por António Cruz Mendes
Herzog é muitas vezes referido como um “romântico”, o que me parece
perfeitamente válido quando pensamos em filmes como Aguirre, a cólera de Deus, ou Fitzcarraldo, que pudemos ver nas duas últimas
sessões. O interesse de Herzog por indivíduos excepcionais, vivendo em
situações limite e por histórias susceptíveis de serem lidas como metáforas da condição humana, está também presente em A Canção de
Bruno S. No entanto, o registo deste filme, ao contrário dos anteriores,
é cruamente realista. A libertação de Bruno, logo na primeira sequência, é descrita como um processo burocrático: inventariam-se pertences, fazem-se perguntas das quais se sabe antecipadamente as respostas, preenche-se uma ficha e dão-se “bons conselhos” prontamente
acatados (mas, logo imediatamente violados). Já não nos encontramos
diante de misteriosas e ameaçadoras florestas virgens, mas de processos ordinários e situações facilmente reconhecíveis. E Bruno não é um
visionário que alimenta paixões quiméricas e sonhos desmedidos. É
apenas um pobre diabo, que anseia por uma vida comum.
“Stroszek” não é, aliás, uma personagem inteiramente ficcionada. Bruno S. é Bruno Schleinstein, operário e músico autodidacta que Herzog descobriu quando, em 1970, viu o documentário Bruno der
Schwarze - Es blies ein Jäger wohl in sein Horn [Bruno, o Negro
– Um dia um caçador tocou a sua trompa], e que recrutou como actor
principal para O Enigma de Kasper Hauser (1974) e, depois, para
este filme, onde se vêm sequências filmadas na sua própria casa e ele
toca os seus próprios instrumentos. Sabe-se de Bruno Schleinstein que
era filho de uma prostituta, que foi frequentemente agredido quando era criança e que passou boa parte da sua vida em instituições
psiquiátricas. A história do miúdo obrigado a segurar, de pé, os lençóis
que urinou durante a noite passou-se realmente com ele e a cena da
humilhação e espancamento de Bruno pelos dois bandidos de Berlim,
replica situações realmente vividas por Schlenstein.
Quanto a Stroszek, sabemos que é um miserável, que esteve preso por delitos
que terá cometido sob a influência do álcool, e que saiu da cadeia, onde fez
amigos e contava com pessoas que se preocupam com ele, para enfrentar um
mundo ainda mais violento e impiedoso. Num diálogo com Eva, a prostituta
que tenta proteger e que o acompanha, com Scheltz, nessa tentativa falhada
de refazer a vida nos Estados Unidos, diz que as portas da cadeia continuam
escancaradas à sua espera.
Aquilo que podemos observar no deprimente descampado onde se instala no
Wisconsin é o desabar do seu “sonho americano”. A princípio, a casa pré-fabricada
que vai habitar ainda se pode parecer com um lar, habitado por essa estranha
família formada por Bruno S., Eva e Scheltz, onde existem afectos e cumplicidades. Mas, rapidamente, ressurgem os problemas económicos, Eva volta a
prostituir-se e Scheltz aliena-se em estranhas pesquisas sobre “magnetismo
animal” e efabula teorias da conspiração. Bruno está de novo sozinho, mais
uma vez humilhado pelos que o rodeiam, e o facto de não falar inglês apenas
acentua a sua sensação de estranheza, o absurdo do mundo onde está condenado a viver.
Os seus últimos actos, a tentativa caricata de assalto a um banco que se transforma no roubo à mão armada de uma caixa registadora de uma lojeca, podem
ser vistos, de resto, como uma tentativa desesperada de regresso à cadeia,
aquela espécie de refúgio onde o filme se inicia. Cumpre-se o círculo que um
camião desgovernado desenha numa das últimas sequências do filme.
A Canção de Bruno S. oferece-nos, através da experiência de Stroszek, uma
visão desalentada da vida. Herzog resume-a na sequência final das caixas onde,
metendo uma moeda, se podem ver imagens de animais a fazer habilidades.
Numa delas, uma galinha dança em círculos. Assim seria a vida: inserimos uma
moeda numa jukebox e dançamos enquanto a música dura.
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