quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

A Escuta (2022) de Inês Oliveira



por Alexandra Barros

Carlos Zíngaro nasceu em Lisboa, em 1948, e aos 4 anos começou a aprender a tocar violino. Estudou música clássica no Conservatório Nacional de Lisboa e orgão na Escola Superior de Música Sacra. Quis ter como instrumento a guitarra ou o orgão, mas como não tinha possibilidades económicas para adquirir esses instrumentos, “agarrou-se” ao violino. Actualmente, além do violino, tem como instrumento o laptop. Compositor e músico experimental, no seu trajecto encontramos vários géneros musicais e colaborações com músicos prestigiados de diversas áreas: folk-rock psicadélico, free jazz, canção de intervenção, música popular portuguesa, música contemporânea, improvisação livre, música electrónica, música electroacústica, …. Fundou bandas e colectivos de música e performance: Plexus, Associação Conceptual Jazz, Granular. Entre outros músicos nacionais e internacionais (muitos mais internacionais do que nacionais), trabalhou com: Jorge Lima Barreto, José Afonso, Sérgio Godinho, Janita Salomé, Júlio Pereira, Banda do Casaco, Rodrigo Amado, Anthony Braxton, Roscoe Mitchell, Daunik Lazro, Kent Carter, Evan Parker, Fred Frith, Joëlle Léandre, Richard Teitelbaum, Derek Bailey, Otomo Yoshihide, Hans Reichel, Keiji Haino, Dominique Pifarély, Andrea Centazzo, Christian Marclay, Frederic Rzewski, Mark Dresser, John Edwards, Paul Lovens. Compôs música para cinema, teatro e dança. É pintor, ilustrador, autor de banda desenhada. 
 
De acordo com a realizadora: “As características que o distinguem são o gosto pela experimentação, o pioneirismo e a permanência na cena das artes e cultura em Portugal - e pelo mundo - ao longo de mais de 50 anos. É um artista de riscos e de vertigem, [...] comprometido com a busca pela ‘verdade do momento’. Uma vida de entrega total, de pesquisa incessante, de fogachos de plenitude, [...] Viver para o momento, no momento. Tocar esse momento.”[1]
 
Deste artista tão multifacetado e com tanta(s) história(s), Inês Oliveira conseguiu admiravelmente construir um retrato simultaneamente fluido e denso. Talvez porque nunca quis fazer “O” retrato de Zíngaro, mas antes o retrato de Zíngaro de Inês: “O drive do filme é a minha curiosidade e a minha admiração pelo Carlos enquanto mestre; o que lhe ouvimos dizer, o que o vemos fazer, é o que eu quis que se ouvisse, que se visse, pensasse e sentisse.” Inês quis contagiar-nos com o mesmo fascínio que sente por Zíngaro. Afinal, de acordo com Tolstoi, o objectivo da arte é esse contágio: “A arte é uma atividade humana que consiste em alguém transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos vivendo-os também.”[2]
 
Inês Oliveira compôs um retrato de Zíngaro a partir das reflexões que ele faz acerca da sua vida e da sua música, reflexões sempre ouvidas em voz off. Este “auto-retrato” é acompanhado por imagens que a realizadora captou de Zíngaro “em acção”: a tocar sozinho, rodeado por escuridão ou acompanhado pela própria sombra; concentrado a escutar, para criar música com companheiros de longa data; a pintar e a desenhar, em casa, no estúdio, ou onde calha (num voo de avião, ...). Estas imagens actuais cruzam-se com: muitas fotografias que Zíngaro foi buscar “ao baú”; bilhetes e cartazes de eventos musicais; imagens de arquivo de: entrevistas, espectáculos, concertos, programas de televisão; jornais que nos revelam os seus sucessos internacionais ao mesmo tempo que é ignorado em Portugal. 
 
Inês Oliveira: “Aproximei-me de Carlos Zingaro por instinto. Tinha a impressão de que me iria identificar com ele e assim foi. Este filme é sobre ele, mas é também sobre mim: revejo-me nas suas questões, inquietações, desejos e medos. Quis fazer um filme que contribuísse para o conhecimento do que é a investigação, a experimentação e a criação artística. Um testemunho.” [3]
 
Este retrato de Zíngaro é então assumidamente também um retrato de Inês, um flaubertiano “Carlos Zíngaro sou eu!”. Qualquer tentativa de representar alguém é no fim de contas uma auto-representação, revelou-nos Oscar Wilde: “Todo o retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista e não do modelo. O modelo é apenas o acidente, o pretexto. Não é ele que é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, na sua tela colorida, se revela a si próprio.”[4]
 
O Zíngaro de Inês Oliveira é, nas próprias palavras do músico, alguém que tem o violino como uma parte de si próprio, alguém que se pergunta se, ao longo da vida, as opções que tomou, consciente ou inconscientemente, se basearam na vontade de “não ser igual”, de ser estranho: “Há uma grande dose de instinto. Vou por aqui porque eu gosto mais de ir por aqui. Vou por aqui para não ir por onde os outros vão”; “Um furacão educado, a meter para dentro, a elocubrar cá dentro, no meu casulo”. É a esse “dentro” que Inês quis chegar e dar a ver: “Esse foi o efeito que quis criar, de intimidade – quase de sermos todos os que vemos, durante aquela hora de filme, o Carlos Zingaro.”[5]
 
No final do filme, Zíngaro pergunta: “Quando é que nós paramos? Quando é que nós decidimos que aquele objecto sonoro está acabado? E passar para o próximo. Quando é que nós decidimos que um livro está acabado? Ou que uma escultura ou uma pintura está acabada? Não nos libertamos. Basicamente, o meu cavalo de batalha nestas coisas das improvisações é a escuta, o saber ouvir.” PING! 
 
Inês: “A escuta é a condição base de um improvisador. É também a minha condição como cineasta e de espectadora entre espectadores. É a condição necessária para uma sociedade mais humanista.”[6] PONG!  

Apesar da imensidão deste filme, e das tantas portas por onde apetece entrar, não tenho de me debater com o dilema “onde parar?”. Sou forçada a acabar por razões de ordem física: o espaço disponível numa folha A4. Agora, faça-se escuro para ver e faça-se silêncio para ouvir A Escuta.

[1] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.
[2] O que é a Arte?, Lev Tolstoi.
[3] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[4] O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde.
[5] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[6] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O que Arde (2019) de Oliver Laxe



por João Vilares

O Que Arde é a segunda proposta deste mini-ciclo de cinema galego que resulta da parceria entre o Lucky Star e o Centro de Estudos Galegos da Universidade do Minho, no âmbito do 9º Convergências. 

Oliver Laxe é um actor, realizador e argumentista franco-espanhol de origem galega. Enquanto realizador, conta com apenas três filmes no seu currículo: Todos Vós Sodes Capitáns (2010) com o qual venceu, no Festival de Cannes, o Prémio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI); também em Cannes, ganhou com Mimosas (2016) o Grande Prémio da Semana Internacional da Crítica; em 2019, novamente em Cannes, foi a vez deste O Que Arde arrecadar o Prémio do Júri na mostra “Un Certain Regard”. 

Sob o pretexto dos incêndios na Galiza, O Que Arde tem tanto de desafiante quanto de provocador. Amador Coro (Amador Árias) sai em liberdade condicional após cumprir metade da pena por ter incendiado uma montanha em Lugo. O tamanho do processo é revelador de que estaremos na presença de um perigoso pirómano. Porém, um dos funcionários comenta: “É um desgraçado”. 

A escolha da palavra “pirómano” não é, de todo, acidental. Ao invés de um incendiário, um pirómano não provoca incêndios pelo lucro que poderá advir dessa acção, mas pelo prazer que a acção em si lhe traz. Será, então, que o lugar dessas pessoas é a prisão ou um hospital? Qual a nossa responsabilidade, enquanto sociedade, para com elas?

Através de uma fotografia incrível (Mauro Herce), Laxe descreve-nos uma Galiza rural de paisagens de uma beleza extraordinária, mas com um relevo e clima inóspitos que, inevitavelmente, moldam as pessoas que a habitam. A simplicidade da casa, a relação com os animais, com os vizinhos e principalmente entre mãe (Benedicta Sánchez) e filho são um retrato terno de uma região que se faz sobretudo de contrastes. Em que o silêncio exprime loquazmente a sinceridade dos sentimentos e cada palavra não diz, afinal, mais do que o que realmente quer dizer: “Gosto que estejas aqui.” 

O desempenho brilhante dos actores e a inteligente montagem criam-nos intencionalmente o desconforto de perante uma calma quase apaziguadora não nos coibirmos de julgar Amador sumariamente, ainda que em momento algum o vejamos executar qualquer acção que con- firme ser ele o culpado. 

O Que Arde é, no fundo, uma metáfora da complexidade das relações humanas: quando nos deixamos envolver pelo fogo incontrolável das emoções corremos o risco de criar um solo estéril que dificilmente conseguiremos reabilitar.



quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Mudar de Vida - José Mário Branco, vida e obra (2014) de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo



por António Cruz Mendes

Diz-nos Arthur Danto que uma das características definidoras de uma obra de arte é o seu aboutness. Uma obra de arte é sempre “sobre alguma coisa”, reflectindo nesse olhar sobre a realidade a visão do mundo do seu autor. Algo que não reduz à escolha de um “tema”, mas se materializa sobretudo nas características de um “estilo”. Além disso, o artista usa de todos os artifícios retóricos próprios do seu meio, a escrita, as imagens, os sons, que se encontram ao seu dispor para levar o seu receptor a identificar-se com ela. 

Sendo assim, em que reside o valor de uma obra de arte? Na minha opinião, ele será tanto maior quanto maior for o valor que a sua experienciação acrescentar à nossa própria experiência de vida. A arte tem uma função de conhecimento. Uma obra de arte que repete lugares comuns poderá, por isso mesmo, ser “popular”, contudo aquelas que a história retém são as que nos ensinaram algo de novo sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos e que, portanto, nos transformaram como pessoas. Não somos os mesmos depois de visitarmos o universo pessoal de um grande artista, tal como ele se plasma na sua obra. 

Estas ideias, que me parecem válidas para a literatura, para a pintura ou para o cinema, sê-lo-ão também para a música? 

Os chamados “cantautores” estavam firmemente convencidos das potencialidades das suas canções e colocaram-nas sem reservas ao serviço das causas políticas e sociais em que se empenharam, ainda que correndo, por vezes, o risco da simplificação, de uma banalização panfletária da sua mensagem. 

José Mário Branco teve um papel de grande relevo neste movimento que teve um assinalável impacto sócio-cultural nos anos 70 do século passado, quando se viveram os últimos anos do fascismo e da guerra colonial e aqueles que se seguiram ao 25 de Abril. Teve-o como compositor, como cantor, como produtor, como dinamizador de colectivos vários que, tanto através da música como do teatro, tentaram despertar consciências e mobilizar pessoas. 

Mudar de Vida não é propriamente uma biografia pessoal. Dá-nos a conhecer, é certo, os passos mais importantes da sua vida: o despertar da sua consciência política, a breve passagem pela Universidade de Coimbra, a prisão, a fuga para Paris, a descoberta da música, o convívio com a comunidade emigrante, onde se encontravam os que fugiram à miséria e os que fugiram à guerra e, depois, o 25 de Abril e o regresso a Portugal essas imensas esperanças despertadas pela “revolução dos cravos” e, finalmente, o 25 de Novembro, a normalização democrática e o fim de um país sonhado por si e pelos seus companheiros de luta. Porém, o filme centra-se sobretudo na forma como nele se articularam a acção política e a intervenção cultural e fá-lo através das histórias que ele próprio no conta, dos depoimentos de amigos e companheiros, das filmagens de concertos e espectáculos, e dos encontros e manifestações de rua que nos oferecem o contexto e a matéria de tudo daquilo que estava em causa. Apresenta-se, então, como o documento histórico fundamental para compreendermos uma época para a qual já olhamos como um passado. 

Terão ainda actualidade, como nos diz a "sinopse oficial” que reproduzimos aqui, essas manifestações de combate e de esperança, de raiva e de revolta, que encontramos na obra de José Mário Branco? A história não se faz através de uma sucessão de compartimentos estanques. As fontes musicais que o inspiraram encontram-se na tradição popular e na obra de Lopes-Graça, a certa altura, ele próprio descobriu o fado e, mais tarde, surgiram jovens que viram no FMI, esse catártico grito de desespero, um antepassado do rap… Além disso, a guerra, a pobreza e as injustiças que a sua obra denuncia, continuam presentes e a aspiração dos homens a um mundo melhor é eterna. As futuras gerações dirão se a sua obra e o seu exemplo continuarão ou não a ser inspiradores. 

Uma última palavra para a relação de José Mário Branco com o cinema, iniciada em 1978 com A Confederação (1978), de Luís Galvão Teles, filme com uma banda sonora assinada por ele próprio, por Sérgio Godinho e por Fausto, até Prazer Camaradas (2019), de José Filipe Costa, onde se ouve Gare de Austerlitz, do álbum “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. 

Mais de vinte filmes contaram com a participação de José Mário Branco, como actor, como voz off e como compositor e cantor. Destacamos aqui a sua participação, como autor da música, em O Rio do Ouro (1998), de Paulo Rocha, e em O Movimento das Coisas (1986), de Manuela Serra (estes já projectados pelo nosso cineclube), A Portuguesa (2018), de Rita Azevedo Gomes, e como actor em Ninguém duas vezes (1984) e Coitado do Jorge (1992), de Jorge Silva Melo. 

“Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários. Artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco”, diz-nos ele logo no princípio do filme. As imagens e as palavras que vemos e ouvimos em Mudar de Vida completam esse retrato e mostram-nos, de corpo inteiro, um homem comprometido com o seu tempo, que viu na música, no teatro e no cinema, os veículos possíveis das suas recusas e das suas esperanças.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Vieiros (2000) de Laura Gárdos Velo



por José Paz Rodrigues

A 15 de novembro de 1909, nascia em Pereiros-Cartelhe (Ourense) Carlos Velo Cobelas que, para além de grande artista galego, foi também um importante cineasta. Ele faleceu na Cidade do México no dia 1 de março de 1988, há quase 33 anos. Por sugestão de Luis Álvarez Pousa, veio participar do exílio mexicano na quinta edição das Jornadas do Cinema de Ourense, celebradas em abril de 1977, organizadas pelo Cinema Clube Padre Feijóo. Dentro do programa, Velo dera no salão nobre do Liceu Recreio da Cidade das Burgas uma conferência muito interessante sobre os novos avanços da sétima arte. Naquele momento tinha debaixo do braço, como se fosse um brinquedo de criança, um disco com imagens de filmes e não se cansava de repetir que aquele era o futuro do cinema. Velo tinha toda a razão, porque hoje o cinema está num meio semelhante com o nome de DVD. Além disso, ele demonstrou que sempre foi um avançado e um pioneiro nesta arte. Desde muito jovem o cinema foi a sua verdadeira paixão. 
 
O seu pai era médico do município onde Velo nasceu. Em Ourense estudou o ensino secundário e magistério, e na nossa cidade conheceu Vicente Risco, que o iniciou no galeguismo. Mais tarde foi para Madrid para estudar Medicina, mas as suas verdadeiras paixões eram a biologia e o cinema. Em 1932 licenciou-se em Biologia pela Universidade Complutense, onde posteriormente se tornou professor das disciplinas de Ciências Naturais e Entomologia. Curiosamente, e um tanto acidentalmente, a biologia o conduziu ao mundo profissional do cinema. Com Luis Buñuel criou o primeiro clube de cinema espanhol da história na Residência de Estudantes da ILE de Madrid, dependente da FUE (Federação Universitária Espanhola). 
 
Quando o grande cineasta de Calanda filmou a famosa curta-metragem Um Cão Andaluz, Velo deu-lhe as formigas vermelhas para as suas filmagens. Nas sessões do cineclube da Residência de Estudantes gostava de ver os clássicos do cinema, que o marcaram imensamente: S. M. Eisenstein, Dovchenko, Dziga Vertov, Pudovkin e, sobretudo, Robert Flaherty. Este último viria a ter grande influência na arte documental de Carlos Velo, ramo em que se destacou muito e não tanto no de longas-metragens. Ele conheceu Garcia Lorca e o filme O Couraçado Potemkin sempre o entusiasmou. Foi Fernando G. Mantilla quem o iniciou na técnica cinematográfica, que jamais abandonaria, mesmo no seu longo exílio mexicano. Ainda estudante do último ano da sua licenciatura, em dezembro de 1931, participou da primeira Missão Pedagógica Republicana realizada na cidade segoviana de Ayllón, dirigida pelo grande pedagogo Manuel Bartolomé Cossío. Para o qual levou justamente vários documentários cinematográficos para exibição. Tanto na fase republicana, como depois na mexicana, fez documentários muito interessantes. 
 
Entre eles é necessário destacar A Cidade e o Campo, Castelos de Castela, Almadrabas, Infinitos, Felipe II, O Escorial, Yerbala, México Eterno, História de México, Raíces (premiado em Cannes em 1953), Pintura Mexicana de Diego Rivera, Arte pública de David Siqueiros, Homenagem a León Felipe, Torero e Cartas do Japão. Um dos seus mais belos documentários é Universidade Comprometida, em que o chileno Salvador Allende aparece dando uma bela palestra para os alunos da Universidade Mexicana de Guadalajara. Ao discurso do presidente do Chile, Velo colocou-lhe algumas imagens de muito sucesso, belas e adequadas. Este documentário, a par de outros, tinha sido projectado na sua época nas Jornadas do Cinema de Ourense, tendo sido trazida a respetiva cópia em 16 mm. por Mª José Queizán de Vigo. A TVG da época, quando Velo regressou às suas terras galegas, tinha lançado a sua longa-metragem Pedro Páramo, baseado num célebre livro do seu amigo mexicano Juan Rulfo. 
 
No México, Velo, como verdadeiro galego, exilado e emigrante, teve de enfrentar vários problemas e mal-entendidos. A sua vida no país americano esteve cheia de luzes e sombras. Ele foi até privado de liberdade por um tempo. Desde ali colaborou com o povo galego e foi um dos fundadores da excelente revista Vieiros, que, clandestinamente, foi distribuída em Ourense pelo advogado Amadeu Varela. Também foi notável a sua participação na criação em 1953 do Padroado da Cultura Galega, ao lado de Luís Soto, Florêncio Delgado Gurriarám e Elígio Rodríguez. E, além de Vieiros, em 1942 também colaborou na fundação da revista Saudade, junto com Delgado Gurriarám, Ramiro Isla Couto e José Caridad Mateo. Já em 1936 tinha rodado um documentário sobre Compostela e a sua arquitectura e outro sobre folclore e etnografia em 1937 com o título de Galiza. E em 1983 recebeu o Prémio Mestre Mateo da Junta da Galiza, com o qual foi reconhecida toda a obra de um importante criador galego como ele. Posteriormente, em 1989, o mesmo Conselho instituiu o Prémio de Roteiros de Cinema “Carlos Velo”. 
 
excerto de «Carlos Velo, o cineasta histórico da nossa Galiza», publicado no Portal Galego da Língua (PGL) a 24 de Fevereiro de 2021. Disponível em: https://pgl.gal/carlos-velo-o-cineasta-historico-da-nossa-galiza/. Consultado no dia 12 de Fevereiro de 2023.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Polifonias - Paci è Saluta, Michel Giacometti (1997) de Pierre-Marie Goulet



por João Palhares

Michel-Marie Giacometti chegou a Portugal em 1959. “Quando cheguei pela primeira vez a Bragança,” disse ele a Adelino Gomes em 1990[1], “a caminho de Gimonde (uma aldeia a poucos quilómetros dali) deixei o «dois cavalos» velho à entrada da cidade. Levava uma capa preta sobre os ombros, uma barba enorme, cabelos compridos. Um amigo contou-me mais tarde que a cidade saiu toda à rua (eu não reparei em nada) e que me tornei assunto de conversa durante semanas. Uns diziam que era um padre; outros um personagem mítico qualquer; e houve quem achasse que era a alma penada dum conde que, de vez em quando, voltava à terra.” 
 
Giacometti nasceu em Ajaccio, na Córsega, a 8 de Janeiro de 1929. Ficou órfão muito cedo e foi criado por uma tia e pelo marido, um funcionário colonial do estado francês na Argélia. Aos três anos, é raptado por uma tribo e salvo por uma criada negra, Herratin. Farto do racismo dos tios, que andavam sempre de arma na mão e odiavam os árabes, deixa a Argélia e viaja pelo Mediterrâneo a viver de pequenos biscates até chegar a Paris, onde estuda música, arte dramática e etnografia. É expulso de várias universidades por participar numa greve contra a discriminação dos árabes, nos anos 50. Chega à companhia de teatro de Roger Planchon e conhece Albert Camus, Juliette Gréco e Maria Helena Vieira da Silva. Ao trabalhar numa fábrica, na Noruega, interessa-se por etnologia através do contacto com um etnólogo, seu colega operário, e dedica-se pouco depois ao projecto “Mediterranée 56”, criado para investigar as tradições populares das ilhas mediterrâneas. Com pneumonia, outra vez em Paris, conhece Isabel Ribeiro, enfermeira que tratará dele e com quem acabará por se casar. É-lhe recomendado que respire o ar do oceano Atlântico para recuperar da doença, portanto vai com a mulher para Portugal… 
 
A imagem que se poderá ter da dedicação e do trabalho de Giacometti é a da chegada que ilustra o início de todos os programas de “O Povo que Canta”, série criada por si e realizada por Alfredo Tropa, em que uma carrinha da Radiotelevisão Portuguesa atravessa a paisagem de portas abertas enquanto os créditos nos anunciam ao que vem e o que busca, “VOZES E IMAGENS para uma antologia da MÚSICA REGIONAL PORTUGUESA.” Corre planícies, desce colinas e até por um rio passa para chegar ao seu destino. Nada que se compare com aquilo por que Giacometti teve de passar sem apoios para identificar, catalogar e registar cantos e ritos centenários portugueses em risco de desaparecer para sempre. Muito frio, muita fome e pouco sono. Talvez não seja de admirar, portanto, que tenha sido no Alentejo que encontrou mais cúmplices e amigos, o que lhe terá feito dizer que “quando morrer, quero ser enterrado no meio do povo português que tanto amei.” Descansa agora em Peroguarda, pequena aldeia no concelho de Ferreira do Alentejo que é onde se passa grande parte de Polifonias - Paci è saluta, Michel Giacometti de Pierre-Marie Goulet. 
 
Peroguarda é uma jóia perdida deste país onde se cruzaram os destinos de Giacometti, António Reis, José Mário Branco e Virgínia Maria Dias, poetisa dessa aldeia que nunca disse a ninguém que era poetisa, quase nunca anotou nenhum dos seus poemas[2] (di-los todos de cor), e motivou todos estes encontros. A segunda parte de Polifonias - Encontros, precisamente - é sobre isso. Mas Polifonias é também sobre afinidades fortuitas, sobre o que o corso Giacometti deixou para trás apenas para o encontrar já no final da vida e no sítio mais improvável. As imagens da Córsega-natal do nosso grande etnólogo surgem logo que o filme começa, nebulosas e acidentadas, misteriosas e cifradas, intercalando e chocando com as grandes planícies alentejanas. Entre depoimentos e muitas canções vamo-nos apercebendo da grande semelhança entre o cantar alentejano e o cantar corso, os planos repetidos como refrãos vão ganhando outros sentidos, e as ilhas do Alentejo e da Córsega reúnem-se à mesa para cantar e prestar uma última homenagem ao exilado que ao fugir de casa a ela voltou, encontrando o sentido que pouca gente viu para o acto de loucura que cometeu, abraçar um país e as suas gentes como se fossem seus. Por nos fazer ver e sentir isso desta forma tão serena e musical, Polifonias é um tesouro.

[1] in «Michel Giacometti, Povo que Canta não pode morrer», Público Magazine, 5 de Agosto de 1990.
[2] Esse trabalho foi feito por Paulo Lima e Marta Ramos, a mesma de Guerra e de Paz, culminando na edição de «Como um Pedaço de Terra Virgem», pela editora BOCA.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Em Fevereiro, no Lucky Star:




Guerra (2020) de José Oliveira e Marta Ramos



por João Palhares

Quem não vive sem o cinema, acredita que ele possa servir para guardar perto de nós pessoas ou coisas que já não existem. Não o separa da vida, anulando essa necessidade de ter que haver uma distinção entre um e outra. Um dos caminhos possíveis para a vida depois da morte. Quem conheceu o José Lopes, sabe que ele imitava vampiros, samurais, gangsters e lobisomens encenando ataques, gritos e mortes com pantomimas soberbas. Que construía estórias em qualquer sítio a que fosse, ajustando as suas personagens ao que os sentidos e a intuição lhe diziam sobre o ambiente e as pessoas que o rodeavam. Lições tiradas do seu trabalho etnográfico, muito certamente. Que cantava e tocava como ninguém, fazendo pulsar das cordas vocais e da guitarra uma urgência desarmante. A maior parte das vezes na rua, que é onde a música devia estar sempre. Que era um actor de teatro extraordinário. Autodidacta, instintivo, explosivo. E também um fabuloso contador de estórias ou pequenas anedotas sobre amigos e conhecidos seus como José Afonso, Luiz Pacheco, Luís Miguel Cintra, Pedro Hestnes ou Mário Viegas. Que era um ser humano prodigioso. 
 
O Zé Lopes sempre gostou de cinema, apoiando Luís Miguel Cintra na disciplina de direcção de actores da Escola Superior de Teatro e Cinema, frequentando imenso a Cinemateca Portuguesa sempre com a sua guitarra às costas e acabando por conhecer jovens realizadores que o viam como uma espécie de irmão mais velho, ou mesmo pai, cheio de cultura e ensinamentos para lhes legar. E começou a trabalhar com eles. Assim, fez Adeus Lisboa em 2012 com João Rodrigues, Jerónimo, como é que vais? (2013) e Pastor da Noite (2016) com Mário Fernandes, e A Pena Perdida (2011), Dá-me uma gotinha de água (2013), Fala do Homem Nascido (2014), Maio Maduro Maio (2014), Soneto à Maneira de Camões (2015) e Longe (2016) com José Oliveira e Marta Ramos. Encontravam-se muito na sede do Grupo Excursionista e Recreativo Os Amigos do Minho, hoje expropriada, ponto de encontro para comer, beber, cantar e viver. Para combinar, escrever, planear e filmar a próxima curta ou a próxima longa. Com outros cúmplices encontrados por lá, como Fernando Castro, António Soares, Nelson Gonçalves, António Carvalho, entre muitos outros. 
 
Em Guerra, filme que estreia apenas este ano, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, José Lopes interpreta Manuel Santos, veterano da nossa guerra colonial que continua a ir aos encontros de antigos combatentes, camaradas de companhia, a estar com a família aparentemente pacificado e a viver a vida apesar das experiências passadas. Até não ser mais possível, porque os fantasmas não são coisas que desvaneçam da nossa mente. Terrores nocturnos, noites e tardes de bebedeira, sessões com a psicóloga e o pesadelo recomeça. Como numa descida aos infernos que se inicia lá no alto, com a inocência perdida e a saída do paraíso. Ninguém compreende a guerra, talvez sobretudo quem é obrigado a fazê-la. Em Braga, um homem que combateu nessa guerra repete quase de lágrimas nos olhos a mesma estória, na tasca que costuma frequentar: fazia parte de um coro da igreja e é convidado a cantar num casamento. Ainda não cantam, a noiva está atrasada. Esperam uns longos minutos, talvez umas horas e nada. No final, não chegam a cantar, que a noiva não aparece no casamento. Abandonou o noivo. “E ele ali a chorar,” diz várias vezes o homem estupefacto e desamparado. “A chorar.” Podia ser ele o noivo. Ou o próprio contar da estória pode ter sido a cura que encontrou para os traumas que viveu na guerra. 
 
Depois da segunda guerra mundial, o tenente Hiroo Onoda continuou a combater durante vinte e nove anos numa ilha das Filipinas. Todas as provas que lhe foram chegando do exterior a garantir que a guerra tinha acabado, só serviam para lhe provar que continuava. Panfletos japoneses e dos seus superiores atirados do ar eram, segundo ele, obra do inimigo, fotografias e cartas da família a pedir que se rendesse eram um truque do inimigo. Entretanto vieram as guerras da Coreia e do Vietname, aviões pelo ar em manobras, tiros e ataques nas redondezas, prova cabal de que a guerra continuava. Até em tempos de tréguas podemos confundir os sinais e meter na cabeça que estamos a ser atacados e não estamos seguros, como prova o "fogo de artifício" no final de Paz, dos mesmos José Oliveira e Marta Ramos, o verso da moeda de Guerra depois de Tolstoi e Ice Cube. A Hiroo Onoda valeu Norio Suzuki, jovem que tinha três aspirações na vida: encontrar o tenente Onoda, um panda e o Abominável Homem das Neves. Por esta ordem. Conseguiu encontrar o primeiro e provar-lhe finalmente, já nos anos 70, que a segunda guerra mundial tinha acabado. 
 
O Zé, a Marta e o Zé Lopes devem ter ouvido dezenas e dezenas de estórias sobre a guerra e os ex-combatentes por esse Portugal fora. “Bebes para afogar as mágoas, não é? Mas olha que as filhas-da-puta aprendem a nadar”. Como muitos ex-combatentes, o Manuel Santos de José Lopes não acreditou que tinha tudo terminado e permaneceu em guerra com o mundo e consigo próprio. E a ferida aberta da guerra e a ferida aberta do Zé Lopes deixaram tudo e todos expostos em sentimento e fragilidade, por talento do Zé e da Marta com um equilíbrio raro e num só sopro: as aparições de Luís Miguel Cintra e Diogo Dória, a ajuda resoluta e o companheirismo imprescindível do sargento Castro de Fernando Castro, a voz melódica e a presença incondicional de Dulce Pascoal, o cabelo rapado do soldado Lucas de Tiago Lucas, o andar hirto do filho no filme, Daniel Pereira, as danças arrítmicas e a voz de Pedro Rufino, o olhar perfurante e perspicaz de Ana Alexandre como psicóloga, a revolta saudável e alentadora da jovem rapper de Alice Duarte... Como se fossem todos juntando pós da alma e um pedaço de si para deixar na fogueira mística da milagrosa elevação final. Guerra e Paz são uma sinfonia.