quarta-feira, 31 de maio de 2023

Lektionen in Finsternis (1992) de Werner Herzog



por João Palhares

Numa sessão do ciclo “Cinema, jornalismo e liberdade”[1], promovida pelo Cineclube Gardunha em parceria com o Jornal do Fundão nas comemorações do seu 4000º número, José Manuel Barata-Feyo partilhou uma história dos seus tempos de televisão, na RTP, sobre a cobertura da guerra do Golfo. Ele tinha comunicado à estação que não se passava nada na capital da Jordânia, e que o melhor se calhar era voltar para Portugal, mas a redacção central disse-lhe que havia desacatos todos os dias à frente da embaixada americana e que os outros canais os estavam a difundir sob a manchete de “Jordânia a ferro e fogo”. Na verdade, o que se passava, era que todos os dias desciam vinte a trinta pessoas por uma avenida de Amã até chegarem à frente da embaixada e começarem a gritar palavras de ordem contra os Estados Unidos da América, incendiando bandeiras. O hotel onde estava hospedada toda a imprensa internacional era mesmo em frente à embaixada americana e, acompanhando esse grupo, sessenta ou setenta câmaras esperavam por eles sentados e enquadravam-nos em contra picado para parecerem uma multidão. 
 
Então, quando a redacção central pediu a Barata-Feyo que fizesse uma peça para abrir o telejornal com “a capital da Jordânia a ferro e fogo”, o jornalista falou com o seu operador de câmara, Jorge Guerreiro, e disse-lhe para filmar os manifestantes a descer a avenida. Quando chegassem aos muros da embaixada, juntava-se então às câmaras das outras televisões. Como já era um jornalista sabido e vivido, entregou a peça tarde e a más horas certamente para ninguém verificar o conteúdo e o telejornal abriu assim com as suas imagens e de Guerreiro anunciadas como a guerra em primeira mão num escalar da violência fabuloso. Escusado será dizer que, depois deste episódio, a RTP não voltou a pedir reportagens do género a Barata-Feyo. 
 
A cobertura da guerra do Golfo beneficiou das possibilidades técnicas trazidas pelos satélites, pela artilharia militar equipada com câmaras e pelas imagens de visão nocturna, o que permitiu que um canal como a CNN, que desde a sua génese se dedicava às notícias 24 horas por dia, difundisse a guerra em directo a partir de um hotel em Bagdad com enviados especiais. Só que se a técnica evoluiu, as regras apertaram quase na mesma medida, e o exército americano só libertava a informação que queria libertar, limitando ainda os acessos aos cenários de guerra e as entrevistas aos soldados a certos jornalistas, o que na prática resultava no chamado pool de imprensa que fazia proliferar as mesmas imagens horas a fio por todo o mundo. 
 
Werner Herzog, como é óbvio, não gostava dessas imagens, mas viu o potencial imagético dos incêndios dos poços de petróleo por parte do exército iraquiano no final da guerra quando os viu como toda a gente em 1991. "O mundo andava a ser saturado noite e dia com imagens dos poços de petróleo em chamas no Kuwait,” disse Herzog a Paul Cronin[2], “mas através dos filtros das notícias na televisão. Lembro-me de assistir àquelas transmissões e de saber que estava a testemunhar um acontecimento momentoso que tinha de ser registado, mas de forma singular, para a memória da humanidade. As estações e os canais por cabo tinham filmado aquilo de forma totalmente errada; aquele estilo de reportagem de tablóide, com os seus trechos de oito segundos, habituou rapidamente o público aos horrores, e toda a gente se tinha esquecido demasiado cedo daqueles campos espectaculares dum óleo ardente sereno e escuro como breu que cobria a paisagem. Eu estava à procura de imagens doutro tipo, algo de muito diferente, algo de mais duradouro. Queria ver aqueles planos a rolar em takes longos e quase intermináveis. Só assim é que as imagens podiam revelar o seu verdadeiro poder.” 
 
Assim, e na sua busca permanente da verdade pela poesia, convocou o operador de câmara da BBC, Paul Berriff, que tinha um visto de rodagem, o piloto de helicóptero experiente Jerry Grayson, e o director de fotografia aérea Simon Werry. O resultado foi Lições da Escuridão, dividido em treze curtos capítulos, um delírio poético pleno de invenções que se tornou possível para o cineasta alemão numa época de revelações estrondosas, e que aí como nos anos seguintes lhe permitiram decidir que, em cinema, e no documentário como na ficção, os factos podem servir maiores desígnios, que uma citação não é uma citação, que um sinal de proibido é uma tentativa de comunicação por parte duma raça de extraterrestres, os seres humanos, que uma postura resoluta de trabalho é uma insistência de criança em brincar com o fogo, que os objectos de estudo não têm de ser nomeados para serem visíveis e óbvios, que o turismo é crime e que o universo, esse mistério físico e abstracto que nos baralha há milénios, não sabe o que é um sorriso. A informação não é conhecimento, em milhões de anos podemo-nos transformar nos dinossauros e nos fósseis de outros seres, mais inteligentes do que nós, que viajando através do fogo e da poeira e dos destroços, numa linha recta que parte de François Couperin e termina em Dante, passando por Wagner, Grieg, Mahler e Pascal, acabarão por descobrir que houve um inferno que uma vez se chamou planeta Terra e um demónio que por lá se passeou e hoje conhecemos como ser humano. 

 “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.”

[1] «Conversa entre José Manuel Barata-Feyo e Rui Pelejão sobre o filme Network e jornalismo», disponível no canal do YouTube do Cineclube Gardunha.
[2] in «Werner Herzog: A Guide for the Perplexed - Conversations with Paul Cronin», de Paul Cronin, Faber & Faber Limited, Londres, 2014.



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