por António Cruz Mendes
Herzog foi um dos expoentes do novo cinema alemão e Aguirre, a cólera de Deus é, possivelmente, a sua obra-prima. O filme baseia-se
numa história real, mas o seu argumento afasta-se dos factos narrados
pelo padre Gaspar de Carvajal para poder salientar nessa expedição
em busca do El Dorado a sua dimensão metafórica. Nesse sentido,
ele tem sido, por vezes, referido como uma alegoria do III Reich ou
como uma variação do tema nietzschiano da “vontade de poder”. Parecem-me interpretações redutoras ou mesmo abusivas. É verdade que
o filme debruça-se também, como nota Claude Beylie, sobre a questão
do poder e do seu abuso e sublinha a ambígua e doentia relação de
fascínio e repulsa que Aguirre exerce sobre os que o seguem na sua
suicidária expedição. Mas, aquela dimensão metafórica, remete-nos
antes para o esplendor e a estranheza dos significantes erráticos de
que nos fala Jean-Pierre Oudart.
Mais interessantes parecem-me ser as opiniões daqueles que, como
Jean Tulard, vêm Herzog como o mais romântico dos realizadores
alemães da sua geração e destacam o seu gosto pelos marginais e
pelos solitários. Teremos a oportunidade o confirmar nos outros filmes
que completam o ciclo que lhe dedicamos.
Aguirre, interpretado por Klaus Kinski, um actor com quem Herzog
manteve uma longa e conflituosa relação, é o protagonista do filme.
Mas, a floresta, sumptuosa e inacessível barreira onde se ocultam todos os perigos, as ameaças invisíveis que pendem sobre a vida humana, não tem nele um papel secundário. É penetrada pelo rio, primeiro
tumultuoso, depois, assustadoramente silencioso. Por ele erram as balsas dos aventureiros que ousaram desafiar o seu poder. Comanda-os
Aguirre. Ursúa, a voz do bom senso, e Guzman, a mediocridade que se
compraz em possíveis riquezas, são eliminados. O que motiva Aguirre
é o poder, o desejo do absoluto. Aguirre quer conquistar o desconhecido, submete-lo à sua força. Vê-o render-se a si tal como os mortais
se rendem à “fúria dos deuses”. É essa húbris que o perderá. Como na
mitologia e nas tragédias gregas, a sua arrogância, a sua desmedida,
será punida pela ira dos deuses.
É verdade que a sua expedição se faz também em nome de deus. Atesta-o a
presença do padre Carvajal. Mas, não é desse deus que se trata. Ele nada diz
ao indígena que leva a Bíblia à orelha para ouvir a sua voz. Os deuses que condenam Aguirre são deuses muito mais antigos, deuses que podemos entender
personificados nessa natureza selvagem que os homens querem domar.
Aguirre é derrotado. Contudo, nas imagens finais, ainda o veremos, sozinho,
na sua jangada, coberta pelos corpos dos seus companheiros e invadida por
pequenos macacos, de pé, olhos no horizonte, a proclamar os seus sonhos de
glória.
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