sexta-feira, 30 de junho de 2023

300 sessão: dia 4 de Julho (Terça-Feira), às 21h30


Lucky Star de Borzage é a 300ª sessão do cineclube

Na sua 300ª sessão, no dia 4 de Julho, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir o filme de Frank Borzage que lhe dá o nome, Lucky Star, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Lucky Star foi um filme que esteve perdido durante muitas décadas, o que acabou por ser o destino de imensas obras do cinema mudo. No entanto, no final dos anos 80 encontrou-se uma cópia nos arquivos do Dutch Filmmuseum, em Amsterdão, procedendo-se ao seu restauro e lançamento nos anos seguintes.

No filme, Janet Gaynor interpreta Mary Tucker, a filha duma fazendeira viúva que chama a atenção de dois amigos, Timothy Osborn (interpretado por Charles Farrell) e Martin Wrenn. Nas vésperas da entrada dos Estados Unidos na Primeira Grande Guerra, ambos os amigos são chamados para a frente de batalha. Quando regressam, Osborn está confinado a uma cadeira de rodas.

Frank Borzage nasceu em Salt Lake City, no Utah, a 23 de Abril de 1894. Filho dum pedreiro natural duma área agora italiana do antigo Império Austríaco e duma empregada suíça duma fábrica de seda, chegou a Hollywood em 1912 e começou a trabalhar como actor, estreando-se na realização em 1915 com The Pitch of Chance.

Nos anos vinte, Borzage realizou vinte e seis filmes, ganhando o primeiro Oscar de Melhor Realizador com A Hora Suprema, o primeiro filme a reunir o par formado por Janet Gaynor e Charles Farrell, que trabalhariam juntos em mais onze filmes até meados dos anos trinta, duas vezes das quais com Frank Borzage, em O Anjo da Rua e Lucky Star.

Grande admirador do filme, João Bénard da Costa escreveu que “nenhum filme como Lucky Star existe talvez tão desarmantemente simples. Nenhum filme, como Lucky Star, existe talvez tão desarmantemente complexo. Só os grandes sentimentais são capazes de ser tão perversos e só o melodrama pode ser tão fundamentalmente transgressor.” 

Terminando a sua filha da Cinemateca, concluiu que “nunca ouvi uma história de almas tão bela como esta e nunca vi uma história de corpos tão poderosa e tão vulnerável como esta. E o milagre daqueles corpos - corpo de Janet Gaynor, corpo de Charles Farrell - é igual ao milagre daquelas almas. Só a carne ressuscita.”

As sessões do Lucky Star ocorrem às terças-feiras e, excepcionalmente este mês, na segunda quinta e sexta-feira, às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Em Julho, no Lucky Star:




quinta-feira, 29 de junho de 2023

Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson



por Alexandra Barros

Encontrado recorrentemente em listas de “melhores filmes de sempre”, Au hasard Balthazar acompanha um burro desde o baptismo, com o sal da sabedoria, até à morte. Atirado, por sucessivas casualidades, de dono em dono, (quase) tudo o que a vida reserva a Balthazar são trabalhos árduos e sofrimento. Por causa dos muitos símbolos cristãos presentes no filme, nele podemos ver uma representação da passagem de Cristo pela Terra, mas as suas imagens enigmáticas evocam diversos outros significados mais vulgares (no sentido de não divinos) e o filme pode ler-se – também – como uma alegoria da condição humana. 

Marie “apaixona”-se por Balthazar e, durante a infância, divide o seu afecto entre o burrinho e o seu querido Jacques. A vida é doce para todos, mas a morte de uma irmã de Jacques altera inesperadamente o rumo das suas existências. Balthazar fica sujeito aos grilhões dos senhores que lhe vão calhando em sorte. Marie, amarrada ao domínio de um pai ultraprotector e ao desgosto amoroso que por causa dele vai sofrer, tentará libertar-se, mas vai substituir estas amarras por outras, sem nunca conseguir realmente escapar. 

Quando Marie é abandonada, sem explicação, por Jacques, devido a desavenças entre os respectivos pais, a sua ternura e essência amorosa passam a ser totalmente dirigidas para Balthazar. Acontece-lhe então a força do desejo de Gérard. Unidos pelo impulso sexual, que Marie confunde com o amor, Gérard e Marie têm uma relação física, cheia de indeterminações e duplicidades. Marie parece submeter-se a Gérard, mas essa submissão é uma via (que se vem a revelar sacra) para a auto- afirmação, uma forma (ilusória) de se evadir da prisão atrofiante de um pai que pretende amá-la, mas é indiferente aos seus sentimentos. A liberdade ansiada lança Marie numa sucessão atribulada de acontecimentos, que aparentemente espelham o martírio de Balthazar. Porém, a mortificação de Marie tem origem, mais do que na crueldade dos homens, nos arreios que lhes tolhem e determinam os movimentos: o orgulho e inflexibilidade do pai, a cobardia e inconsequência de Jacques, a procura de prazeres imediatos e a vida delinquente e sem sentido de Gérard, a avareza e egoísmo de um comerciante rico. 

A ambiguidade de Marie em relação a Gérard, fica expressa logo na primeira tentativa de aproximação. Na cena nocturna em que Gérard espia Marie no seu jardim, esta, sabendo-se observada, “oferece” a mão, pousando-a ao alcance de Gérard, no banco em que está sentada. Retira-a, porém, bruscamente quando Gérard está prestes a tocá-la. 

Nesta, como em diversas outras cenas, Bresson filma apenas as mãos e os seus gestos, sugerindo o que se passa no interior das personagens, sem nunca o explicitar. Para Bresson, o cinema não é a reprodução ou narração de uma história, nem consiste em filmar actores a interpretá-la. Numa entrevista realizada a propósito deste filme[1], Bresson afirma que o poder do cinema está no carácter simbólico das imagens. Para si, o cinema como arte (não o cinema-entretenimento) é feito da justaposição de imagens, da justaposição de imagens e sons e da justaposição de sons com outros sons. É através deste processo que há criação porque através dele as imagens transformam-se. "É necessário que uma imagem se transforme em contacto com outras imagens, como uma cor em contacto com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo ou de um vermelho. Não há arte sem transformação".[2] Para o processo resultar, cada imagem tem que ter uma certa neutralidade, não pode ter demasiado significado dramático. Esse significado deve emergir da interacção com as outras imagens. Entre o que é mostrado e o que não é mostrado surge a complexidade, a riqueza artística. Daí Bresson recusar o sentimentalismo encenado e a teatralidade, e preferir trabalhar com actores não profissionais. Daí, também, as personagens serem, muitas vezes, mostradas em enquadramentos onde cabem o tronco ou as pernas ou as mãos, mas não o rosto. Neste como noutros filmes, é repetidamente pelas mãos que as personagens “falam”. Além das mãos, e da linguagem corporal, Bresson recorre frequentemente a portas e janelas como elementos simbólicos. Estas estruturas têm uma intrigante e quase surreal presença no encontro final (que Bresson não mostra) entre Marie e o bando de Gérard, quando estes infligem a Marie o seu mais duro golpe. Também Balthazar está prestes a sofrer, uma última vez, às mãos do mesmo bando. 

As metáforas e alusões abundam nestas cenas finais. Balthazar é obrigado a transportar pesados alforges carregados de ouro e perfume, as ofertas dos Reis Magos por ocasião do nascimento de Jesus. Atingido por uma bala, a ferida circular por onde escorre o seu sangue, assemelha-se às Chagas de Cristo. Ferido, Balthazar deixa a protecção da cerrada floresta alpina e desce para um vale a céu aberto onde pasta um rebanho. Rodeado por montanhas ao longe e ovelhas ao perto, deita-se, por fim. Estas belíssimas imagens são mais luminosas que quaisquer outras no filme: o sol está radioso, a paisagem natural é encantadora, no ar ressoam apenas os indolentes sinos das ovelhas. De Marie nada mais se sabe, além de que partiu sem despedidas. 

J.L.Godard, com um invejável poder de síntese, descreveu assim o filme: “o mundo numa hora e meia”.




sexta-feira, 23 de junho de 2023

299ª sessão: dia 27 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Obra-prima de Robert Bresson na BLCS 
 
O ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, termina na próxima terça-feira às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva com a exibição de um dos mais célebres filmes de Robert Bresson, Peregrinação Exemplar

Bresson nasceu a 25 de Setembro de 1901, na comuna de Bromont-Lamothe, departamento de Puy-de-Dôme, região de Auvergne-Rhône-Alpes, no centro de França. Formou-se no Lycée Lakanal, perto de Paris, virando-se para a pintura e para a fotografia depois da formatura. Realizou a primeira curta-metragem, Les affaires publiques, em 1934. 
 
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi prisioneiro de guerra por um ano, uma experiência que transpôs para a sua quarta longa-metragem, Fugiu um Condenado à Morte, de 1956. Em 1959, realiza aquele que é provavelmente o seu filme mais conhecido, Pickpocket, sobre um carteirista vigiado pela polícia que se apaixona por uma vizinha. 
 
O seu último filme, L’argent, sobre o destino duma nota falsa de quinhentos francos à medida que passa pela mão de vários proprietários, e baseado numa história de Lev Tolstoi, estreou-se em 1983, arrecadando o prémio de Melhor Realizador no Festival de Cannes e na NSFC, a Sociedade Nacional de Críticos de Cinema fundada em 1966 por Hollis Alpert e com sede em Nova Iorque. 
 
Au Hasard Balthazar, conhecido entre nós pelo título de “Peregrinação Exemplar”, foi lançado a 15 de Maio de 1966 no Festival de Cannes, e centra-se sobre a vida dum burro chamado Balthazar e a violência de que é alvo por parte dos vários donos que tem, representando cada um segundo o realizador francês um pecado capital. 
 
Escrito e realizado por Bresson, o filme é interpretado principalmente por não-actores, destacando-se nele a estreante Anne Wiazemsky, que trabalharia depois com Jean-Luc Godard em La Chinoise, Week-end, One + One e Tout va bien, Pier Paolo Pasolini em Teorema e Pocilga, e Philippe Garrel em L’enfant secret de 1979. 
 
Segundo João Bénard da Costa, que foi um dos grandes admiradores deste filme e do seu realizador, Au Hasard Balthazar é “um filme ímpar, não só na filmografia do autor, como em qualquer obra do cinema sua contemporânea.” 
 
As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Les diaboliques (1955) de Henri-Georges Clouzot



por Joaquim Simões

Diz-se que o Hitchcock falhou por apenas algumas horas em comprar a tempo os direitos do livro Celle qui n’était plus, e que, se a História permitisse divergências, poderia ter sido o mestre do suspense a realizar mais um dos melhores filmes do género. Mas acontece que foi Clouzot que, após ter lido o romance inteiro numa noite, decidiu imediatamente adaptá-lo, comprando os direitos na manhã seguinte e cancelando assim esse outro hipotético filme que, conquanto possamos desejar ter coexistido com o atual, dificilmente desejaríamos que o substituísse: Clouzot não fez menos do que criar um dos mais inesquecíveis clássicos de mistério e subtil terror. 

O filme teve um período de adaptação de 18 meses, um processo de co-escrita do realizador com o seu irmão, Jean Clouzot (sob o pseudónimo Jérome Géronimi) que transformou vários aspetos do romance, incluindo uma transposição de parte da ação para Niort, lugar de nascimento do realizador, e uma troca de géneros do casal (no filme, Christina e Michel Delassalle) que não só permitiu eliminar um caso lésbico e evitar complicações de censura, mas também dar maior relevo ao papel de Christina, interpretada pela mulher do realizador, Véra Clouzot. Para que a sua mulher tivesse ainda mais relevo no filme, Clouzot esforçava-se por iluminá-la propositadamente, mantendo a Simone Signoret na sombra, escreveu o ator Paul Meurisse nas suas memórias. 

A história é ao mesmo tempo um drama psicológico da descida para os infernos do remorso criminoso e um mistério policial. No entanto é o primeiro aspeto que dá ao filme a sua força: durante e depois do crime cometido não podemos deixar de sentir a tensão que os objetos e as situações mundanas exercem sobre a consciência da personagem de Christina. Esta tensão é manejada soberbamente por Clouzot, e embora seja a curiosidade e a procura de respostas que conduzem o filme, são o sofrimento e a culpa que lhe conferem o tom e criam o ambiente sobrenatural que nos permite, dentro de um universo realista, acreditar no fantástico. Neste aspeto o filme relaciona-se novamente com Hitchcock, e não é difícil de encontrar semelhanças com o seu estilo e especialmente no que toca à presença invisível do sobrenatural. Mas para isso há também outra razão: é que o mestre aprendeu a lição e segurou a tempo os direitos do próximo romance dos mesmos autores; já com a influência do filme soberbo que Clouzot legou ao mundo, fez outro chamado Vertigo.



sexta-feira, 16 de junho de 2023

298ª sessão: dia 20 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Lucky Star exibe filme de Henri-Georges Clouzot 

As Diabólicas, de Henri-Georges Clouzot, é a próxima sessão do ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, na próxima Terça-Feira às 21h30 na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

O filme é uma adaptação do romance Celle qui n’était plus, da dupla Boileau-Narcejac, formada pelos escritores franceses Pierre Louis Boileau e Pierre Ayraud, que adoptou o pseudónimo de Thomas Narcejac. A dupla é também responsável pelo policial D’entre les morts, que daria origem a Vertigo de Alfred Hitchcock, e foi publicado entre nós pela editora Europa-América em 1959 sob o título de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”. 

As Diabólicas, de 1955, conta com as interpretações de Simone Signoret e de Véra Clouzot, esposa do cineasta. Foi um grande sucesso em França, onde conseguiu um total de 3,674, 380 espectadores, vencendo ainda o Prémio Louis Delluc para Melhor Filme, e o de Melhor Filme Estrangeiro dos New York Film Critics Circle Awards e dos Edgar Allan Poe Awards. 

Ambientado num colégio interno em Saint-Cloud, Hauts-de-Seine, nos subúrbios de Paris, o filme descreve a aliança que duas mulheres (as “diabólicas” do título), Christina Delassalle e Nicole Horner, formam para assassinar o marido e amante delas, que antagoniza os alunos do colégio e maltrata as suas companheiras. 

Henri-Georges Clouzot nasceu em Niort a 20 de Novembro de 1907, ingressando em Ciências Políticas depois de não conseguir admissão na Escola Naval, devido a uma miopia no olho esquerdo. No início dos anos 30 vai para a Alemanha, e além de se tornar assistente de Anatole Litvak, supervisiona as versões francesas de filmes de Joe May e Karl Hartl, escrevendo ainda guiões para Jacques de Baroncelli, Carmine Gallone e Victor Tourjanski. 

Autor dos filmes L’assassin habite… au 21, O Corvo, Quai des Orfèvres e O Salário do Medo, Clouzot inicia em 1964 a produção dum filme que, segundo ele, iria revolucionar o cinema, “L’enfer”. Tem um enfarte durante a rodagem e o filme nunca será terminado. Ainda na década de 60, trabalha em televisão e realiza a sua última longa-metragem, La prisonnière, em 1968. Morrerá em Janeiro de 1977 em Paris. 

As sessões do Lucky Star - Cineclube de Braga ocorrem sempre às terças, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Les enfants du paradis (1945) de Marcel Carné



por João Palhares

9 de Agosto de 1943, em Nice, nos estúdios da Victorine. Marcel Albert Carné, parisiense e filho de marceneiro, inicia a rodagem daquela que será a sua sétima longa-metragem, Les enfants du Paradis. O interesse e o tema surgem-lhe quando está com Jacques Prévert, o seu argumentista, e encontram por acaso Jean-Louis Barrault na Promenade des Anglais e este lhes começa a contar várias histórias sobre as suas experiências no mundo do teatro e sobre o lendário Baptiste Deburau. O episódio que os convenceu, apesar de não estar no filme, foi o do julgamento de Debureau pelo homicídio às claras dum bêbado que lhe insultou a namorada da altura no meio da rua. Bateu-lhe com uma bengala na cabeça e o golpe foi demasiado forte. Foi metade de Paris assistir ao julgamento, principalmente para conhecer a voz do mais famoso dos mimos. 
 
Prévert e Carné não acharam que esse episódio desse um filme, porque se usassem Barrault como actor (como acabaram por usar, e para encarnar mesmo a personagem de Baptiste, mas sem esse episódio na acção do filme) a sua voz não seria uma novidade e se apostassem num desconhecido ninguém estaria curioso em saber como era a voz dele. E Prévert não viu ali nada, de todo, mas Carné pensou que a personagem e a época podiam dar uma bela história: Baptiste Deburau, o rei da pantomima no século XVIII, o modelo e o ídolo dos miúdos da rua, Frédérick Lemaître, um dos actores preferidos de Victor Hugo, que lhe confiou vários papéis nas suas peças e lhe chamou mesmo “o actor supremo”, e o poeta assassino e guilhotinado Pierre-François Lacenaire. Todos apaixonados pela mesma mulher, uma “Garance” inventada mas que é o espelho das paixões e dos sonhos deles, da sua época e do seu ambiente entre idas e vindas pelo famoso Boulevard du Temple, “a alameda do crime” que os viu nascer, amar e morrer. 
 
O enorme cenário do Boulevard du Temple, construído no mesmo estúdio em que se tinha erguido o castelo de Les Visiteurs du Soir, o filme anterior de Carné, tinha 150 metros de comprimento e mais de cinquenta fachadas de prédios com uma altura de quinze metros, e era capaz de abarcar perto de 2000 figurantes. Foi desenhado por Alexandre Trauner, que teve de trabalhar clandestinamente a partir duma cabana isolada nos arredores de Nice com Léon Barsacq a servir de testa-de-ferro para enganar o regime de Vichy, que interditava judeus de trabalhar em produções de cinema. Havia membros da Resistência a trabalhar no filme, também, e pessoas que se tentavam inscrever como figurantes apenas para poder comer alguma coisa durante a rodagem. Os agentes da Gestapo visitavam a rodagem à paisana e com artimanhas e histórias elaboradíssimas, tentando e uma vez conseguindo levar membros da Resistência consigo. Entre avanços e recuos pela França livre e pela França ocupada, também ditadas pelo avanço das tropas alemãs, Robert Le Vigan, actor que já tinha trabalhado com Carné no seu primeiro filme, Jenny, e em Le quai des brumes, acabou substituído por Pierre Renoir, por ter fugido para Sigmaringen depois de colaborar com o regime nazi e ter abertamente insultado os judeus em programas de rádio. 
 
A rodagem foi interrompida em Setembro de 1943 por circunstâncias de guerra, no caso uma ofensiva dos Aliados perto de Nice, e a produção teve de levar todas as bobines filmadas e todo o equipamento e sediar-se em Paris, deixando os cenários como estavam na zona ocupada. Depois duma troca muito complicada de produtores, retomaram os trabalhos a 9 de Novembro nos estúdios da Pathé onde se construiu o cenário do Grand Théâtre, com capacidade para 600 figurantes. Quando voltaram a Nice no início do ano seguinte para terminar a rodagem, ele tinha sido totalmente destruído por um furacão que tinha assolado a costa sul de França, o que significou um atraso considerável e um custo acrescido de quase um milhão de francos para o reconstruir. O orçamento total do filme acabou nos 58 milhões de francos, quando na altura o custo médio duma produção de cinema em França rondava os 15 milhões. O filme terminava e a guerra estava para terminar, com o desembarque da Normandia, portanto Marcel Carné tinha agora apenas um desejo: “fazer arrastar o mais possível os trabalhos de finalização do filme, para que ele fosse apresentado como o primeiro da paz finalmente recuperada.”[1]
 
A produção de Les enfants du Paradis foi o canto de cisne do grande momento de glória da indústria de cinema francesa, arrasada pela segunda guerra mundial e por Hollywood a partir dos anos quarenta. Os seus grandes vultos foram, além de Carné, Jean Renoir, Marcel Pagnol, Jean Grémillon, Julien Duvivier, René Clair, Claude Autant-Lara, ou Jean Delannoy. Nos anos cinquenta, François Truffaut escreveu um texto fundador nos Cahiers du Cinéma, «Une certaine tendence du cinéma français», em que fez tábua rasa de praticamente toda a história do cinema do seu país mantendo Jean Renoir e Jean Vigo como únicos mestres duma nova geração de cineastas, sendo bastante injusto para com Carné nesse texto e nos anos seguintes, e tornando aceitável e de bom tom para outros desprezar a sua obra e dos colegas da sua geração. Algum tempo mais tarde, no entanto, disse à frente de Marcel Carné e duma audiência de quatrocentas pessoas que “eu fiz vinte e três filmes, e abdicava deles todos para ter feito Les enfants du Paradis.” 
 
No seu texto muito elogioso no «Dictionnaire du Cinéma - Les films» sobre esta obra, Jacques Lourcelles acaba a escrever que ele está “tão afastado de nós como um retábulo da Idade Média”. Face a um filme com quase oitenta anos, que descreve acontecimentos com quase duzentos anos, feito numa altura em que não havia televisão nem digital e o cinema ocupava palcos de guerra, salvava vidas, destruía outras, movia multidões e dependia dum aparato técnico que já nem conseguimos emular numa projecção, ficamos totalmente desarmados e apenas com o assombro disto ter sido possível. Há filmes que estão para lá da crítica e para lá da imagem, e contêm nos seus silêncios e nas suas margens a ideia e a concepção dum outro mundo, e foram agentes de verdadeira mudança nesse mundo. Les enfants du paradis é um deles.

[1] Quase toda a informação presente neste texto foi retirada dum documento precioso escrito pelo próprio realizador sobre a rodagem do seu filme, intitulado «Ce que fut la réalisation des Enfants du Paradis» e datado de 1980. Está disponível para leitura no site marcel-carne.com.



quarta-feira, 7 de junho de 2023

297ª sessão: dia 13 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


Clássico de Marcel Carné no auditório da BLCS 

A próxima sessão do ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, está marcada para terça-feira às 21h30 na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva e será o filme de Marcel Carné, Os Rapazes da Geral, cujo título original é “Les enfants du paradis”. 

O título do filme faz menção à galeria do teatro onde se sentavam as franjas mais pobres da população e que em Portugal se chamava coloquialmente de “galinheiro”. Também conhecida entre nós por “geral”, em França chamava-se à galeria “paraíso”, pois era onde se sentavam as pessoas que os actores mais queriam impressionar: os “deuses”. 

Marcel Carné nasceu em Paris, no ano de 1906. Começou a trabalhar como crítico de cinema em revistas como a Cinémagazine e a Cinémonde, tornando-se entretanto editor do semanário Hebdo-Films. Depois de trabalhar como assistente de realização de Jacques Feyder e René Clair, realiza a primeira longa-metragem em 1936, Jenny, que era para ser realizada por Feyder, só que este desistiu do trabalho em favor do seu aprendiz e protegido. 

Foi durante a produção de Jenny que conheceu o poeta e argumentista Jacques Prévert, com quem trabalhou em vários filmes, nomeadamente em Les enfants du paradis. É por esta parceria que é mais celebrado e conhecido, ainda hoje, apesar de ter vivido até aos noventa anos e de ter realizado o seu último filme em 1977, o documentário La Bible

Les enfants du paradis foi realizado no rescaldo do enorme sucesso de Os Trovadores Malditos, de 1942, também escrito por Prévert e realizado por Carné. O produtor dos dois filmes, André Paulvé, deu carta branca ao duo e um orçamento quase ilimitado para a sua produção. Com uma rodagem que se estendeu por dois anos, durante a Segunda Guerra Mundial, as filmagens decorreram na zona livre e na zona ocupada de França. 

Ambientado no início do século XIX, o filme conta com um elenco monumental, que além dos protagonistas Arletty, Jean-Louis Barrault, Pierre Brasseur, Marcel Herrand e Louis Salou, conta ainda com Pierre Renoir, bem como Simone Signoret e Gérard Blain em início de carreira. Foi lançado depois da Libertação, a 9 de Março de 1945, e foi um grande sucesso. 

As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

La grande illusion (1937) de Jean Renoir



por António Cruz Mendes

O início da Grande Guerra de 1914, uma guerra pela partilha do mundo entre as grandes potências imperialistas, iniciou-se no meio de um grande fervor nacionalista. Foi num ambiente de festa que partiram os primeiros comboios que conduziam os soldados às frentes de batalha de uma guerra que ambas as partes prometiam que seria rápida e terminaria em glória. Será essa “a grande ilusão” que o filme de Renoir denuncia? 

Renoir não ignora a persistência dos sentimentos patrióticos – veja-se a cena onde os prisioneiros interrompem o espectáculo que tinham encenado para entoar em coro “A Marselhesa” quando é anunciada a reconquista de Douamont, nem a sobrevivência de uma antiga ética militar – os aviadores franceses são acolhidos cavalheirescamente pelo oficial alemão que os abateu, nem a camaradagem que se fortalece entre as vítimas desses tempos de infortúnio – bem evidente no ambiente das casernas do campo de concentração. Contudo, A Grande Ilusão é, antes de tudo, um filme pacifista que salienta o despropósito da guerra, ao mesmo tempo que nos revela a persistência das afinidades e das oposições de classe. A empatia que De Boeldieu tem com Von Rauffenstein não encontra nenhum paralelo com o tipo de relação que existe entre ele e Maréchal. E o mesmo muro que se ergue, palavras de Maréchal, entre ele e De Boeldieu, separam também o aristocrata francês e Rosenthal, judeu, dono de uma casa de alta-costura e filho de um banqueiro. Do outro lado desse muro, os soldados franceses e alemães, presos e carcereiros, reconhecem-se como camaradas. Não foi por acaso que, nas vésperas de uma nova guerra mundial, Mussolini impediu que lhe fosse atribuído o Leão de Ouro, no Festival de Veneza, em 1937, ou que Goebbels, o ministro da propaganda da Alemanha nazi, tivesse considerado o filme de Renoir “um inimigo cinematográfico”. 

A Grande Ilusão foi, dos filmes de Renoir, aquele que obteve um maior sucesso de bilheteira. Terão contribuído para isso a sua sempre presente faceta humorística, as cenas da pantomina encenadas no campo de concentração, a visão nostálgica de um mundo que acaba, as aventurosas tentativas de fuga, a impossível história de amor de Maréchal… Como noutros filmes seus, tudo se encadeia num caleidoscópio de histórias e emoções que vão da comédia, à tragédia e ao drama. No entanto, e apesar disso, não foram apenas as autoridades fascistas que o viram com desconfiança e, em 1946, o filme sofreu cortes que só mais tarde foram revertidos. Afinal, talvez se falasse demais em alemão e os soldados alemães talvez estivessem demasiado humanizados… 

Diz-se no filme que a natureza não reconhece fronteiras e que, um dia, talvez, o amor prevaleça e as guerras possam ter fim. Mas, não será essa, também, uma “grande ilusão”?



quinta-feira, 1 de junho de 2023

296ª sessão: dia 6 de Junho (Terça-Feira), às 21h30


“A Grande Ilusão” abre ciclo de cinema do Lucky Star 

O ciclo “Da Revolução à Queda de Vichy - Clássicos do Cinema francês”, promovido pelo Lucky Star - Cineclube de Braga em parceria com a Alliance Française, começa na próxima terça às 21h30 na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva com a exibição de A Grande Ilusão de Jean Renoir. 

Este filme de 1937 com Jean Gabin, Marcel Dalio, Pierre Fresnay, Erich von Stroheim e Dita Parlo, escrito por Jean Renoir e Charles Spaak, é um dos mais celebrados clássicos do cinema francês, retratando as vidas de dois aviadores franceses que são capturados pelas forças alemãs durante a Primeira Guerra Mundial. 

Jean Renoir nasceu no bairro de Montmartre, em Paris, a 15 de Setembro de 1894. Era filho do conhecido pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir. Os seus dois irmãos, Pierre e Claude Renoir, também enveredaram pelo cinema, sendo o primeiro um reconhecido actor que ganhou fama por ter sido o primeiro a interpretar o inspector Jules Maigret, célebre personagem criada por Georges Simenon, no filme La nuit du carrefour, realizado pelo irmão mais novo em 1932. 

Depois de servir no Leste de França, de ser gravemente ferido em combate em 1915 e voltar a servir como aviador, durante a Primeira Grande Guerra, Jean Renoir regressa à vida civil e instala-se em casa do pai em Cagnes. Interessa-se por cinema e, segundo reza a lenda, terá visto Foolish Wives de Erich von Stroheim mais de dez vezes como forma de preparação. 

Em 1924, realiza o primeiro filme, Catherine, protagonizado pela sua esposa Catherine Hessling, antiga modelo do pai. Porém, a experiência revelou-se traumática, pois o filme foi co-realizado por Albert Dieudonné, que em 1927 reclamou total autoria e venceu o caso em tribunal. 

Dez anos depois, em 1937, Renoir realiza aquele que será o seu maior sucesso de bilheteira, A Grande Ilusão. Lançado numa altura de grandes tensões na Europa, e criticado pelo ditador italiano Mussolini, o filme recebeu um prémio especialmente criado para Renoir na Bienal de Veneza. 

Declarado como “inimigo público número um” pelo ministro da propaganda nazi Joseph Goebbels, o filme foi ainda censurado durante os anos da Libertação, em França, sobrevivendo ainda assim a tudo isso e chegando até nós como uma ode à liberdade e à fraternidade. 

As sessões do Lucky Star ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes e utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os associados do cineclube têm entrada livre.

Até Terça!

Em Junho, no Lucky Star: