 1919 com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e David Wark Griffith. É o filme de Chaplin que se parece mais com um filme de aventuras e o cineasta usa essa característica para aperfeiçoar e acentuar novamente a solidão do seu personagem. Sozinho na sociedade e nos seus amores infelizes, Charlot também está sozinho no meio da imensidão de uma natureza hostil. As suas emoções e as suas dificuldades (medo, fome, etc.) são aqui ainda mais vivas e mais fundamentais que nas cidades. Isso não impede que a maior parte das cenas se desenrole em espaços fechados e bastante reduzidos (a cabana, o saloon), porque o aspecto coreográfico do burlesco de Chaplin exige limites precisos bem como a possibilidade de examinar ao microscópio os deslocamentos e as mímicas do actor. A rodagem começou em exteriores na Sierra Nevada, com Lita Grey no papel feminino principal. Dessa primeira fase da rodagem só sobrevivem os planos da fila de prospectores, no começo. De seguida, Chaplin refez em estúdio a maior parte das cenas já rodadas e deu o papel feminino a Georgia Hale. (Aqui, os biógrafos divergem quanto às razões dessa mudança: o casamento de Chaplin com Lita Grey começa a dar para o torto; Lita Grey está grávida e não pode rodar; Chaplin está insatisfeito com a sua interpretação.) A realização muito dispendiosa de A Quimera do Ouro durou catorze meses mas foi amplamente benéfico, dado o sucesso gigantesco do filme (ele nunca desvaneceu durante as reposições do pós-guerra: vê-se então uma cópia sonorizada em que os intertítulos, para lamento de muitos críticos, foram substituídos por um comentário um bocado insistente e grandiloquente). A beleza do preto e branco, a sobriedade, as nuances e a emoção do trabalho dos intérpretes, a perfeição cómica das cenas que se desenrolam em lugares fechados (a refeição com o sapato; Charlot confundido por uma galinha pelo seu companheiro; as oscilações perigosas da barraca na beira do abismo) contribuíram para fazer do filme um dos universalmente mais apreciados e um dos menos discutidos da obra de Chaplin. Para além da virtuosidade do estilo e da diversão do tom, a personagem de Charlot vai de frustração em frustração. Possui uma tristeza e uma envergadura trágica em relação às quais o epílogo feliz parece uma conclusão razoavelmente aceitável e artificial. 

"N.B. Comparada à original, a versão sonorizada (1942 e 1956) ficou amputada de duas pequenas cenas (com o urso e na cabana). 

"BIBLIO. : narração em 95 fotogramas in « L’Avant Scène » nº 219-220 (1979)."

Até Terça-Feira!

Apresentação de "O Circo", por João Lameira

The Circus (1928) de Charles Chaplin



por João Palhares

Há quem tenha sido apresentado ao mundo do cinema por ouvir contar estórias dos pais ou dos avós antes de ir dormir. Quem não tenha visto uma única curta do Bucha e do Estica e soubesse as suas aventuras de cor, por pedir a um deles que as contasse uma e outra vez. Talvez já na altura parecessem a encenação de um mundo e de um prazer de criança perdidos, como um suspiro nostálgico e revelador. “Nostálgico mas nunca saudosista,” como diria o José Lopes, sempre cheio de razão. Quando se viu finalmente essas curtas parecia tudo tão familiar, era difícil acreditar que havia dois actores chamados Oliver Hardy e Stan Laurel a interpretar os seus papéis. É difícil que hoje se possa enganar um miúdo assim, mas a verdade é que Laurel e Hardy já se foram e o Bucha e o Estica continuam aqui, lembrando as pessoas de outras pessoas e dessas noites em que era uma palavra que valia por mil imagens. Talvez por isto exista quem não se importe que alguém lhe conte um filme e lamente hoje a falta de talento generalizada para contar estórias. Da tradição oral que além de passar testemunho e conhecimento preciosos, ligava profundamente as pessoas. 

Se à noite era o cinema, de dia era o circo, e a descrição das macacadas e dos sarilhos do duo americano era exemplificada pelas pantomimas dos palhaços e dos mimos. Nada de mais didáctico e elucidativo. Houve um tempo em que o circo e o cinema eram duas faces da mesma moeda, dos talentos que singravam na vida itinerante às almas que fugiam da vida. Dos mágicos e das aberrações, dos animais e dos homens. O mundo numa arena circular e imperfeita. Também Murnau foi ao mundo do circo e fez um filme que hoje só mesmo contado é que se pode ver, 4 Devils, sobre quatro órfãos resgatados e perdidos pela vida na arena e nos trapézios. De He Who Gets Slapped de Victor Sjöström, ao Maior Espectáculo do Mundo de DeMille ("A fierce, primitive fighting force that smashes relentlessly forward against impossible odds: That is the circus—and this is the story of the biggest of the Big Tops—and of the men and women who fight to make it—The Greatest Show On Earth!", narrava-nos o realizador no princípio do filme), passando pelo Freaks de Tod Browning, que conta exactamente a mesma história do filme de Chaplin que hoje vamos ver, já foi muito o interesse do cinema pela vida do circo. Antes de se propagar o medo universal aos palhaços (como é que aconteceu, alguém sabe?), antes dos mimos acharem que têm que pedir desculpa por serem mimos e por terem talento para o serem. 

Chaplin dá-nos, então, este filme em 1928. O que o interessava ou aproximava ao mundo do circo não é difícil de adivinhar. Também ele ia em digressão pelo país fora e assistia aos dramas e às anedotas de bastidores da companhia teatral inglesa de Fred Karno ou em rodagem com a sua própria companhia de produção. Conhecia a vida da estrada. Também ele sabia dos problemas concretos da arte de fazer rir, de quanto se estragava a espontaneidade com a rigidez de um número demasiado pensado ou de quão a sério se tinha que levar uma dada situação para parecer engraçada a outros olhos (senão porque é que opõe ao jogo de cadeiras repetitivo do número do barbeiro um jogo semelhante cheio de nuances entre a sua personagem e a do patrão do circo?) Das merendas partilhadas e dos olhares trocados com uma mulher, embora não fosse preciso ir ao circo para experimentar isso. Não deixam de fazer rir a bandeiras despregadas os seus acessos de violência quando acha que a amada dele também o ama. Aos saltos e aos pontapés pelo circo fora, com um sorriso endiabrado na cara. Na Quimera do Ouro, desfaz uma cabana inteira até a rapariga regressar e o olhar completamente atónita. O vagabundo de Chaplin não vive à larga - longe disso, como é óbvio -, mas pode dar-se ao luxo de discutir termos de contrato com o patrão, de limpar com muito cuidado o seu chapéu redondo, de dar ares graciosos de aristocrata. Não há como o pobre para mostrar ao rico como gastar o dinheiro ou como viver a vida. E quando se ri dos números dos palhaços quando está tudo sério a tentar trabalhar (que com o trabalho não se brinca)? 

O Circo também nos reenvia às memórias que achávamos perdidas, suscitadas pelas aventuras e desventuras do maltrapilho universal. De um avô a pôr o neto a usar um balde do lixo municipal como casa de banho sem se importar com quem pudesse estar a ver, de uma criança a acenar e a cumprimentar as pessoas como se fosse o presidente da república. Dos primeiros filmes falados e das últimas idas ao circo. E é sempre triste quando o circo se desmonta e vai para outra cidade, há sempre algo que morre dentro de um miúdo, e nos filmes é sempre o fim de mais qualquer coisa. É o regresso ao outro circo, o das nossas vidas. Sinal do medo que se possa crescer o suficiente para se esquecerem os dias de revelia ao relento e ao sol. 

Mas o cinema não deixa.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

75ª sessão: dia 19 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


Ao contrário do anunciado, a nossa próxima sessão será O Circo e não The Kid (que, por questões técnicas, teve que ser adiada para o dia 30 de Janeiro). É a quarta longa-metragem de Charlie Chaplin e a sua carta de amor a um mundo itinerante não muito diferente daquele que fez parte durante o início do século XX - a companhia teatral inglesa de Fred Karno. Será apresentado em vídeo por João Lameira, crítico português e um dos fundadores do site À Pala de Walsh.

Numa reportagem escrita durante a rodagem do filme (re-publicada no livro de David Robinson sobre Chaplin, mas de fonte e autor desconhecidos), relata-se: «Homens suados apressam-se no estúdio Chaplin. Carpinteiros, pintores, electricistas, mentes técnicas, trabalhadores. Não se pode deixar Charlie à espera. Uma caravana de vagões de circo é engatada atrás de quatro camiões com motores enormes. Partem para a portela de Cahuenga. Um puxão longo e duro até Glendale. O plateau está inundado de luz. Vem de todas as direcções. O vagão com o dínamo zumbe. Portanto, os homens trabalham pela noite fora.

«Raia a luz do dia. A manhã está fria. Ecoam estalidos de uma dúzia de fogos. É uma faulhada californiana fora do comum. Os carros começam a chegar. O rugido dos tubos de escape assinala a sua vinda. Há um ruído estridente adicional. A grande limusina azul pára. Tem que se acabar O Circo. Chegou toda a gente a horas. Agora o sol está a atrasar as coisas. Porque é que não se despacha e aparece por cima das montanhas? O Vagabundo quer sombras compridas.

«Seis horas e metade da manhã é desperdiçada. A borda da arena do circo está escura demais. Não parece natural. O Vagabundo recusa-se a trabalhar de modo artificial. Os homens começam a suar outra vez. Trinta minutos mais tarde a voz suave fala. “Óptimo! Está óptimo! Vamos filmar!”

«As câmaras giram. Os vagões de circo movem-se pela vasta extensão de espaço aberto. Há uma bela neblina em plano de fundo. Os cavalos e as rodas dos vagões provocam nuvens de poeira. A imagem é deslumbrante. Não se acreditaria que um artista fosse capaz de a pintar. A cena é repetida vinte vezes.

«As câmaras aproximam-se da arena. Com cuidado, os operadores medem a distância. Das lentes até ao Vagabundo. Ele está sozinho no centro da arena.

«Ele ensaia. Acção para a câmara, depois. Oitenta pés (nota: vinte e quatro metros). A actividade é retomada. E outra vez! E outra vez! Cinquenta pessoas assistem. Todos os membros da companhia. Há poucos olhos que não se humedecem. A maior parte deles conhece a história. Sabiam o significado deste último "plano".

«"Como é que este ficou?" veio a pergunta do Vagabundo. Cinquenta cabeças acenaram afirmativamente. “Então vamos repeti-lo; só mais uma vez” disse o homem de calças largas e chapéu de coco e casaco desajustado e sapatos de batalha. O sol estava a subir. As sombras compridas ficavam cada vez mais pequenas. “Dêem o dia por terminado,” disse o Vagabundo, “estamos aqui outra vez amanhã às quatro."»

Gerald Mast, crítico americano há muito desaparecido, escreveu sobre Chaplin e este filme em The Comic Mind: Comedy and the Movies, defendendo que "ao contrário dos filmes dos anos anteriores, O Circo não deixa Charlie cair num ambiente onde o vagabundo realmente não pertence. Um circo é um local onde Charlie bem podia pertencer, porque o circo é uma sociedade da estrada. Mas paralelamente ao outro motivo dominante dos First Nationals, O Circo preocupa-se em saber quem é Charlie ao certo e, por extensão, quem não é. A perseguição visualmente maravilhosa na casa dos espelhos, em que há aparentemente centenas de reflexos de Charlie, é também uma metáfora crucial para todo o filme. Dessas centenas de reflexos, qual deles é a figura real e quais são meras sombras? Na mesma sequência da perseguição, Charlie faz-se passar por um boneco mecanizado. Qual deles é o homem e qual deles a máquina que parece ser um homem? 

"Umas das coisas que Charlie não é, é um palhaço de circo convencional. Charlie só é divertido como palhaço de circo quando leva a sua vida normal—a tentar evitar um polícia ou a carregar um conjunto de pratos. Mas quando Charlie faz ensaios para se tornar um palhaço de circo normal, é terrivelmente pouco engraçado em duas rotinas definidas—o número do "William Tell" e o número da "Barbearia". A comédia de Charlie não se consegue encaixar em padrões nem rotinas. As coisas mais engraçadas que ele faz nos seus ensaios são rupturas com as rotinas, os seus próprios erros e improvisações (embora não divirtam o dono sem sentido de humor do circo)."

No Dictionnaire du Cinéma, Lourcelles escreveu que o "o filme é rodado durante um dos períodos mais difíceis de Chaplin uma vez que tem que passar pela campanha de difamação que Lita Grey conduz pela América fora para ter o seu divórcio e que vai levar o cineasta à beira da depressão nervosa. Esta campanha vai-se reflectir no sucesso do Circo, que será melhor acolhido na Europa do que no seu país de origem. Os seus problemas vão levar Chaplin a adiar durante um ano o final da rodagem e o lançamento do filme. A segunda sequência (perseguição do vagabundo através do parque de diversões) é particularmente deslumbrante. Constitui um dos cumes da arte burlesca de Chaplin, em que o ritmo tem tanta importância e dá a sua música própria e o seu ordenamento à profusão abundante de gags. Em Chaplin, o ritmo e a coreografia têm o mesmo papel em relação aos gags que o melodrama em relação à intriga : um papel unificador, amplificador e lírico. Essencialmente, e tirando esta sequência, O Circo é uma obra muito equilibrada, amarga e triste, desenrolando-se num ritmo bastante lento. O vagabundo tornou-se gradualmente um personagem inteiramente positivo e até heróico, e aqui assistimos a um primeiro resultado dessa evolução. Ele paga o mal com o bem e, infeliz ele próprio, torna os outros felizes. A relação dele com o director que o despede e volta a contratar constantemente tem, menos sistematicamente, esse aspecto de « banho de água fria » que vai caracterizar a amizade episódica do milionário e de Charlot no filme seguinte de Chaplin, Luzes da Cidade. Vai-se notar essa particularidade estranha e significativa do personagem, aqui confrontado com o universo do espectáculo : quando está infeliz, perde as suas virtudes cómicas. Chaplin não sofreu pessoalmente essa influência nefasta da sua vida privada sobre a sua arte ; mas sem dúvida que às vezes o receou e que aqui o quis exorcizar.

"N.B. O terceiro episódio da série « Unknown Chaplin » de Kevin Brownlow e David Gill (transmitida em França em Julho de 1983) contém cenas importantes que Chaplin nunca integrou no filme. Uma delas é particularmente bem conseguida. Charlot quer-se fazer valer junto da equitadora. Num café, paga a um cliente para o espancar. O cliente aceita, recebe o dinheiro os golpes e vai-se. Surge então o irmão gémeo do cliente, que Charlot confunde com o outro. Põe-se a bater-lhe, acreditando ter negócio na mesma. O outro reage e põe Charlot K.O. É o rival dele, o funânbulo, que vem então em seu socorro e a cena termina exactamente ao contrário do que queria Charlot : a equitadora vai admirar ainda mais o funânbulo. Apesar da sua qualidade, estas cenas que se passam fora do circo foram suprimidas por Chaplin, sem dúvida numa procura de unidade dramática. Mede-se aqui (a extrema) exigência de Chaplin nesse domínio."

Até Sexta!

Apresentação de "Opinião Pública", por Joseph McBride


(podem-se activar ou desactivar as legendas portuguesas no vídeo)

sábado, 13 de janeiro de 2018

A Woman of Paris (1923) de Charles Chaplin



por João Palhares

Já se sabe do lugar insólito que A Woman of Paris ocupa na obra de Chaplin, tanto por não ser protagonizado por ele ou girar à volta da sua personagem do vagabundo, como por não ser uma comédia a cem por cento - embora também se possa defender que a partir de Vida de Cão, pelo menos, não há uma única comédia a cem por cento na obra de Chaplin, os risos e as lágrimas cruzam-se constantemente e a tal ponto que nos podem deixar perfeitamente desorientados e embasbacados, como pudemos comprovar a semana passada em Luzes da Ribalta, cuja cena final põe a comédia a brotar literalmente da tragédia. Também se sabe que o risco tomado por Chaplin não deu frutos, voltando dois anos depois ao vagabundo e às suas pantomimas para uma aventura no Alaska. A ideia era lançar a carreira de Edna Purviance, cúmplice do actor e realizador desde os tempos da Essanay, o segundo estúdio em que Chaplin trabalhou, e olhando para o trabalho dela no filme só podemos lamentar que não conseguisse fazer bastantes mais papéis (veja-se a cena em que atira o colar de pérolas pela janela e preste-se atenção às suas reacções). Mas estes malogros não impediram A Woman of Paris de se tornar numa referência central para vários cineastas, inspirando Ernst Lubitsch nas suas fintas míticas à censura exercida pelo Código Hays. 

E não se pode deixar de pensar em Lubitsch na cena da festa das amigas de Marie St. Clair (a personagem que Purviance interpreta no filme), em que um homem se enrodilha num pano branco quando sabemos que está a acontecer exactamente o contrário à mulher que no plano anterior víramos vestida com o dito pano; na cena da massagista que parece estar a censurar a amiga de Marie com o olhar e a castigá-la por interposta pessoa quando bate com as mãos nas costas da cliente; no passeio de Adolphe Menjou pelo quarto de Purviance (como nos lembra Joseph McBride), com uma confiança que nos inspira bastantes ilações; o campo-contra-campo muito elucidativo do jantar em que somos apresentados à personagem de Menjou, Pierre Revel, acompanhado duma Marie completamente transformada desde a última vez que a tínhamos visto na sua pequena cidade, e em que o par formado pela solteirona mais rica de Paris e o rapaz que Revel descreve com um encolher de ombros serve de espelho e reflexo à relação de Marie com o solteirão mais rico de Paris. A quem encolhe Revel os ombros, então? A leveza formal conseguida por Chaplin para este filme tão trágico está intrinsecamente ligada à leviandade com que as personagens se tratam umas às outras e com que olham para a vida e para o mundo. O elemento destabilizador é o Jean Millet de Carl Miller, cujas aparições, além de destoarem com o comportamento das outras personagens, destoam também com a leveza formal mantida durante a sua ausência, como trovões solitários que só nos podem fazer duvidar da normalidade aparente das vidas destes parisienses, que podiam ser nova-iorquinos, madrilenos ou bracarenses. 

Chaplin, como sempre, fala de nós. De si próprio, também. De todas as vezes em que se é frívolo demais e não se mostra qualquer arrependimento, de todas as vezes que nos julgamos melhor que os outros e os tratamos como subalternos ou seres inferiores, dos subterfúgios e das desculpas egoístas e esfarrapadas que às vezes se dá aos amigos, da preguiça e da volúpia, dos insultos que às vezes saem como gestos involuntários, soluços, arrotos, do apego ao dinheiro e dos esquemas que se montam para o arranjar, das recusas estúpidas e dos assentimentos com senão, das falsidades e dos fingimentos que se julga trazerem benesses, do sucesso fácil e dos sorrisos e das companhias falsas que se apegam a ele como moscas, do fazer que se sabe quando não se sabe nada, do dizer que se fez quando não se fez nada, dos desentendimentos e dos desencontros inocentes ou fatídicos que tantas vezes acontecem, das humilhações que se provocam por malícia, por vingança ou por acidente. O que é que estas coisas podem causar a curto ou a longo prazo, a quem está do outro lado? Pensa-se nisso ou encolhe-se os ombros? 

Pode-se passar a vida inteira a cruzar pessoas sem conhecer ninguém a sério, que unha com carne não é só uma expressão. O filme de Chaplin acaba com um carro e uma carroça a cruzarem-se na estrada. Num está Pierre e noutra está Marie, sem sequer se verem. Nada de muito diferente do que acontecia quando supostamente se conheciam, é o que nos poderá estar Chaplin a mostrar. Mostra-nos também que o carro vai a toda a velocidade para lugar nenhum, antes do dono encolher os ombros pela última vez, e que a carroça vai devagar ao longe, com muita vida e camaradagem lá dentro. Não é preciso dizer quem ganhou. Nem é preciso falar em ganhar.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

74ª sessão: dia 12 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


No auge absoluto da sua fama, conquistada com a sua personagem do vagabundo, presente em tantas curtas e em The Kid, estreado dois anos antes, Charles Chaplin largou os farrapos e ficou apenas atrás das câmaras, esperando lançar assim a carreira de Edna Purviance, sua musa e colaboradora na Essanay, na Mutual e na First National. Inspirado nas aventuras amorosas de Peggy Hopkins Joyce, estreou em 1923 A Woman of Paris, que será a nossa próxima sessão, apresentada em vídeo por Joseph McBride, um repórter de investigação que privou com Hawks, Ford, Capra ou Orson Welles e que lançará, este ano, um livro sobre o cineasta alemão Ernst Lubitsch.

O público americano não gostou deste lado mais dramático de Chaplin (ignorando ou fingindo que ignorava que ele estava presente em quase todos os seus filmes) e o filme foi um insucesso. Mas acabou por se tornar um marco na evolução da comédia norte-americana, tornando-se o elo improvável entre as críticas de costumes glamorosas de Cecil B. DeMille e a tenacidade cómica sofisticada de Lubitsch.

David Robinson, autor de Chaplin, His Life and Art, escreveu que "com A Woman of Paris, Chaplin inaugurou todo um novo estilo de comédia de costumes, e novos estilos de interpretação que se lhe adequavam. O próprio génio de Chaplin como actor cómico baseava-se na sua observação do comportamento humano. Agora, ele punha em prática as suas descobertas com um drama sério - explorando formas de revelar as agitações interiores dos corações e das mentes das suas personagens através das suas acções e expressões exteriores.

"Ele encontrou intérpretes ideais para as suas ideias com o brilhante Adolphe Menjou e em Edna Purviance, com a sua longa experiência em interpretar as ideias de Chaplin. Eles interpretam os seus papéis com uma subtileza miraculosa, e uma restrição sem precedentes, nesta altura. Chaplin fez um comentário profundo sobre as suas descobertas e sobre toda a arte da melhor interpretação para o ecrã: “Como reparei… os homens e as mulheres tentam esconder as suas emoções em vez de as tentar expressar. E foi esse o método que eu persegui… tornar-me o mais realista possível”."

João Bénard da Costa, no segundo volume dos seus Filmes da Minha Vida, escreveu que "A Woman of Paris abre com um dos avisos mais estarrecedores que já apareceu em qualquer filme. Textualmente, diz-se: «In order to avoid any misunderstanding I wish to announce that I do not appear in this picture. It is the first serious drama written and directed by myself.» Assinado: CHARLES CHAPLIN.

"Nenhum outro realizador, nesse ou em outro tempo, podia começar um filme assim. Ou, se começasse, o ridículo matava-o. Nenhum outro actor-realizador (ou actor passado a realizador) ousaria começar um filme assim, por mais célebre que fosse ou seja. Talvez não fosse vítima do ridículo, mas seria vítima dos misunderstandings que afirmava querer evitar.

"Basta um tal aviso para se perceber como Chaplin foi um caso único e para se perceber como Chaplin era já um caso único em 1923, ano da estreia de A Woman of Paris. Era - e sabia que o era - o mais famoso nome do cinema mundial e, talvez, o homem mais famoso do mundo.

"Mas essa fama devia-a à personagem que criara e interpretara, em mais de 70 filmes, desde a estreia de Making a Living, a 2 de Fevereiro de 1914, quando tinha 24 anos. Em 1923, aos 34, Chaplin era Charlot. Um sem o outro não eram concebíveis. Por isso, ao eliminar Charlot, e ao eliminá-lo pela primeira e única vez (antes de definitivamente o «matar» em The Great Dictator, dezassete anos depois), Chaplin sentiu-se obrigado a dizer quem era. Como se nos avisasse: vão ficar privados de mim, mas só de uma parte de mim. Eu, myself, Charles Chaplin, estou aqui, embora ausente. Eu, myself, escrevi e realizei o filme. Embora eu, myself, não apareça nele como Charlot."

No seu Dictionnaire du Cinéma - Les Films, Lourcelles escreveu que Woman of Paris é a "segunda longa-metragem de Chaplin depois de The Kid. É também o primeiro dos seus filmes em que não aparece como actor principal, experiência que só repetirá no decepcionante Condessa de Hong Kong. Aqui, Chaplin está no auge da sua arte e esta obra, aparentemente marginal na sua carreira, diz muito sobre si próprio e sobre a sua visão do mundo. É como se todo o cenário e todo o fundo social dos seus outros filmes passassem subitamente a primeiro plano, desaparecendo ao mesmo tempo a personagem de Charlot, a emoção melodramática e a vitalidade burlesca. Chaplin aparece aqui apenas como pintor de costumes – e que pintor de costumes ! – irónico e cruel, sem complacências nem compaixão pelo seu trio de personagens, aos quais deixou uma complexidade e uma amoralidade assombrosas. Durante toda a intriga, eles não terão senão aquilo que mereceram e o seu destino, dentro de um mundo impiedoso e finalmente « justo », vai ser digno dos seus caracteres em todos os aspectos. É esta a dura lição que emerge de um filme rodado sem argumento, ao critério da inspiração e da virtuosidade vertiginosa do autor. Invisível durante décadas, A Woman of Paris parece hoje extraordinário pela modernidade, pela aridez expressiva, pela sobriedade interpretativa, pela concisão na narrativa, pela acuidade da repartição, repleta de elipses fulgurantes. O classicismo é aqui absoluto. Nenhum ornamento, nenhum tempo morto. Menjou e os outros actores interpretam com uma força e uma economia de meios raríssimas neste começo dos anos 20, em que o filme teve o efeito de uma bomba, aos olhos dos mais lúcidos. Chegamos quase a lamentar que Chaplin não tenha deixado mais vezes os atributos e os acessórios da sua personagem para se exprimir apenas atrás da câmara. Mas o filme não foi bem sucedido e Chaplin retomou o seu personagem, que levou então para as encostas do Alaska."

Até Sexta-Feira!

sábado, 6 de janeiro de 2018

Apresentação de "Luzes da Ribalta", por Sérgio Alpendre

Limelight (1952) de Charles Chaplin



por José Oliveira

«Se não fosse a gravidade cairíamos nas estrelas» 

Frase dita por Calvero à bailarina cortada da montagem final.

Não sendo possível mostrar cronologicamente todas as longas-metragens de Charles Chaplin, Limelight é uma perfeita escolha para introduzir ao universo Chaplin quem ainda não foi propriamente introduzido, perfazendo uma obra total. Está lá a velhice mas também a juventude, as festas e as grandes ressacas, o teatro, o cinema, a música, a arte de canto de cisne do mudo e a construção sonora sublimada, a vertente intelectual do autor e o vagabundo da rua, as variedades e a crença no invisível, em pulgas invisíveis, por exemplo; a vingança e a justiça; a violência e a ternura conforme; o pioneiro e o inventor sem precedentes que não deixa de ser generoso para com o próximo, seja a bailarina ou Buster Keaton. 

De 1952 e o seu antepenúltimo filme, este é sobretudo a obra de um palhaço velho e de uma bailarina suícida que se elevarão mutuamente às estrelas; obra e movimentos sinfónicos, estelares e crepusculares, sublimes enrolados com graves que na morte descobrem, redescobrem ou arrancam daí a vida. Estando salva provisoriamente a bailarina do gás do sono eterno, Calvero, o palhaço dos palhaços que é Chaplin, fala-lhe das estrelas que rodam nos seus eixos, do sol que se consome para nos aquecer, gigantescos pulsares e demandas só porque sim, prestando homenagens à potência ilimitada do ser-humano e ao génio do seu tão admirado Albert Einstein – a razão e a emoção, a ciência e o caos, princípios centrais desta arte e desta moral, para se resumir tudo, os dois polos e os restantes cometas, no desejo, que tudo comanda. 

O palhaço velho e a bailarina suicida, o primeiro que já não tem público e a segunda que não o quer ter. Limelight é, como diz Sérgio Alpendre no vídeo de apresentação deste filme à nossa plateia, um corpo que a decadência pretende consumir a cada instante, a cada fulgor, pois o grande espectáculo, as plateias e as palmas brilhantes das idades de ouro da alta arte ou da simples comédia, só aparecem quando um velho de outrora adormece e a sua paixão ainda respira e voa; quando se acorda, tudo fica nas cinzas do passado. Só que... é também uma grande ode ao poderio da juventude e à sede futurista, à humildade e ao saber passar o testemunho, tal como diz a epigrafe inicial - “O encanto das luzes da ribalta, que a velhice deve abandonar quando a juventude entra em cena.”. 

E Chaplin, e Calvero, vão passar o tempo e os gestos todos a entregar uma herança e a salvar uma alma e um corpo magníficos. Para depois essa aura do poderio e do colosso da juventude devolver tudo de volta, inclusive o palco final da eternidade com que o filme milagrosamente fecha. Não vale a pena viver, diz a bailarina no começo; triste comediante, dizem para o palhaço pobre quando este desanima como todos nesta vida. E o que é fabuloso e assim inédito em termos narrativos e poéticos é que Chaplin vai passar o filme a construí-lo, a encená-lo, contando mesmo à bailarina como será a sua vida, a vida de nós todos, transcendendo assim tudo, inclusive o cinema - «Quando chegar ao sucesso, ele aparecerá... e dirá que a viu em alguma festa...»; e a bailarina passará o mesmo caudal de tempo a dizer que o ama, complemento e a outra ponta do arco da existência; o amor para lá de todas as barreiras físicas que ela reconhece sem o saber. 

Existência, e verdade. No final, só a verdade. Tudo o que resta é a verdade. «O tempo é um autor fantástico. Escreve sempre o final perfeito». Isto é o que começa a dizer Calvero, e Chaplin, quando por caminhos ínvos, justiça ou vingança doce, necessária, pressente a chamada do outro lado e começa a ter público, convocando o maior dos cineastas e inventores do mudo caído em desgraça – Buster Keaton. Número que tem de ser arrancado a ferros, contra tudo e contra todos, intervindo agentes, publicitários, o monstro do público abstracto e o individualismo certo. Mas a reunião, canto de cisne ressuscitado e passo para a frente incomensurável como uma chegada à lua são conseguidos e logo Keaton diz que não quer ouvir falar em velhos tempos. Diz ainda, como disse um dia o fotógrafo Paulo Nozolino, que detesta eventos, sendo óbvio que prefere a verdade, seja qual for, a das rugas ou o contrário. Absolutamente modernos, os palhaços velhos e alcoólicos entram em cena e só fazem palhaçadas, estando todo o filme nesse bloco: do mudo passa-se para o sonoro, do poder absolutizante da imagem para o poder concreto do som, da morte e da matéria sem margem para dúvidas para uma luz que é o espírito inapagável, a persistência de quem se sabe certo e acredita, e a vingança, que em Limelight tem o mesmo significado do que o amor. 

O palco final e o milagre. O palco dos palcos e a vida das vidas. A beleza de duas vidas: uma que se cumpriu em desígnios e sendas justas e assim maravilhosas e a graça sem palavras dessa bailarina que é a beleza total. A morte e a vida fundem-se e são uma e a mesma coisa. Com Keaton, o sobrevivente, como testemunha. O Palco a unir todas as voltas e pontas, física, metafísica e as orações pedidas ao longo do filme - Se não fosse a gravidade cairíamos nas estrelas. A gravidade que comporta a vida e a morte. Limelight é o mais pacificado e grave dos filmes existenciais.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

73ª sessão: dia 5 de Janeiro (Sexta-Feira), às 21h30


De Charlie Chaplin já mostramos o Monsieur Verdoux, cometa de todas as ambiguidades e de todas as contradições. Como com todos os grandes artistas, certas ambiguidades e certas contradições podem ser melhor esclarecidas ou contextualizadas à luz de toda a sua obra e portanto inauguramos uma integral das longas-metragens de Chaplin com Luzes da Ribalta, que será a nossa próxima sessão, apresentada em vídeo por Sérgio Alpendre..

O filme com o Calvero interpretado por Chaplin pode ser visto como um regresso às raízes teatrais e inglesas do realizador, mas também como um espelho das suas dúvidas e receios à altura da sua realização, convocando ainda a adivinhação e a futurologia e perfazendo todas as instâncias temporais que nos permitem inaugurar com ele um ciclo Chaplin. Como se de uma porta de entrada para a eternidade se tratasse, e onde recuar e avançar são uma e a mesma coisa.

James Agee, o escritor, jornalista, crítico de cinema e argumentista de filmes de John Huston e Charles Laughton, elogiou os talentos e a aura de Chaplin no artigo essencial a que chamou Comedy's Greatest Era (revista Life, 5 de Setembro de 1949), escrevendo que "antes de Chaplin chegar aos filmes, as pessoas contentavam-se com um par de gags por comédia; ele arrancava alguma espécie de riso a cada segundo. No momento em que começou a trabalhar estabeleceu padrões - e forçou-os continuamente para cima. Qualquer pessoa que tenha visto Chaplin a comer sapatos cozidos como truta de rio em A Quimera do Ouro, ou embaraçado com um apito engolido em Luzes da Cidade, viu a perfeição. No entanto, na maior parte do tempo, Chaplin obtinha os seus risos menos dos gags, ou de os ordenhar em qualquer acepção comum, do que pelo seu génio para o que se pode chamar de inflexão - o atenuamento perfeito e variável das suas atitudes físicas e emocionais em relação ao gag. Por mais engraçadas que sejam as suas convulsões com a cama desmontável, os vislumbres de admiração, expostulação e o desejo desamparado e quase soluçante por vingança que ele lança contra essa máquina infernal ainda são melhores.

"Um erro doloroso e frequente entre principiantes é o de romper a linha cómica com um riso grande demais, e depois uma frustração; ou com um riso fora de tom ou irrelevante. Os mestres conseguiam ornamentar lindamente a linha principal; nunca a perturbavam. Em A Night Out, Chaplin, desmaiado, é arrastado ao longo do corredor pela gola do casaco por um Ben Turpin cambaleante. As biqueiras dele deixam um rasto; está tão inanimado como um trenó. O próprio Turpin está tão bêbado que mal o pode arrastar. Chaplin acorda calmamente, percebe quão bem está a ser servido pelo seu companheiro esforçado, e colhe e aprecia uma flor com um gesto regiamente delicado.

"Na obra de Chaplin estava a melhor pantomima, a emoção mais profunda, a poesia mais rica e mais pungente. Ele podia provavelmente fazer o The American Commonwealth de Bryce em pantomima sem nunca marchar uma sílaba e torná-lo paralisantemente engraçado no meio do negócio. No final de Luzes da Cidade, a rapariga cega que recuperou a vista, graças ao Vagabundo, vê-o pela primeira vez. Ela imaginou-o e anteviu-o como principesco, para não dizer mais; e, a ele, nunca lhe ocorreu seriamente que fosse inadequado. Ela reconhece quem ele possa ser pela sua felicidade tímida, confiante, radiante enquanto ele vem silenciosamente na direcção dela. E ele reconhece-se a si mesmo, pela primeira vez, através das terríveis mudanças na cara dela. A câmara só troca alguns grandes planos tranquilos das emoções que mudam e se intensificam em cada cara. Vê-lo é suficiente para aquecer o coração, e é a melhor parcela de interpretação e o momento mais alto dos filmes."

João Bénard da Costa, maior dos cultores das obras tardias de Chaplin, escreveu sobre Luzes da Ribalta, lembrando que «“só há duas maneiras de ter razão” escreveu algures Fernando Pessoa. “Uma é calarmo-nos, a outra, contradizermo-nos”. Para Chaplin, cujo problema maior, nos anos dificilíssimos que foram da estreia de Monsieur Verdoux (1947) à de Limelight (1952) era ter razão, ou que a sua razão lhe fosse reconhecida, calar-se não era solução, antes era dar razão aos adversários. Só lhe restava contradizer-se. Ou seja, abandonar o anarquismo e o pessimismo que o seu último personagem arvorara e regressar a outra vertente do seu génio: o melodramatismo. Um grande melodrama com todos os ingredientes do mito chaplinesco e que voltasse a dar a ver o Vagabundo (e a dá-lo a ver sob luz total) deve ter-lhe parecido o melhor meio de reconciliar tudo e todos com ele próprio, de se fazer “perdoar” e de se voltar a fazer aceitar.

«Nunca o vi escrito em parte alguma, nem nenhuma declaração (de Chaplin, ou alheia) me autoriza a convicção. Mas só consigo interpretar a escolha de Limelight, depois de filmes sucessivamente mais imbricados com a realidade global que o rodeava (Modern Times, The Great Dictator, Monsieur Verdoux) pela vontade, consciente ou inconsciente, de Chaplin em pôr fim às tempestades que ele próprio (com esses filmes) desencadeara. A cabeça branca de Chaplin, a cabeça branca de Calvero, sempre me pareceram a “bandeira branca” levantada para restabelecer a paz e a harmonia. Aos seus detractores, oferecia-se de corpo inteiro, pela primeira vez sem disfarces nem máscaras, e oferecia uma história que não podia deixar de ser vista como a história da sua vida. Mais ainda: como a história de quarenta anos de espetáculo (circo, vaudeville, teatro e cinema) de que Limelight seria simultaneamente o requiem e o testamento.»

Já Jacques Lourcelles, no Dicionário do Cinema, escreveu que é a "penúltima longa-metragem de Chaplin como intérprete principal. De alguma forma, é o seu testamento espiritual. Chaplin situa a acção em Londres pela altura dos seus começos no cinema (1914), não para contar a sua juventude mas para evocar a velhice de um artista com a mesma idade que ele nos dias de hoje. Esta fusão entre a sua própria juventude e a velhice do seu personagem prepara o terreno, no desenvolvimento da intriga, para a relação que vai existir entre o velho actor e a jovem dançarina, cujo amor e reconhecimento recíprocos expressam o próprio movimento da vida no que tem de mais criativo. Calvero passa o testemunho a Terry para que o espectáculo e a vida continuem. Este grande salto no tempo que Chaplin escolheu fazer trá-lo também de volta a certos estereótipos do melodrama de fim de século que imbuíram uma parte das suas comédias. Em Limelight, eles ocupam o essencial da intriga e invertem assim a proporção de drama e de comédia habitual nos filmes de Chaplin antes de 40. Aqui, é o melodrama que fica com a maior fatia. O pathos inerente ao género permite a Chaplin exprimir a sua filosofia de vida (com aforismos tão impactantes como límpidos), exorcizar enquanto artista o seu medo do insucesso, do esquecimento e da morte, e sobretudo pôr a nu o coração das suas personagens e o seu, naturalmente. O estilo relativamente primitivo da mise en scène vai bem com a sinceridade ofegante do autor e com o seu conhecimento inato da narração cinematográfica, misturando de forma feliz presente, passado, imaginário e fazendo alternar, sobre o plano formal, a pantomima, o ballet, o burlesco e o diálogo dramático. O filme consegue então tornar-se essencialmente um monólogo em que o autor se dirige directamente ao público, que considera ao mesmo tempo a sua razão de ser, um juiz supremo e temível, e um amigo muito querido. Os desenvolvimentos da intriga assemelham-se realmente aos de um discurso, ingénuo e hábil ao mesmo tempo, que difunde diante do espectador o balanço de uma vida. Esse balanço, glorioso e pesaroso, cómico e patético, infinito e irrisório, aos olhos de Chaplin, é o da própria condição humana, totalmente presente neste pequeno melodrama de cinco tostões, transcendido pela nobreza e pela riqueza da inspiração."

Até Sexta!