por Joaquim Simões
Dieter Dengler é um homem assombrado pela morte à qual escapou, ou antes, pela qual foi
rejeitado. Viu amigos morrerem da maneira mais violenta e gráfica possível. Um deles vem
por vezes dizer-lhe que tem frio nos pés, por isso Dieter nunca baixa a capota do carro,
mesmo no calor do Verão. E ao entrar em casa fecha e abre a porta repetidamente, para
saborear a liberdade: quando esteve preso na selva do Vietname as portas nunca se abriam.
A vida do pequeno Dieter foi moldada desde a infância pela guerra e pela morte. Quando
era criança assistiu ao bombardeamento da sua vila, e um avião passou a rasar por cima da
sua casa, tão perto da sua janela que o viu a aproximar-se como um espetro, uma visão
“indescritível”. A partir desse momento decidiu que queria voar. Herzog, conterrâneo de
Dieter e também ele uma vítima da miséria da Alemanha pós-guerra, dá a este veterano a
oportunidade de contar a sua história, captando-a com o seu experiente olho documental.
Mais tarde irá tornar esta história fantástica numa ficção em Rescue Dawn.
Depois da segunda guerra a Alemanha não podia ter uma força aérea; para concretizar o
seu sonho, Dieter teria de emigrar para os Estados Unidos. Com dezoito anos, trinta
cêntimos no bolso e muita fome embarcou num navio. Dois anos passados no Texas a
descascar batatas e outros dois a viver numa carrinha na Califórnia, a trabalhar e a estudar;
finalmente conseguiu entrar na marinha. O pequeno Dieter começou a voar e foi
diretamente para o Vietname.
“Visto de cima, o Vietname não parecia real. Dieter viu-se no papel não só de piloto, mas de
soldado envolvido numa guerra. Embora fosse tudo muito real, tudo lá em baixo parecia
abstrato”, relata Herzog. Um dia despenhou-se, e o que tinha visto de cima como uma mera
abstração iria rodeá-lo durante os próximos seis meses. A morte voltava para o assombrar, e
tão perto esteve dela que a chegou a considerar a sua única amiga. Mas ela não o quis e
Dieter foi salvo.
A história de Dieter é tão alucinante que desafia a credulidade do espectador habituado às
ficções de guerra; nem a maior parte dos filmes de ação chega a tais exageros: só a
realidade é que não tem limites. Ao longo da narração de Dieter Dengler, vamo-nos
apercebendo e sendo cada vez mais assoberbados pela capacidade de resistência e coragem
de que este homem foi capaz. Não só passou por eventos traumáticos com uma capacidade
de resiliência e foco surpreendentes, como é agora capaz de relatar todos os eventos
eloquentemente e com todo o pormenor.
Herzog, no entanto, não se limita a fazer o registo passivo da narração de Dieter Dengler,
acompanhada por imagens ilustrativas, como seria o expectável num documentário banal. O
realizador desafia o sujeito a enfrentar mais uma vez o trauma, a embrenhar-se novamente
na selva que o engoliu e cuspiu passados seis meses. Num plano que poderá parecer cruel,
Herzog põe-no a correr pela selva de mãos atadas atrás das costas, escoltado por
vietnamitas com espingardas. Embora fosse tudo a fingir o seu coração batia violentamente,
admite, como se fosse real. E foi.
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