sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

4 Copas (2008) de Manuel Mozos



por José Oliveira

(…) Interesso-me pelos homens e pelas mulheres, por conseguinte interesso-me por mim mesmo. Não me sinto tocado senão quando vejo a alma de um homem, ou quando, sem ornamentos nem estardalhaços, alguém se dirige à minha.” (…) “O que ele mostrava, a sua franqueza, a sua honestidade desconcertava como um soco, era um ser maior que os heróis, mais belo que os deuses; era um homem. (…) 

Jacques Serguine, Educação do Espectador, Cahiers du Cinéma nº 111, Setembro 1960. 

O que transmite a imensa sensibilidade e o profundo humanismo do filme de Manuel Mozos são coisas singelas. A começar pelas pessoas que vivem no filme, como vivem e o que fazem, até aos lugares por onde elas andam. Cheio de mundo e de vida, longe do fetiche babado e da cinefilia barata. Não existem vedetas, décors espampanantes nem grandes carros. Não existe um argumento intricado, piruetas estilísticas ou montagem a rasgar. Tudo é puramente comum e é isso que torna o filme especial e o engrandece. Claro que em muitas salas onde será projectado (e é milagroso ver coisas tão pequenas e íntimas serem projectadas) passará por simples objecto “demodé”, quem sabe anacrónico. Nada disso (mesmo que seja preciosamente “fora de tempo”), Mozos é um clássico, um dos últimos crentes da arte dos silêncios e do relato, do essencial e do sensível, da frontalidade, lateralidade ou em elipse sussurrada. É daqueles cineastas que sabe que quando a arte clássica é praticada com tal certeza absoluta e com tal humildade, só desse modo o cinema parece ser possível existir e fazer sentido. Nesse hiato que o filme dura, não há margem para dúvidas. Um cinema que se interessa pelo que o demais dispensa e lamentavelmente elide – desde os pequenos gestos e modos caseiros ou no trabalho, até à maneira como se sente um cigarro ou se bebe um copo de cerveja, se dá pontapés numa bola, ou ainda na fabulosa cena da discoteca, a criação de ambiente e atmosfera bem como os rituais próprios dos lugares, é de quem percebe tanto de cinema como da vida. Sim, pois não é só a mestria da velha escala dos planos e do trabalho de luz que está em jogo, é de modo tão decisivo um respeito pela subjectividade e pelas nuances de cada indivíduo. Cada um é um outro, zero de maniqueísmo nestes aspectos. Por tudo e mais alguma coisa, repare-se na imensa orgânica e nas respirações várias que o filme ostenta, nas sinuosidades, nos altos e baixos (precisamente como os baixos e os altos representados pelo centro comercial e a montanha; um pouco de sufoco, muito de transcendência), na forma como as coisas mudam e se transformam, nunca preso, muito menos dependente, de convenções narrativas e visuais destes tempos – impressionante a maneira como a música entra e se abandona conforme a emoção em jogo – inventando mais uma vez uma poética própria (como o Xavier, sempre). Que se note mais uma vez que o clássico quando nestes moldes sublimado e cinzelado é mesmo o mais ousado e feroz dos modos e logo o mais livre, é daí que nasce a frescura de 4 Copas. E que por tudo se perceba que na era do digital – onde se tenta a todo o custo substituir a carne, os ossos e o sangue, por meros pixels – ainda é possível que seres tão comoventes, inseguros, cheios de falhas e virtudes, numa palavra, humanos, habitem deste modo uma realidade e uma tela. Ainda é possível filmar afectos e relações, sem pedir desculpas. 

Classicismo, generosidade. Porque passou 4 Copas praticamente sem deixar rasto pelas salas dos grandes centros ou mesmo nas mais recatadas e cultas? Pode-se arriscar e reforçar que por um lado o gesto de Mozos vai contra todas as dominâncias e recusa o mel das ficções correntes e assumidamente criativas, onde as ideias mais mirabolantes andam a par com o embelezamento e o glamour das personagens orgulhosamente inventadas. Ora as pessoas dos filmes de Mozos, em qualquer um deles, parecem sair de uma qualquer esquina ou beco ou avenida dos simples e dos perdidos, uma ruela do Bairro Alto ou um cume da Mouraria, do mais rasca dos bares como o nosso lindo estádio a um qualquer pátio de bairro dessa Lisboa sem bilhete-postal e muito menos branca. Por aí fala-se e canta-se e berra-se, insulta-se e abraça-se. São cabeleireiras, floristas, seguranças, comerciantes flutuantes… e nesse percurso podem tornar-se Rimbaud ou Zé dos Anzóis. Nada a ver com o champanhe e os decotes baixos de uma Bela e o Paparazzo, tudo a reenviar para o seu tão amado Aki Kaurismäki ou se quisermos ir mais atrás, para as pessoas também desta terra dos filmes de Valerio Zurlini. Mas não esqueçamos o outro lado, o lado dito selecto dos possíveis “cinemas de arte e ensaio” ou de uma qualquer cinemateca em qualquer lado. Sabe-se, o termo moderno ou o seu decorrente experimental separou completamente as águas e criou facções a quem nele quis acreditar cegamente e fez disso dogma e bandeira. A recusa ou estilhaçamento da narrativa, a montagem fragmentária ou irracional, o desregramento totalitário e mais das vezes supérfluo, o tempo supostamente a valer por ele próprio tal como formulou Gilles Deleuze. “Can Movies Think?”, perguntou Kent Jones. “The Brain Is the Screen” – filosofia no cinema, entregou-nos o mesmo Deleuze. Depois, as tão sedutoras teorias de David Bordwel e todos os seus sucedâneos intercontinentais ou o comércio de Tom Schatz. Ganga e mais ganga, compêndios intermináveis de folhas obrigatórias de tese que pretendem redefinir e acabar com o cinema. Como aceitar, ler à luz desses apostolados ou encaixar nesses conceitos rijos como betão – ao contrário da caução progressista, liberal ou rompedora que tais autores juraram ter encontrado – uma carta de amor e uma ode às ruínas de uma civilização e de uma arte talvez irremediavelmente perdida, assim tornada centro e elo aglutinador? Velha questão e certeza, como alguém em algum filme de Godard escreveu a giz num quadro de aulas: clássico = moderno. Quem não perceber com um filme destes, jamais perceberá. Para provar isto, e se tal mais fosse preciso do que a alegria de viver que neutraliza a dor, os sorrisos de soslaio ou a liberdade de subir uma montanha – como deixar de referir as mãos dadas em grande plano e logo o beijo sem medo do ridículo como nos filmes de Douglas Sirk, abra-se bem os olhos à montagem entre as quatro copas e o baralho envolvente que em paroxismo contido, secretamente austero e em surdina vai pulando de vida em vida e escancarando-nos dependências, relações, milagres. As ambiências de fumo e de papelão, utopias impossíveis de sonhos de estúdio. Ou uma câmara e uma luz que de tão discretas e ternas e em concordância com aquilo que filma e modela nos dão não a magia de coisa alguma, sim a inesgotável fonte da impressibilidade e capacidade humana. A vida vale a pena mesmo com os seus baixos e crispações, recado esquecido. Manuel Mozos, cineasta de corpo inteiro. Repito, sem pedir desculpas. 

in «Jornal dos Encontros Cinematográficos», Novembro de 2011.

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