sábado, 4 de janeiro de 2020

Francesco, giullare di Dio (1950) de Roberto Rossellini



por José Oliveira

Na recente e revolucionária apresentação - uma velocidade, clareza e retaliação sem lugar para equívocos - que Abel Ferrara fez do seu último trabalho, o profético e guerrilheiro Pasolini, este fez saber que tinha acabado de assistir ao Messias de Rossellini, e que considerava tal realizador tão maluco como aquele sobre o qual fizera um filme. Mais ainda, segundo Ferrara, Pasolini achava o mesmo. Pode-se, para efeitos de constatação, evocar o período com Ingrid Bergman e os diversos milagres para alguns, patetices ou banalidades para outros. Entrar por aqui seria dividir o mundo entre os chamados conscienciosos e bem pensantes – logo os que fazem da boa imagem o credo capital – e os inocentes ou tontinhos que perante o terror da realidade bruta se abrem à fulminação de todas as possibilidades. Aqueles que já viram tudo e leram tudo e compreenderam tudo e os que estão permanentemente com sede e nada sabem. Aconteceu que numa guinada de última hora a Cinemateca Portuguesa trocou a Viagem em Itália por Francesco, giullare di Dio. Esse mesmo protagonizado por um grupo de benfeitores que idolatram a pureza de Francesco e o seguem até aos confins das suas descobertas e constantes ajustes, grupo que tanto está próximo do divino sublime como das macacadas circenses. Entre a terra e o céu, pela força do livre e belo fogo que urge atiçar, envoltos nos flocos de neve da inexplicável alvura, vão comunicar com os passarinhos, bailar mais leves que o próprio ar puríssimo dos ermitões, ser joguetes de gigantes infantes trogloditas e perdoar sempre; mas igualmente roubam pernas de porco para consolar estômagos profanos, beijam leprosos sem os limpar como os limparia Deus, excitam-se perante a aproximação feminina. Mas o tempo e a pregoada modernidade ainda não expurgaram tudo, mais de sessenta anos depois, muitos ainda bateram com a porta da Félix Ribeiro por tamanha beatice ou por tamanha, reforço, patetice; outros deixaram-se levar na tal maluquice que Rossellini e Pasolini por boa ventura comungaram, não presos a princípios oficiosos da religião ou da etiqueta mas sim, sem freios, na perene loucura e contradição que consiste entregar-se à infinidade de possibilidades e combinações da existência para tocar o essencial. Entre o credo e o desejo, vale a acção, protegida pelo amor, medida de todas as coisas, finalidade de toda a insurreição silente de Roberto Rossellini. A forma é pura, o conteúdo resvalante. 

in blog «raging-b»

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