Espelho Mágico marca a última colaboração ou encontro entre o cineasta Manoel de Oliveira e a romancista Agustina Bessa-Luís. É a segunda adaptação para cinema da trilogia “O Princípio da Incerteza”, composta pelos romances Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003). A primeira adaptação chamou-se precisamente O Princípio da Incerteza, e dela regressam ao Espelho Ricardo Trêpa como José Luciano, “o touro azul”, e Isabel Ruth como Celsa Adelaide, a sua mãe. Regressam ainda como actores Leonor Silveira, Leonor Baldaque, Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e João Bénard da Costa (sob o seu pseudónimo de actor, “Duarte de Almeida”), mas noutros papéis, acentuando os reflexos, os desdobramentos e as duplicações, assumidíssimos quando se constata além disso que Trêpa e Baldaque são netos de Oliveira e Bessa-Luís, respectivamente. “Descrevo isto,” disse o cineasta a Jean-Marc Lallane e a Charles Tesson dos Cahiers du Cinéma em 2002, “a presença da escritora e do cineasta no filme através dos seus netos e, ao mesmo tempo, será que deveria fazê-lo? Será isto, verdadeiramente, certo? Não sei. É isto o princípio da incerteza.”
Espelho Mágico é também o negativo solar de O Princípio da Incerteza, sempre pontuado com a Dança Macabra de Camille Saint-Saëns sobre os planos de transição da bela Quinta Villa Beatriz, na Póvoa de Lanhoso. Há até uma certa leveza sedutora a atravessar todo o filme, que no entanto começa com a descrição dos últimos momentos da pena de prisão do “touro azul”, lembrança das suas paixões frustradas por Camila, dos vários conluios entre amantes e parceiros de negócios obscuros, pais interesseiros e mães desesperadas, dicotomias santas e guerreiras, entre a pureza e a podridão, a redenção num pequeno mostruário poeirento de heroínas de antanho, as máscaras vermelhas a atiçar o fogo justiceiro que se acredita poder aniquilar toda a malignidade no mundo. Diz-se que de boas intenções está o inferno cheio. Também se diz que “ce qui est terrible sur cette terre, c’est que tout le monde a ses raisons.”[1]
“As pessoas gostam que as aceitem como são,” diz Luciano ao irmão, comparando prisioneiros e carcereiros, “já lhes basta serem vítimas de tão má sina. Eram seres humanos. E não lhes via, assim, uma grande diferença dum para o outro. E chegava a pensar que o director coleccionava cactos para não ter que matar alguém.” Podem-se justificar assim as tonalidades primaveris deste filme, os planos de chapéus e fios de tecido ao vento, as panorâmicas verticais subjectivas sobre escadórios encantatórios, os planos de silhuetas ao pôr-do-sol, os tilintares melódicos na banda-sonora quando a enfermeira de Glória de Matos sai do quarto e se olha nos vários espelhos ou quando o Bahia de João Bénard da Costa leva a Alfreda de Leonor Silveira pelo mundo encantado do espelho mágico, as trucagens de cinema mudo, as conversas em que os actores não se olham nos olhos mas antes para um vazio e que tanto irritam alguns espectadores de filmes de Manoel de Oliveira, como irritam as declamações pouco realistas e palavrosas que abundam nas suas obras. Aqui a câmara aceita as coisas como elas se apresentam e encenam, há um ajuste e uma correspondência que nos permite entrever um mundo que transcende o facto de se dizer aos actores que olhem para determinada direcção, mas que não era palpável ou demonstrável se se não o fizesse. Um mundo, apetece dizer, parecido com o nosso. Em que um condenado inocente que conviveu com proxenetas, criminosos e assassinos incestuosos é surpreendido pelos deslumbramentos inocentes de uma mulher que pouco terá visto na vida além da sua quinta mas acredita na Nossa Senhora, que a Nossa Senhora é rica e que um dia virá ter com ela. Em que há também um prazer lúdico, artificial e construído por dar vida a esses sentimentos e a essas convicções. Em interpretar, em declamar e em ser visto. Um mundo como os mundos de Os Homens Preferem as Loiras de Howard Hawks, Rally ‘Round the Flag, Boys! de Leo McCarey, Le déjeuneur sur l’herbe de Renoir, O Gosto do Saké de Ozu ou Playtime de Jacques Tati. Um todo maior que as suas partes. Em que tudo se equipara no plano cósmico das coisas. Quem sabe? Talvez seja isso o cinema. Talvez seja isso o princípio da incerteza.
[1] Pode-se traduzir por “aquilo que é terrível nesta terra, é que toda a gente tem as suas razões.” in A Regra do Jogo de Jean Renoir.