por João Palhares
Não há pior, nem melhor, do que uma página em branco. Relatos das contorções e das provações e das dúvidas que envolve encará-la, e a nós próprios, não faltam. Mas essa imagem significa também um recomeço e um oceano de possibilidades, projectadas por esperanças falsas ou verdadeiras. Há quem resolva o assunto simplesmente começando, movido pela necessidade pura, pelo tudo ou nada, pelo impulso da acção e da aventura. Há quem não o resolva e veja nas projecções ilimitadas do seu potencial a própria solução, encerrando-se em mil projectos sonhados e nunca acabados, continuados uma vírgula de cada vez, terminados num dia idealizado em que também as respostas para os mistérios profundos se materializem, é como ópio para o espírito. “Eu odeio escrever,” disse Sam Peckinpah a William Murray em 1972[1], “passo pelas torturas dos danados. Não consigo dormir e parece-me que vou morrer a qualquer minuto. Eventualmente, tranco-me a mim próprio em qualquer sítio, fora do alcance de uma arma, e avanço com o assunto de um grande impulso só. Sempre estive à volta de escritores e tinha amigos que eram escritores, mas nunca me tinha apercebido dos diabos dos montes de angústia que implica.”
A regra de ouro para a maior parte dos escritores parece ser a adopção duma rotina, seguida à risca, e iniciada preferencialmente de manhã quando se diz que o tempo mais rende, antecipando os horários habituais da sociedade antes de se ser sugado por eles. Não havendo essa possibilidade, tem de ser sempre que se pode e o tempo permite. Mas as coisas parecem correr melhor, para outros, quando o próprio acto de escrever é uma solução para um problema. Ou quando o correr melhor não é uma questão que sequer se coloca, porque a única solução é escrever. Para pagar dívidas, para pôr pão na mesa, para dar diálogos a um actor antes de rodar a sua cena, para cumprir prazos e resolver problemas. E depois há Werner Herzog e Aguirre. “Eu não preciso de me enfiar num mosteiro ou de me retirar para um sítio calmo durante meses sem fim para escrever,” disse Herzog a Paul Cronin[2], “a maior parte do argumento foi escrita num autocarro que ia para Itália com a equipa de futebol de Munique em que eu jogava. Pela altura em que chegámos a Salzburgo, apenas umas horas depois da viagem começar, estava toda a gente bêbeda e a cantar canções obscenas porque a equipa tinha bebido a maior parte da cerveja que levávamos como presente para os nossos adversários. Eu estava sentado com a minha máquina de escrever ao colo. Na verdade, escrevi aquilo tudo quase só com a mão esquerda porque, com a direita, tentava-me defender do nosso guarda-redes estatelado no lugar ao meu lado. Eventualmente, vomitou por cima da máquina de escrever. Algumas das páginas ficaram sem salvação possível e tive de as atirar pela janela fora. Houve belas cenas que se perderam porque eu não me consegui lembrar do que tinha acabado de escrever. Desapareceram para sempre. A vida na estrada é mesmo assim. Mais para a frente, entre jogos de futebol, escrevi furiosamente durante três dias e acabei o guião.”
Werner Herzog disse que Die große Ekstase des Bildschnitzers Steiner é um dos seus filmes mais importantes. Podemo-nos perguntar porque é que disse isso, já que o projecto teve uma data de contrapartidas e contrariedades: teve de ter menos que uma hora de duração, e mesmo assim viu quinze minutos cortados, tinha de ter a presença do próprio realizador, a certa altura os produtores até sugeriram que se acompanhasse outros esquiadores em vez de Steiner, porque achavam que não era ele que ia vencer a competição e bater recordes, a decisão das imagens em câmara lenta implicava uma enorme precisão no enquadramento dos esquiadores durante os saltos, o próprio Steiner mostrou receio de que algumas das coisas que disse durante a rodagem fossem utilizadas na montagem final. Enfim. Quando se diz e se mostra e se acredita que um atleta é um artista, então o artista tem de ser um atleta e aguentar a neve e a pressão e o receio de que as coisas não possam correr pelo melhor. Durante o processo, pode descobrir que a narração é uma via para a sua obra futura, que as citações podem ser feitas com aspas e mesmo assim confundidas e apropriadas, que um documentário é uma ficção pegada e que o êxtase e a poesia são verdades descritíveis e demonstráveis. No salto duma centena e dezenas de metros, por breves momentos suspensos num transe no ar, os saltadores de esqui arriscam a vida esquecendo-se da própria vida e da morte, esquecendo-se de si próprios e do mundo, portanto que desafio poderá ser escrever ou filmar o que quer que seja por comparação? A página em branco e o grande salto entrelaçam-se. Se é possível alguém se superar a si próprio a dezenas de metros de altitude por quase duzentos metros de comprimento então tudo é possível. Até o impossível.
[1] in «Sam Peckinpah: Playboy Interview, William Murray, Playboy, 1972.
[2] in «Werner Herzog: A Guide for the Perplexed - Conversations with Paul Cronin», de Paul Cronin, Faber & Faber Limited, Londres, 2014.
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