quinta-feira, 25 de maio de 2023

Little Dieter Needs to Fly (1997) de Werner Herzog



por Joaquim Simões

Dieter Dengler é um homem assombrado pela morte à qual escapou, ou antes, pela qual foi rejeitado. Viu amigos morrerem da maneira mais violenta e gráfica possível. Um deles vem por vezes dizer-lhe que tem frio nos pés, por isso Dieter nunca baixa a capota do carro, mesmo no calor do Verão. E ao entrar em casa fecha e abre a porta repetidamente, para saborear a liberdade: quando esteve preso na selva do Vietname as portas nunca se abriam. 

A vida do pequeno Dieter foi moldada desde a infância pela guerra e pela morte. Quando era criança assistiu ao bombardeamento da sua vila, e um avião passou a rasar por cima da sua casa, tão perto da sua janela que o viu a aproximar-se como um espetro, uma visão “indescritível”. A partir desse momento decidiu que queria voar. Herzog, conterrâneo de Dieter e também ele uma vítima da miséria da Alemanha pós-guerra, dá a este veterano a oportunidade de contar a sua história, captando-a com o seu experiente olho documental. Mais tarde irá tornar esta história fantástica numa ficção em Rescue Dawn

Depois da segunda guerra a Alemanha não podia ter uma força aérea; para concretizar o seu sonho, Dieter teria de emigrar para os Estados Unidos. Com dezoito anos, trinta cêntimos no bolso e muita fome embarcou num navio. Dois anos passados no Texas a descascar batatas e outros dois a viver numa carrinha na Califórnia, a trabalhar e a estudar; finalmente conseguiu entrar na marinha. O pequeno Dieter começou a voar e foi diretamente para o Vietname. 

“Visto de cima, o Vietname não parecia real. Dieter viu-se no papel não só de piloto, mas de soldado envolvido numa guerra. Embora fosse tudo muito real, tudo lá em baixo parecia abstrato”, relata Herzog. Um dia despenhou-se, e o que tinha visto de cima como uma mera abstração iria rodeá-lo durante os próximos seis meses. A morte voltava para o assombrar, e tão perto esteve dela que a chegou a considerar a sua única amiga. Mas ela não o quis e Dieter foi salvo. 
 
A história de Dieter é tão alucinante que desafia a credulidade do espectador habituado às ficções de guerra; nem a maior parte dos filmes de ação chega a tais exageros: só a realidade é que não tem limites. Ao longo da narração de Dieter Dengler, vamo-nos apercebendo e sendo cada vez mais assoberbados pela capacidade de resistência e coragem de que este homem foi capaz. Não só passou por eventos traumáticos com uma capacidade de resiliência e foco surpreendentes, como é agora capaz de relatar todos os eventos eloquentemente e com todo o pormenor. 

Herzog, no entanto, não se limita a fazer o registo passivo da narração de Dieter Dengler, acompanhada por imagens ilustrativas, como seria o expectável num documentário banal. O realizador desafia o sujeito a enfrentar mais uma vez o trauma, a embrenhar-se novamente na selva que o engoliu e cuspiu passados seis meses. Num plano que poderá parecer cruel, Herzog põe-no a correr pela selva de mãos atadas atrás das costas, escoltado por vietnamitas com espingardas. Embora fosse tudo a fingir o seu coração batia violentamente, admite, como se fosse real. E foi.



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