quarta-feira, 17 de maio de 2023

Stroszek (1977) de Werner Herzog



por António Cruz Mendes

Herzog é muitas vezes referido como um “romântico”, o que me parece perfeitamente válido quando pensamos em filmes como Aguirre, a cólera de Deus, ou Fitzcarraldo, que pudemos ver nas duas últimas sessões. O interesse de Herzog por indivíduos excepcionais, vivendo em situações limite e por histórias susceptíveis de serem lidas como metáforas da condição humana, está também presente em A Canção de Bruno S. No entanto, o registo deste filme, ao contrário dos anteriores, é cruamente realista. A libertação de Bruno, logo na primeira sequência, é descrita como um processo burocrático: inventariam-se pertences, fazem-se perguntas das quais se sabe antecipadamente as respostas, preenche-se uma ficha e dão-se “bons conselhos” prontamente acatados (mas, logo imediatamente violados). Já não nos encontramos diante de misteriosas e ameaçadoras florestas virgens, mas de processos ordinários e situações facilmente reconhecíveis. E Bruno não é um visionário que alimenta paixões quiméricas e sonhos desmedidos. É apenas um pobre diabo, que anseia por uma vida comum. 
 
“Stroszek” não é, aliás, uma personagem inteiramente ficcionada. Bruno S. é Bruno Schleinstein, operário e músico autodidacta que Herzog descobriu quando, em 1970, viu o documentário Bruno der Schwarze - Es blies ein Jäger wohl in sein Horn [Bruno, o Negro – Um dia um caçador tocou a sua trompa], e que recrutou como actor principal para O Enigma de Kasper Hauser (1974) e, depois, para este filme, onde se vêm sequências filmadas na sua própria casa e ele toca os seus próprios instrumentos. Sabe-se de Bruno Schleinstein que era filho de uma prostituta, que foi frequentemente agredido quando era criança e que passou boa parte da sua vida em instituições psiquiátricas. A história do miúdo obrigado a segurar, de pé, os lençóis que urinou durante a noite passou-se realmente com ele e a cena da humilhação e espancamento de Bruno pelos dois bandidos de Berlim, replica situações realmente vividas por Schlenstein. 

Quanto a Stroszek, sabemos que é um miserável, que esteve preso por delitos que terá cometido sob a influência do álcool, e que saiu da cadeia, onde fez amigos e contava com pessoas que se preocupam com ele, para enfrentar um mundo ainda mais violento e impiedoso. Num diálogo com Eva, a prostituta que tenta proteger e que o acompanha, com Scheltz, nessa tentativa falhada de refazer a vida nos Estados Unidos, diz que as portas da cadeia continuam escancaradas à sua espera. 

Aquilo que podemos observar no deprimente descampado onde se instala no Wisconsin é o desabar do seu “sonho americano”. A princípio, a casa pré-fabricada que vai habitar ainda se pode parecer com um lar, habitado por essa estranha família formada por Bruno S., Eva e Scheltz, onde existem afectos e cumplicidades. Mas, rapidamente, ressurgem os problemas económicos, Eva volta a prostituir-se e Scheltz aliena-se em estranhas pesquisas sobre “magnetismo animal” e efabula teorias da conspiração. Bruno está de novo sozinho, mais uma vez humilhado pelos que o rodeiam, e o facto de não falar inglês apenas acentua a sua sensação de estranheza, o absurdo do mundo onde está condenado a viver. 

Os seus últimos actos, a tentativa caricata de assalto a um banco que se transforma no roubo à mão armada de uma caixa registadora de uma lojeca, podem ser vistos, de resto, como uma tentativa desesperada de regresso à cadeia, aquela espécie de refúgio onde o filme se inicia. Cumpre-se o círculo que um camião desgovernado desenha numa das últimas sequências do filme. 

A Canção de Bruno S. oferece-nos, através da experiência de Stroszek, uma visão desalentada da vida. Herzog resume-a na sequência final das caixas onde, metendo uma moeda, se podem ver imagens de animais a fazer habilidades. Numa delas, uma galinha dança em círculos. Assim seria a vida: inserimos uma moeda numa jukebox e dançamos enquanto a música dura.



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