domingo, 30 de setembro de 2018

111ª sessão: dia 2 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Em Outubro associamo-nos aos Encontros da Imagem de Braga para um ciclo de oito filmes sob o signo da temática "O Belo e a Consolação" e as imagens de Robby Müller, director de fotografia holandês que nos deixou em Julho deste ano. O primeiro filme da Homenagem a Robby Müller é O Amigo Americano, filme de Wim Wenders que além de ser uma adaptação de um conhecido policial de Patricia Highsmith conta com a presença de vários realizadores, como Gérard Blain, Nicholas Ray, Samuel Fuller, Jean Eustache, Daniel Schmid, Peter Lilienthal ou Sandy Whitelaw.

Robby Müller nasceu em 1940 nas antigas Antilhas holandesas. Além de ter trabalhado com Wenders, Peter Handke (de quem veremos A Mulher Canhota, ainda esta semana) e Jim Jarmusch, foi o responsável pela fotografia de dois dos melhores filmes de Peter Bogdanovich (Saint Jack e o maravilhoso They All Laughed), a aventura demente de William Friedkin que dá pelo nome de Viver e Morrer em Los Angeles, tendo ainda colaborado com Roberto Benigni, Alex Cox e Jerry Schatzberg.

Jim Jarmusch, que trabalhou com Müller em cinco filmes, incluindo O Homem Morto que vimos  em Maio de 2017, disse que "eu adorava o trabalho de Robby Müller e em 1980 perguntei ao Wim Wenders  como é que o podia conhecer. Ia ao Festival de Cinema de Roterdão para mostrar o meu primeiro filme, Permanent Vacation, e nessa altura em Roterdão as pessoas que visitavam o festival ficavam num barco que estava lá ancorado, tinha um bar dentro, e o Wim disse, "Basta ires para o barco e o Robby Müller vai estar sentado no bar, ao lado da máquina de amendoins."

"Portanto parti para Roterdão, entrei no barco, fui ao bar, e o Robby Mueller estava lá sentado e ao lado máquina dos amendoins. (Risos) A sério. Portanto sentei-me ao lado dele e comecei-lhe a falar. E passámos bastante tempo juntos no festival e ele viu o meu primeiro filme, e a certa altura disse-me, "Se quiseres que trabalhemos juntos alguma vez, man, diz-me alguma coisa." Isso foi muito importante para mim. Fiz o meu filme seguinte, Stranger Than Paradise, com o meu amigo Tom DiCillo, porque o Tom nessa altura estava a trabalhar como director de fotografia, mas não estava nada interessado em fazer filmes, portanto quando escrevi o Down By Law, telefonei imediatamente ao Robby Müller.

"O que há de mais belo no Robby é que ele começa o processo a falar connosco sobre o que o filme significa, sobre o que é a história, sobre o que são as personagens. Começa de dentro para fora, o que é mesmo, mesmo uma óptima maneira. Aprendi que se encontra o visual do filme mais tarde, depois de se encontrar a essência do filme, que atmosfera tem, sobre o que é e então procuram-se as localizações em conjunto, começa-se a falar de luz e de cor, sobre que material fílmico usar e o visual global do filme, e agora trabalhámos imenso juntos, portanto não temos de discutir tantas coisas como as outras pessoas fariam porque nos compreendemos um ao outro.

"Ele considera-se uma espécie de artesão. Lembro-me que, especialmente em Dead Man, a equipa técnica e eu estávamos a brincar muito ao dizer, "Ele é o Robby Müller, mas não lhe digam isso!" Ele acredita que tem uma lente, material fílmico e tem luz. Às vezes alguns membros da equipa técnica mencionavam um artigo de equipamento qualquer, "Podíamos fazer esse plano com uma grua da Louma," e o Robbie dizia, "O que é uma grua da Louma?" Eu acho que ele é como um pintor de interiores holandês, como o Vermeer ou o de Hoeck, que nasceu no século errado."

Já sobre o filme de Wenders, nos Cahiers du Cinéma de Novembro de 1977, Jean Narboni escreveu que "Se O Amigo Americano tem de facto como ponto de partida a leucemia de que Jonathan Zimmermann - moldurador e restaurador de quadros em Hamburgo, marido e pai de família pacífico - se sabe atingido, e mais precisamente de uma interrogação angustiada sobre uma sempre possível, ainda que imprevisível, degradação da sua medula óssea. A ficção desarticulada do filme implantar-se-á de seguida segundo a lógica incontrolável de uma proliferação doentia, como uma sucessão de rajadas metastáticas e mortais.

"O enredamento dos elementos temáticos e a economia da escrita neste objecto pirotécnico de alto rendimento (para retomar uma expressão de André Téchiné) atinge um grau tal, a técnica de mise en abîme (multiplicação de enquadramentos no enquadramento, reflexos de reflexos, espelhos que devolvem outros espelhos) é a tal ponto generalizada e concertada que conseguimos ver na ficção o próprio processus maladif, e analisá-la como a expansão cancerosa de uma lesão básica, essa fórmula (sanguínea) alterada e geradora.

"Falei de doença. É preciso acrescentar: amor. Ou, o que vai dar ao mesmo, doença de amor: amor recíproco de Jonathan, Marianne e Daniel (o filho deles) é claro, talvez também o amor de Raoul Minot por Jonathan. Mas sobretudo o amor de Tom Ripley por Jonathan e, infinito, o de Wenders pelo cinema."

Para a Time Out, Tom Milne escreveu que o filme é uma "adaptação soberba do romance de Patricia Highsmith, Ripley's Game, com Hopper como o herói amigavelmente cínico dela, convidado a procurar um não-profissional para uma matança ou duas, e - em eco de Strangers on a Train - empurrar um homem de família inocente (Ganz) para dentro do jogo convencendo-o de que a doença sanguínea de que padece é não só incurável como terminal. Bom Highsmith, é ainda melhor Wenders, com Ripley, um expatriado americano na Alemanha, visto pela primeira vez a aparecer para um encontro com um homem morto, e depois a confessar a sua desorientação a um gravador ('Não há-que ter medo de nada excepto do próprio medo... Sei cada vez menos sobre quem sou ou qualquer outra pessoa é). Noutras palavras,  Ripley torna-se o herói de Wenders por excelência, o solitário a viajar por terras estranhas em busca de si mesmo, de amizade, algum sentido para a vida. Emergindo com inveja da sua solidão para se maravilhar com o calor irradiante do círculo familiar de Ganz, é atraído irresistivelmente; mas também é condenado pela sua própria auto-aversão a só abordar alguém em quem já consegue cheirar o odor da morte, e destruindo quem consiga para completar os seus impulsos de auto-destruição."

Até Terça!

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Rio do Ouro (1998) de Paulo Rocha



por João Palhares

Na mata de Roquelanes, três irmãos despojados das vidas abastadas que acreditavam ser suas por direito matam-se durante as horas do dia pelas três chaves de um tesouro que viu morrer centenas de outros antes deles. Noutro século e noutras paragens, onde as árvores brotam sangue e a água é de mil fontes, nascem três meninos reais com estrelinhas na testa que são trocados por cães e cadelas e se tornam filhos de moleiros. Mais à frente na estrada, uma fada vestida de velha troca os corpos da filha feia e da enteada bonita de uma mulher ruim, trocando também as voltas à mulher que passa a tratar muito mal a filha amada e muito bem a enteada que odeia. Uma pomba encantada é laçada com ouro por um príncipe e aliviada do alfinete que tinha na orelha, transformando-se em mulher. A filha de um ministro entra num palácio ao lusco-fusco com uma camisa fina de cambraia às cavalitas de um criado para responder à adivinha de um rei. Na sétima encruzilhada de um bosque perdido, uma mulher vira uma camisa e umas calças ao contrário e veste-as a um lobo que se transforma no seu irmão. Mas antes de tudo isto acontecer, três rios irmãos combinaram encontrar-se no mar mal acordassem na manhã seguinte, uma das manhãs da Criação. O Guadiana foi o primeiro, “escolheu lindos sítios e partiu de seu vagar. O Tejo acordou depois, e como queria chegar primeiro ao mar, largou mais depressa, e já as suas margens não são tão belas como as daquele. O Douro foi o ultimo que acordou, por isso rompeu por montes e vales, sem se importar com a escolha, e eis porque as suas margens são tristes e pedregosas.”[1] 

Os rios são testemunhas das andanças do mundo há centenas e centenas de milhares de anos, ora fazendo vogar calmamente quem viesse por bem e respeitasse o seu curso ora precipitando a perdição dos seres impulsivos que aí procuravam a morte. Quanto não pode um rio, ainda, das enchentes mortais e cascatas a pique às correntes e caudais que nos alimentam as casas e a vida em comum? “Sou um rio injusto, com margens de labaredas”, escreve Mário Cesariny de Vasconcellos na sua Pena Capital, “se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.” O Rio Douro vela há quase trezentos anos pelas belíssimas vinhas que parecem escorregar pelas suas margens, alimentando as gentes que povoavam as redondezas de enguias, de escalos e de trutas, irrigando as margens em profundidade e fazendo brotar carvalhos, estevas, zimbros e sobreiros. Mas também afogou as milhares de almas portuenses que tentavam fugir das forças napoleónicas em 1809 pela Ponte das Barcas, abandonadas pelo comandante das forças portuguesas, D. António de São José de Castro, que saiu cobarde e sorrateiro pela noite; também reclamou para si o barão de Forrester, que deixara a sua Inglaterra natal pelo seu amor desmedido ao rio Douro apenas para encontrar a morte nas suas águas em 1861. Os cadáveres dos tripulantes foram todos encontrados e enterrados, menos o do barão, que ficou para sempre no leito do rio[2]. 

“O rio Douro não teve cantores”, escreveu Agustina Bessa-Luís no início da sua Fanny Owen. “Teve-os o Mondego e o Tejo também. Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E, no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro. Eu vi-o em Zamora e não o reconheci; diz-se que as margens eram carregadas de pinheiros e daí o seu nome dum que quer dizer madeira. Mas entra em Portugal à má cara. Enovela o caudal sobre penhascos, muge e ressopra como um touro com molhelha de couro preto a subir uma calçada. Não creio que os poetas o habitem; e, no entanto, Dante tê-lo-ia amado e preferido; como preferiu os estaleiros incandescentes de Veneza e os túmulos abertos das arenas de Arles, para descrever o inferno. Por cá, são brandas as liras; com o aguilhão da fome, às vezes saltam umas revoltas que vibram na Calíope alguma bordoada. Com o ferrão do amor, não se cometem senão delitos em forma de soneto ou de sextilhas. Epopeias são raras, as musas são mimosas e não ardentes.” 

Os rios como forças, motivos e parábolas primordiais atravessam também as obsessões apaixonadas do grande Paulo Rocha, que os menciona em várias ocasiões. Sobre Jean Renoir, com quem trabalhou em Le caporal epinglé (1962) como assistente de realização e a quem chamou mesmo o “Rio Renoir”, menciona “a água (sacra) dos rios sem destino”, “o rio das ilusões e dos desejos que fazia flutuar os corações dos homens”, “a lógica cega e flutuante daqueles rios obscuros onde se escondiam as pulsões de morte”[3]. Sobre Agustina e no que parece uma carta de amor escreve que “através da tua boca falam pedras e plantas, animais e água, o rio, a luz do dia e a luz do céu”, que “as respostas da Sibila são anteriores à invenção da escrita. É uma lufada, uma palavra oral, rio sem barragens, águas primordiais.”[4] Estas comparações podem muito bem revelar a grande amizade e o grande amor que Rocha tem pelas pessoas de quem fala, pois também há rios na descrição de António Reis, que “morava num apartamento em Gaia com vista sobre o rio. As paredes estavam cobertas de bonecos de pano, de todas as cores, feitos pelos loucos de um manicómio. Os bonecos eram monstros com várias patas e cabeças e prenunciavam os desenhos de Jaime. Naquelas janelas viradas para a bruma do rio, havia uma energia irracional, um sopro de vida à beira do abismo.”[5] Em A Ilha de Moraes (1984), filme belíssimo em que Rocha continua na pista de Wencesleau de Moraes depois da Ilha dos Amores (1982), há uma monja japonesa que lhe diz que “Tokushima é famosa pelos seus rios e pelas suas mulheres. Encontramos mulheres belas perto de belos rios por todo o mundo.” Na mesma cena, com o rio em relevo, a mulher indaga sobre a palavra “mujô”, que se pode traduzir e explicar como a mutabilidade e a impermanência das coisas, dizendo que “é uma palavra que é muito cara aos japoneses. O rio corre sempre no mesmo sentido e nunca sobe a encosta. A água que corre à nossa frente nunca é a mesma. Essa palavra está gravada no fundo dos nossos corações.” Por fim, e em 1987, numa apresentação de O Desejado ou As Montanhas da Lua (1987) na Cinemateca Portuguesa, Rocha remata a questão e parece mesmo descrever o seu fabuloso Rio do Ouro (1998) ao dizer que “quando nos banhamos no rio do prazer absoluto, morremos, porque descobrimos a outra face da realidade, a realidade absoluta. A água do rio não recusa ninguém.” 

O Rio do Ouro é então o culminar das grandes paixões de Paulo Rocha, o culminar de uma forma trabalhada e ensaiada com os melhores técnicos no Japão, mantendo a impulsividade, a frescura e a curiosidade inata de sempre. Três saltos no eixo incríveis na cena do comboio, quando o “Zé dos Ouros” vê algo que não quer nem deve ver e que a Carolina de Isabel Ruth quer descobrir à força toda. É o princípio do fim. Se se descobre o efeito de certas coisas, porque não pô-las em prática, porque não insistir e repetir até ser só beleza em perfeita continuidade? O chamado erro técnico pode ser uma decisão consciente de dramaturgia. E pode ser preciso calcar horas e horas os arredores de Lisboa, conhecer pescadores, filmar em cabanas com pulgas nas meias, ler O Romance do Genji[6], passar anos no Japão, aprender a língua e servir de adido cultural entre dois países que tão misteriosamente e tão paradoxalmente se ligam para a tomar. O rio Douro da infância de Paulo Rocha é também o rio dos amores de Wencesleau de Moraes, do martírio dos pescadores do Furadouro, das mulheres invioláveis de Manoel de Oliveira, da ferocidade de Agustina, do apartamento em Gaia de António Reis com vista sobre as águas, das mortes poéticas de barões assinalados e das mortes trágicas de populares a fugir pela sobrevivência das tropas do general Junot, do teatro da vida do “Rio Renoir”, das vidas dilaceradas de Mizoguchi e das míticas imprudências do rei a quem chamaram “O Desejado”. Uma hora e quarenta que contém o mundo, um rio que se transforma em mar sem ter de chegar à foz, da mente indomável e continuamente mutável de Paulo Rocha, sem barragens ou diques sociológicos que a detenham. Há quem faça a recolha muito necessária de narrativas e músicas milenares para a posteridade, há quem as sintetize com movimentos de câmara desarmantes à volta de barcos rabelos e guindastes afiados, rodas populares com coreografias fascinantes, madrinhas ciumentas com poderes para lançar feitiços, sereias inocentes cujos salvamentos provocam a fúria das águas, fogo e sangue, pragas de abelhas e alpendres voadores, quedas de carros por falésias, comboios descarrilados e sacrifícios aos deuses pagãos ou aos quatro elementos naturais. Há quem faça O Rio do Ouro e nos continue a deixar pasmados com o resultado. Passaram vinte anos e o mergulho e a viagem são os mesmos, fontes inesgotáveis de sobressaltos e descobertas.

[1] in «Contos Tradicionaes do Povo Portuguez», de Teófilo Braga. 
[2] Joseph James Forrester amou o Douro como ninguém. Foi o primeiro estrangeiro a conseguir o título de barão em Portugal, conseguido pelo seu excelente trabalho cartográfico, nomeadamente um mapa completo do rio Douro que ia desenhando com grande rigor científico e ao largo das muitas horas em que ancorava entre as águas no seu barco rabelo com cozinha, quartos, casa-de-banho e sala de jantar. Esse amor e esse episódio não passaram despercebidos a Paulo Rocha, que os queria incluir num dos seis episódios do primeiro rascunho do filme, na altura chamado A Balada do Rio do Ouro.
[3] in «O Rio Renoir», a grande ilusão – revista de cinema, nº15-16, Abril de 1994.
[4] in «A Sibila do Campo Alegre», Público Magazine, nº189, 9 de Setembro de 1990.
[5] in «Uma figura luminosa – António Reis, poeta do cinema», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 480, 17-23 de Setembro de 1991. O rio era o Douro.
[6] O Romance do Genji é um épico escrito no início do século XI por Murasaki Shikibu, mulher da corte imperial japonesa. Foi editado em duas partes pela Relógio d'Água em 2008.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

110ª sessão: dia 25 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30


Em 1998, imbuído de lendas e narrativas nortenhas com a idade de um rio e da terra, Paulo Rocha soltou tudo e erigiu um filme-monumento assombrado por cantores cegos que poderão descender do profeta Tirésias, ninfas sedutoras como sereias e anjos exterminadores que encarnam o perigo que é abrir caixas de Pandora, lançar feitiços, invocar entidades, cantar ao luar, dançar ao relento em ritos pagãos e desafiar os rios com a mais humana das soberbas. Com música de José Mário Branco, fotografia de Elso Roque e a mais misteriosa, assustadora  e sedutora interpretação de Isabel Ruth, quiçá a nossa maior actriz, eis O Rio do Ouro, a nossa próxima sessão nos cinemas do Bragashopping.

Quando Frédéric Bonnaud perguntou a Paulo Rocha até quando remontava o projecto do filme, este respondeu que "a 1963, mesmo se algumas imagens, como a do barco carregado de carvão no rio, remontem ainda mais longe. Por exemplo, os cantores cegos nos comboios, lembro-me que foi em 42 que me tentaram vender as partituras das canções deles. Depois do meu primeiro filme, Os Verdes Anos, que já era muito autobiográfico, quis mudar de registo e O Rio do Ouro afastou-se. Mas as minhas Lembranças eram fortes o suficiente para se manterem precisas e eu filmei-as quase tal e qual durante os primeiros vinte minutos do filme. Voltei a mergulhar nesse universo de canções populares que eram frequentemente baseadas em histórias apaixonantes das proximidades. Exactamente como o kabuki, que é um género muito refinado contando ao mesmo tempo a história do último homicídio no bairro! Quanto mais sanguinário e obsceno, melhor! Há ao mesmo tempo estilização e uma ligação directa à vida quotidiana. Todas as histórias da minha infância constituíam começos de ficções cada uma mais extraordinária que a outra. E continuaram-me a assombrar, nunca as consegui tirar da minha cabeça. Porque são histórias sangrentas e extremas que ultrapassam as normas aceites, completamente desmedidas, amorais e muito populares ao mesmo tempo, que flutuavam sem cessar nas conversas das pessoas que via na minha infância."

Mário Jorge Torres, que nos apresentou Douglas Sirk e The Tarnished Angels em 2016, escreveu para o Público em 2001 que "O Rio do Ouro é uma história dourada e sanguinária que se escreve nas margens do Douro, rio de muitas fainas e de muitos ceremoniais. Uma guarda-cancela, Carolina (Isabel Ruth), conserva velhos mistérios de amores passados, e de crimes esquecidos, e casa com um barqueiro (Lima Duarte) que draga lodos e mortos do fundo do rio, emigrante sem nervo e sem competência sexual. Um vendedor de ouros (João Cardoso) tem poderes mediúnicos e passeia a sua impotência emocional como um garanhão em perda pelas mulheres acossadas de beira Douro - a guarda-cancela e a afilhada, Melita (Joana Bárcia). Um crime onírico resgata um casamento falhado e faz voar por sobre as fragas uma megera, mais fêmea do que sibila, tão vítima dos fados e dos oráculos, quanto justiceira de uma ancestral insatisfação. O plano inicial das lavadeiras que cantam remete irresistivelmente para as filhas do Reno da tetralogia wagneriana, O Anel dos Nibelungos

"A configuração mítica do filme não desmerece desta analogia em versão lusitana: à grandeza do melodrama operático contrapõe-se a miniatural dimensão da cantiga de cego - interpretado pelo autor da banda sonora José Mário Branco - e do conto oral musicado com os requintes do cancioneiro popular. E como "a gente volta sempre ao princípio" (é uma citação do filme), o epílogo representa o regresso às águas do rio, devolvendo-lhe o ouro mítico, não roubado por uma conspiração de anões ou de gigantes como em Wagner, mas retirado ao nome Douro, cuja origem se perde nos tempos. O anel wagneriano, porém, transformou-se aqui em cordão de ouro, fio de sangue, cadeia de submissão e de desejo não consumado, marca de poder e amuleto de morte."

Jesús Cortés, que nos comunica com o seu blog todos os meses a alegria permanente da descoberta do cinema, de Jesse Hibbs a Kinuyo Tanaka, escreveu sobre o filme de Rocha, para si "terrivelmente rural, O Rio do Ouro - o seu nativo Rio Douro, logicamente - em 1998, cheira a sangue desde a primeira cena, uma conversa tranquila que antecipa a calma com que Rocha vai filmar uma história agreste. Tinham passado nove anos desde o segundo grande "eclipse" da sua carreira, mais alguns desde que finalizou as suas funções consulares no Japão no princípio da década anterior e já muitos desde que foi designado como promessa de uma cinematografia que mesmo antes tinha acabado de virar centenas de graus com Acto da Primavera em 1962 e pouco depois de chegar, desapareceu.

"No caminho que leva ao Rio... e à sua prolongação em busca de um final memorável - Se eu Fosse Ladrão, Roubava (2011), que já aparece aqui em variadas formas, não só como canção - ficaram as obras mais ambiciosas de Rocha, sobretudo a profusa, fria e secreta A Ilha dos Amores, que me parece a sua obra-prima, O Desejado ou As Montanhas da Lua ou a breve e no entanto múltipla Máscara de Aço Contra Abismo Azul, filmadas lá por 1982, 1987 e 1989 respectivamente, tão distintas e pessoais em relação àquelas primeiras, Os Verdes Anos ou Mudar de Vida, marcadas pelo esforço, tão frustradas por não conseguirem encher os pulmões.

"Nunca interessaram muito a Rocha as descrições demasiado perfiladas nem as palavras que as adornam, só o poder das imagens para as substituir.

"Aqui, o rio não é um caudal nem uma fonte com que se estabelecem relações, nem sequer parece ter vida e sim a missão de arrebatar as que consiga, devolvendo o tratamento que recebe, dragado o seu fundo às dentadas até se converter em lama pura. Sem rastos de magia telúrica, uma armadilha."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Verdes Anos (1963) de Paulo Rocha



por João Bénard da Costa

Paulo Rocha 
e o regresso de Oliveira 

Verdes Anos foi uma produção de Cunha Telles. Este iniciara a sua actividade com a co-produção do filme de Pierre Kast, Vacances Portugaises que em 1962 trouxe a Lisboa actores como Catherine Deneuve e Françoise Arnoul ou técnicos como Coutard. Com eles, trabalharam técnicos portugueses do curdo de Telles. Assim, em torno deste, se foi formando uma equipa que, de realizadores a actores, de concepções de produção a concepções de argumento, marcou finalmente o tão falado corte. Independentemente dos respectivos méritos, é essa a atitude que atravessa as obras de Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, estreadas em 63, 64 e 66: Os Verdes Anos, Belarmino e Domingo à Tarde

Das origens de Fernando Lopes e de tudo o que o ligava à televisão falei já. Paulo Rocha era, por essa altura, relativamente marginal a quaisquer grupos. Estivera, é certo, por esses anos, perto de alguns dos universitários católicos que mais inovaram em matéria de gostos críticos, mas nunca teve nessas estruturas papel de evidência. Depois, vagueara pela França, com uma bolsa do I.D.H.E.C. e estagiara com Renoir em Le Caporal Epinglé. Ao voltar, em 1962, trabalhou com Oliveira no Acto da Primavera e na Caça. Quando se decidiu passar à realização, foi buscar a esse grupo de católicos dois dos mais relevantes colaboradores: Nuno de Bragança (1929-1985) que viria a ser um dos expoentes da nova literatura portuguesa nos anos 60 e 70 e o poeta Pedro Tamen (n. 1934). O primeiro adaptou o argumento e escreveu os diálogos; o segundo foi autor da letra da canção leitmotiv do filme, musicada por Carlos Paredes (n. 1925), nome grande da música deste século. 

Verdes Anos é um filme bem secreto e bem singular, que permanece como uma fonte de equívocos para quem dele faça uma leitura linear. Se o filme não envelheceu uma ruga e se revê hoje com o maior espanto é porque a história dos amores infelizes da «sopeira» (magistralmente interpretada por Isabel Ruth – n. 1940 – que na obra se afirmava como o primeiro grande rosto do cinema novo) e do «sapateiro» (Rui Gomes, n. 1939) era esvaziada de qualquer verismo para ficar agarrada ao conflito de décors e ao conflito de actores. Não julgo que haja no Paulo Rocha da época qualquer influência expressa do cinema japonês que, depois de Mudar de Vida (1967), foi o paradigma do cineasta. O que existe é um amor total aos personagens que se exprime num erotismo difuso e nada físico, numa espécie de «saudade de os amar» e de «tudo amar» que, recuperando um imaginário típico da literatura romântica (da novela popular ao Amor de Perdição) cortam com o lado queirosiano de que o cinema português tinha sido quase sempre involuntário herdeiro, para o re-ligar a uma tradição fantomática em que o fatalismo é o único fio condutor. 

É nesse sentido que Verdes Anos é um filme-charneira na história do cinema português. Por um lado, faz a ponte entre um imaginário visual que o nosso cinema quase sempre havia ignorado e um imaginário específico dos nossos melhores filmes. Ou seja, é o primeiro filme a articular coerente e cultivadamente o fundo visual e romanesco que se insinuara nalgumas das nossas obras clássicas. Por outro, dá as chaves das «figuras de retórica» possíveis na evolução futura desse imaginário, o que faz de quase todos os melhores dos filmes posteriores seus herdeiros. 

Ainda, Verdes Anos é o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda. Se há retrato do «país que nos mata longamente» é Verdes Anos, e o crítico Alberto Vaz da Silva (n. 1936) terá tido a premonição disso quando na época escreveu que o filme era «além do mais português, porque muito raras vezes uma obra de arte deixou, entre nós assim transparecer também além do mais todo o fatalismo, o tempo absorto e o peso surdo, pesado e prolixo que há tanto se enraizaram na nossa terra e a vão definindo, no seu e nosso devir»[1]. 

«Fatalismo», «peso surdo pesado e prolixo» estão também, de modo formalmente diversíssimo, no Belarmino de Fernando Lopes, superficialmente confundido à época com os processos do «cinema-verdade». Belarmino, nome real de um boxeur em decadência que interpreta o seu próprio papel, é sobretudo um belo filme confessional, perseguição de uma voz sempre off (voz do entrevistador) ao rosto quase sempre presente do protagonista. Implacável campo-sem-contra-campo, o filme é uma habilíssima articulação entre o flash-back e o «frente-a-frente». «Se Belarmino tivesse vivido noutro país, talvez fosse um grande campeão». Esta afirmação, feita no filme, faz passar Belarmino do fait-divers para a tragédia, sem que Fernando Lopes assuma nunca uma posição trágica. E, numa abordagem quase inversa à de Paulo Rocha, é um filme construído sobre o combate de um personagem com um décor, essa portentosa Lisboa que só pode levá-lo ao K.O. em qualquer round

Obras paradigmáticas para o devir do cinema português, não admira que a nova crítica de então as tenha particularmente saudado como sinais de ressurgimento. Estou a citar o futuro cineasta Alberto Seixas Santos (n. 1936) que também disse que essas eram «as duas primeiras obras que uma geração ousa reivindicar»[2].

Curiosamente, nesse mesmo texto, Seixas Santos opunha-as a Manoel de Oliveira, introduzindo a primeira reserva de fundo a um cineasta que então (tão efemeramente) reunia a aclamação de todos os sectores. Falando da sua obra como da «única coerente de todo o nosso cinema», dizia que ela era uma «cartada corajosamente jogada e perdida. Perdida pelos erros do cineasta, perdida também pelas limitações do cinema que quis servir. E esta afirmação é um aviso que é bom seja feito hoje, quando o mestre do Norte começa a tomar, nas bocas mais jovens, as cores exaltantes do mito».

1963 vira, com efeito, também, além das estreias de Artur Ramos e Paulo Rocha, as estreias de O Acto da Primavera e de A Caça, os dois filmes de Oliveira feitos com dinheiro do Fundo. Tiveram encomiásticas críticas e as revistas Plateia e Filme dedicaram a Oliveira uma «homenagem nacional» e um número especial, esse último saído em Dezembro de 1963, quando o cineasta completou 55 anos.

«As cores exaltantes do mito» estavam, pois, vivas em 1964, quando Seixas Santos escreveu as palavras transcritas, embora o «mito» fosse só cinéfilo e só de nome ultrapassasse as fronteiras nacionais[3]. Mas uma tal unanimidade – no ano de arranque do cinema novo – parecia poder permitir a distanciação. A caução de Oliveira já não era mais necessária até «porque o cinema que quis servir» aparecia longe do cinema moderno, encerrado num realismo contra o qual haveria a remar. O Acto da Primavera – segunda longa-metragem de Oliveira – surgia à crítica mais informada como o ponto-limite de um estilo que nele se esgotava: o seu decantado documentarismo.

À excepção de um texto (Nuno de Bragança) ninguém pareceu compreender que o Acto não era um ponto de chegada mas um ponto de partida, onde se prefigurava o cinema futuro, não só do Autor, mas também de todo o cinema que teria início no final da década.

Por um lado, porque o Acto é (tanto como obras futuras de Godard ou Duras ou como Gertrud de Dreyer, pouco posterior) um cinema da palavra ou seja um cinema em que a palavra (o teatro) se tornava no próprio cerne da sua existência. Por outro, como muito mais tarde escreveu José Manuel Costa[4] porque Oliveira eregia «a ultrapassagem da convenção como postulado» e longe de proceder a uma reconstituição fílmica «enunciava sobre uma matéria pré-existente (o texto teatral) um universo imaginário» em que mais uma vez a função do cinema era repensada. O Acto, como porventura Persona de Bergman ou Gertrud de Dreyer, é obra que enuncia e anuncia a última grande viragem e revolução cinematográficas: a que postula o realizador como «produtor de efeitos cénicos» sendo a imagem o pré-texto do texto que dá a ver. Só que, e para usar ainda palavras de José Manuel Costa, a aparente clareza do Acto ocultava a sua máxima perturbação, demasiado inovadora para ser compreendida. Sucedia o inverso no críptico A Caça em que a perturbação se sobrepunha à clareza, mas o processo era o mesmo e a mesma a modernidade. Oliveira, como o Dreyer de Gertrud, não estava «para trás», estava demasiado à frente. Só a obra futura do cineasta permitiu descobrir esta evidência, tornando-o de novo em pedra de escândalo. Na primeira metade dos anos 60, o Acto e a Caça (antes de Pasolini e das teorias sobre o cinema-poesia) puderam ser vistos apenas como fechos de abóbada morais e murais. Muito pelo contrário, eram os fundamentos de uma das mais totalizantes aventuras do imaginário deste século.

Seja como for, os anos 63/64 que deram Verdes Anos e Belarmino, por um lado, e A Caça e O Acto, por outro, não deixaram nada igual ao que estava. O cinema português recriava uma tradição, enunciava um novo tipo de imaginário e afirmava-se em obras e não só em intenções como um cinema novo. Tudo isso – como sempre – se apagou muito depressa, mas uma demarcação de água era agora possível.

E ninguém deixou já de a ver na adaptação de Namora que António Macedo fez em 1966, no Domingo à Tarde, de novo dominado por Isabel Ruth. Até porque o realizador – ele também, figura em certa medida, marginal e de gostos esotéricos – conseguiu dominar, melhor do que os outros, certas deficiências técnicas e, servindo o livro, deu dele uma adaptação que à generalidade do público pareceu singularmente escorreita.

Em 1964-66, uma certa euforia voltou a reinar no cinema português, sobretudo na sua mais jovem camada. Em Março de 1964, Cunha Telles anunciava à revista Filme dez novas obras para 1965[5] ao passo que Lopes Ribeiro afirmava categoricamente não ter qualquer outro projecto «enquanto permanecerem as condições actuais do cinema português».

Descontados fins publicitários, num sentido ou noutro, as respostas traduziam a alteração da conjuntura. O «cineasta oficial» (não mais o seria) afirmava-se desempregado e, efectivamente, depois de O Primo Basílio não voltou a realizar filmes de fundo. O homem, a que então se chamava o «produtor-milagre», anunciava trabalho para todos os novos e fazia vir a Portugal Truffaut (La Peau Douce) e Kast para co-produções.

Por outro lado, o cinema novo ultrapassava as barreiras nacionais, caso que desde Camões não se verificava. Dom Roberto e Os Pássaros estrearam em Paris[6]. Verdes Anos ganhou a Vela de Prata no Festival de Locarno de 1964 (sobre concorrentes chamados Pasolini ou Clive Donner) e foi também premiado em Acapulco; Belarmino foi escolhido para Pesaro e Salso-Porretta; Domingo à Tarde foi seleccionado para Veneza em 1965. E, compulsando os Cahiers du Cinéma desses anos, sucedem-se as referências ao cinema português com Manoel de Oliveira, Fernando Lopes, Paulo Rocha, Fonseca e Costa e Cunha Telles em lugares de relevo.

O bom acolhimento da crítica estrangeira continuou para mais dois filmes produzidos por Telles: As Ilhas Encantadas (1965) e Mudar de Vida (1967). O primeiro foi realizado por Carlos Villardebó (n. 1926), português radicado em França desde os seis anos e autor de inúmeros documentários sobre arte, iniciados em 1948. Cunha Telles chamou-o para a primeira longa-metragem, em hora de aposta grande. Porto Santo (a ilha que outrora servira de décor à Canção da Terra) foi escolhida para local das rodagens e o papel de protagonista foi confiado a Amália, rodeada por Pierre Clementi e Pierre Vaneck, numa história «encantada» de amor a três, paradisíaca e infernal. O filme, irregular, é assaz interessante e obteve excelente acolhimento da imprensa francesa quando foi estreado em Paris, em 1966. Mas, em Portugal, o fiasco só pôde ser comparável ao do Vendaval Maravilhoso e «afundou» Cunha Telles, como outrora o Vendaval «afundara» Barros. Embora sem culpa nenhuma dela (Amália é excelente, nesse filme em que não canta), a vedeta ficava associada a dois dos maiores colapsos do nosso cinema.

Mudar de Vida, opus 2 de Rocha, introduziu na obra deste novas direcções, entre o legado nostálgico de Os Verdes Anos e os rumos da sua obra futura. Pano de fundo é a emigração, fenómeno que nos anos 60 afectara profundamente o tecido social e cultural português[7]. E é o primeiro filme de Rocha em que se afirma a influência do cinema japonês, nos belos planos de juncos, névoa e rio, ao mesmo tempo que se acentua a forma de requiem e uma oculta liturgia que nele foi sempre programa e arte de inventar personagens. Personagens que aqui são de novo Isabel Ruth (e a sequência da capela é uma das mais belas do cinema português), o brasileiro Gerardo Del Rey (actor de Glauber Rocha) e Maria Barroso (n. 1925) que, depois de fulgurante começo no teatro nos anos 40, o Governo forçara a abandonar os palcos[8].

Mas quando Mudar de Vida se estreou em Portugal (em 1967), o ambiente eufórico que rodeara Cunha Telles já se tinha desvanecido e o filme foi o ponto final das suas ambições. Apesar do relevo histórico e artístico destas obras, nenhuma logrou qualquer sucesso comercial e, apesar do seu baixo custo[9], todas fizeram perder dinheiro.

Várias razões poderosas contribuíram para este insucesso. Por um lado, o descrédito crítico e público a que chegara o cinema português não permitiu à generalidade dos espectadores distingui-los das outras produções. Por outro, o vanguardismo das propostas estéticas destes filmes encontrou difícil eco num panorama cinematográfico cada vez mais excêntrico em relação à Europa, devido à crescente virulência da Censura, nesses anos finais do salazarismo.

Da enorme mutação do cinema nesses tempos de novas vagas e novos cinemas, pouco ou nada chegava a Portugal que permitisse enquadrar esses filmes. A «elite burguesa» que os podia entender andava demasiado suspeitosa destas coisas do cinema português para os consumir. O espectador tradicional pouco ou nada se revia em obras que lhe pareciam herméticas e elitistas. Ou seja, por um lado, estava em vias de desaparição o fenómeno de analfabetismo que permitia «comer de tudo», por outro ainda não tinham aparecido novos alfabetos capazes de acederem a um tipo de cinema tão flagrantemente oposto a padrões comuns (e, ainda por cima, com iniludíveis deficiências técnicas). Paradoxalmente, a recepção aos filmes do «cinema novo» de 1963-67 ressentiu-se da sua ruptura com o cinema «do Lumiar» como da herança desse mesmo cinema. Se a batalha contra da década anterior fora ganha, não o foi a batalha pró dos anos 60. Até porque essa batalha contra tivera motivações políticas claras (atacar um cinema que já nada reflectia da realidade do País) e a batalha pró as não tinha, pois nenhum dos cineastas ou obras citados denunciava – ou podia denunciar, por óbvias razões censoriais – essa mesma realidade. Julgara-se que o movimento de oposição cultural era suficientemente poderoso para «obrigar» cada português que votara Delgado em 1958 a ir ver esses filmes. O engano foi trágico. Até porque qualquer dessas obras – aparentemente «formalistas» e aparentemente «idealistas» - não era de molde a despertar fervores ideológicos e a esquerda tradicional desconfiou tanto delas como a direita. O vanguardismo estético não tinha qualquer contrapartida em vanguardismos ideológicos. E os filmes feitos por homens que conheciam o cinema contemporâneo para um público que o desconhecia pouco suporte crítico tiveram, numa década que assistiu também ao declínio do movimento cine-clubista[10] e em que a crítica neo-realista conheceu derradeiro surto.

Assim, essa produção não teve destino muito diverso das obras medíocres que os cineastas «do antigamente» continuavam a conseguir estrear. Um só filme – e foi também uma Produção Cunha Telles – pôde ser superficialmente aproximado do movimento. Tratou-se de O Crime da Aldeia Velha (1964), novo filme de Manuel Guimarães baseado numa peça do muito empenhado dramaturgo Bernardo Santareno (1924-1980). Mesmo nesse caso, o convencionalismo da adaptação e erros de distribuição (com a francesa Barbara Laage no papel principal) impedem qualquer confusão e o filme nada mais é do que obra de rotina. Piores – quase todos catastróficos – são os coevos Pão, Amor... e Totobola (Henrique de Campos, 1964) em que se tentou lançar a actriz de revista Florbela Queiroz (n. 1943); Nove Rapazes e Um Cão (1964) do prolífico Constantino Esteves (1914-1985) herdeiro persistente do pior cinema dos anos 40 e 50; Aqui Há Fantasmas (1964), infeliz comédia de estreia de Pedro Martins (n. 1928), onde ainda aparece o par Ribeirinho-António Silva; Uma Hora de Amor (1964) de Augusto Fraga, a tentar impor como vedetas os ídolos televisivos do nacional-cançonetismo dos anos 50 e 60 que foram Madalena Iglésias (n. 1939) e António Calvário (1938-1988); A Última Pega (1964), mais um Constantino Esteves; Canção da Saudade (1964) de Henrique Campos, com Florbela Queiroz; Fado Corrido (1964), obra da decadência de Brum do Canto que se atribuiu a si próprio o papel de um fidalgo marialvista apaixonado por Amália; Passagem de Nível (1965) de Américo Leite Rosa, com Madalena Iglésias e Virgílio Teixeira; Rapazes de Táxis (1965) de Constantino Esteves, com António Calvário; 29 Irmãos (1965) de Augusto Fraga, tendo como pano de fundo a apologia da guerra colonial; O Trigo e o Joio (1965), nova adaptação de Fernando Namora, dirigida por Manuel Guimarães, com Eunice Muñoz e Igrejas Caeiro; A Voz do Sangue (1966), outra história de Angola de Augusto Fraga; Sarilho de Fraldas (1967) de Constantino Esteves, mais uma vez com Madalena Iglésias e Calvário e que, graças às vedetas, ainda deu para as despesas[11]; Operação Dinamite (1967) de Pedro Martins, patética exploração da receita 007, com Nicolau Breyner; e um incrível regresso ao filme religioso em Uma Vontade Maior (1967) de Carlos Tudela.

Infelizmente, o último filme de Produções Cunha Telles não se afastou muito destas catástrofes[12]. Já à beira da falência e em guerra aberta com os seus realizadores, Telles resolveu apostar em António de Macedo, apesar de tudo o cineasta que no box-office lhe dera menos razões de queixa, para um filme de espionagem, também com Florbela Queiroz. Chamou-se Sete Balas para Selma (1967) e não só o não salvou, como levou os seus companheiros de aventura a chamarem-lhe piores nomes do que aqueles que o Diabo chamou à mãe. Em 1967, como em 1959, o panorama parecia ser de novo de completo desastre, mitigado apenas por nova curta-metragem de Oliveira (As Pinturas do Meu Irmão Júlio de 1965, sobre a obra do pintor Júlio Pereira, irmão de José Régio que comentava em off os quadros mostrados) e pelas curtas-metragens de novos como Fonseca e Costa, Seixas Santos ou António-Pedro Vasconcelos (n. 1939) que, vindos da crítica e dos cine-clubes, se juntavam ao movimento que continuava a pugnar por um novo cinema.

Mas este parecia agora – funda a aventura Cunha Telles – cada vez mais distante. No Governo, as coisas endureciam, sobretudo a partir de 1962 quando a política cultural ficou em mãos ainda menos flexíveis. Os anos 60 foram de grande repressão, com o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965 e uma paranóia censória bem indicativa da agonia do regime. Por toda a parte, os «falcões» se sucediam às «pombas» e a repressão atingiu limites próximos do insustentável.

Foi por essa altura que os homens do novo cinema – juntamente com Manoel de Oliveira – se lembraram de ir bater a outra porta. A porta da Fundação Calouste Gulbenkian, grande Fundação privada, uma das maiores do mundo, que desde 1956 conduzia uma acção que transformara a vida cultural portuguesa.

Fora fundada por Calouste Gulbenkian (1869-1955), multimilionário arménio, conhecido pelo cognome de «Senhor 5 por Cento» pois lhe cabiam 5 por cento dos interesses petrolíferos das maiores companhias do mundo. Em 1940, fixara-se em Portugal, procurando paz em tempo de guerra. Por cá se deixou ficar até morrer em 1955. E, no seu testamento, instituiu a criação de uma Fundação que tivesse o seu nome e se dedicasse às artes, ciências, educação e fins caritativos. Em 1956, a Fundação iniciou actividade, presidida por um prestigioso advogado português, José de Azeredo Perdigão (n. 1896). Rapidamente se tornou num estado dentro do Estado e a sua acção (sobretudo nos campos da música e das artes plásticas) transformou por completo o cinzento panorama da vida artística portuguesa.

Mas, durante os primeiros dez anos de existência, pouco fizera pelo cinema. Em 1967, decidiu-se a alargar a sua actividade até ele e propor aos cineastas – agrupados no Porto numa «Semana de Estudos Sobre o Novo Cinema Português» - que ponderassem como seria desejável uma intervenção da Gulbenkian.

Obviamente, o convite não caiu em saco roto. Após um ano de negociações, a Gulbenkian aceitou subsidiar uma cooperativa que agrupasse todos os homens do «cinema novo», (chamada Centro Português de Cinema) por um período experimental de três anos durante o qual tomaria a seu cargo esse novo cinema. Em Novembro de 1968 – vencidas sérias resistências – o Conselho de Administração da Gulbenkian assinava a histórica decisão. O Mecenas estava achado e um novo período da história do cinema português se iniciou.

in «Histórias do Cinema», Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991

[1] ALBERTO VAZ DA SILVA, in «O Tempo e o Modo», Dezembro, 1963.
[2] ALBERTO SEIXAS SANTOS, in «O Tempo e o Modo», nº 19, Outubro de 1964. 
[3] O Acto da Primavera estreou-se em Paris, em 1963, e ganhou, em 1964, a Medalha de Ouro do Festival de Siena. Mas foi recusado por Veneza em 63, não tendo sido admitido na selecção oficial. Só em 1964, em Locarno A Caça e O Acto se impuseram à atenção da crítica internacional. Jacques Bontemps escreveu nos Cahiers du Cinéma (Outubro de 1964, nº 159) que A Caça era «bande suffisamment à part pour planer au dessus de tous les films presentés». Pela mesma altura, Freddy Buache homenageou em Lausanne Oliveira e Trnka. Em 1965, foi a vez de Langlois e da Cinemateca Francesa. «Voilà plus de trente ans que Manoel de Oliveira illustre le cinéma portugais», escrevia-se em Dezembro de 1965. Só neste ano o prestígio internacional de Oliveira começou, para além de referências mais antigas e altamente elogiosas de Bazin ou Sadoul. 
[4] Cf. JOSÉ MANUEL COSTA, artigo «Construção e Reprodução na Obra de Oliveira: um Jogo de Tensões» no volume Manoel de Oliveira, ed. Cinemateca Portuguesa, pp. 47-56, Lisboa 1981.
[5] Os dez filmes anunciados por Cunha Telles eram As Ilhas Encantadas, O Crime da Aldeia Velha de Manuel Guimarães (de que se falará adiante), três co-produções com a França e mais cinco filmes que se não fizeram ou se fizeram muito depois: Lembranças de Um Inverno que teria sido a primeira longa-metragem de Fonseca e Costa, se o realizador não tivesse sido preso por razões políticas; Bonecos de Luz a atribuir a António Campos (n. 1922) que viria a ser um dos grandes documentaristas portugueses; Lisboa, filme de animação de Mário Neves; um documentário sobre o famoso escritor Aquilino Ribeiro (1885-1963) de Fernando Lopes; e A Promessa, adaptação da peça de Bernardo Santareno, por António de Macedo. Só este filme se fez, mas dez anos mais tarde e já não com Cunha Telles.
[6] Embora apenas em 1966, quando também foram lançados As Ilhas Encantadas e Verdes Anos.
[7] Durante os anos 60, a emigração portuguesa atingiu a cifra impressionante de 1 184 227. Quase todos emigraram para a Europa (França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica) e muitos clandestinamente (420 505). A oposição chamou a este fenómeno (que levou a população portuguesa a diminuir de 150 000 entre 1960 e 1970) «votar com os pés».
[8] Maria Barroso é casada, desde 1949, com Mário Soares, presidente da República Portuguesa desde 1986. Como o marido, sofreu inúmeras perseguições políticas durante o Estado Novo que lhe impôs em 1948 a retirada dos palcos, Mudar de Vida marcou o seu regresso como actriz que prosseguiu depois – já a seguir ao 25 de Abril – nalguns filmes de Oliveira, como Benilde, Amor de Perdição ou Le Soulier de Satin. Na Benilde, de Oliveira, fez o papel de criada. Curiosamente, tinha sido ela – numa das suas interpretações mais aclamadas – quem criara a protagonista da peça de José Régio em que o filme se baseia, aquando da sua estreia em 1947.
[9] A maior parte destes filmes foi incrivelmente barata. Verdes Anos e Domingo à Tarde custaram cerca de 800 contos; Belarmino cerca de 500.
[10] No início dos anos 60, havia 45 cine-clubes no País. Em 1970, apenas 18 continuavam activos.
[11] Foi o último filme em que apareceu António Silva, aos 80 anos.
[12] Quase todas devidas à casa produtora CINEDEX, fundada em 1962 por Manuel Queiroz (n. 1921), que, entre esse ano e 1965, em que acabou, produziu 10 longas-metragens. Quase todas exploraram o nacional-cançonetismo dos anos 60, tendo como vedetas, além dos nomes indicados, o fadista Fernando Farinha (1929-1988) ou a actriz de revista Leónia Mendes (n-1922). Mas, como já referido, foram também Queiroz e a Cinedex quem produziu Pássaros de Asas Cortadas.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

109ª sessão: dia 18 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30


Continuando o nosso ciclo, veremos o primeiro filme deste realizador portuense (como Manoel de Oliveira, António Reis ou o pioneiro Aurélio da Paz dos Reis), que foi a primeira vez de muitas coisas: o amor de um rapaz e de uma rapariga muito novos e verdes como árvores na adolescência, acompanhado e eternizado pela música do grande Carlos Paredes, uma revelação para cineastas bem jovens e prestes a fazer também os seus filmes, a estreia de Isabel Ruth no cinema, o nascimento do cinema novo ("chegou a nova vaga...", como diz o poster), etc.

Em conversa com Roberto Turigliatto sobre os seus dias de juventude, de Lisboa, dos católicos progressistas, de ambientes "mal pensantes", de política e arte moderna (no catálogo publicado por ocasião do Omaggio a Paulo Rocha inserido no XIII Festival Internacional de Cinema Jovem de Turim, em 1995), Rocha admitiu que "isto teve uma enorme influência, descobriram-se novos autores, novos caminhos para percorrer. Pode-se dizer que grande parte do que acontece em Portugal de há trinta anos para cá deriva desta fractura, da falha que então se abriu. De repente tornou-se possível ser culto, vanguardista na arte e politicamente engajado.

"A dada altura os meus estudos universitários em Lisboa não andavam muito bem, e comecei a produzir uma quantidade excessiva de histórias. Escrevia quatro páginas, às vezes mais, lembro-me de ter feito uma lista, tinha cerca de 50 histórias, e cada uma tinha precisado de una semana para se organizar na minha cabeça. Corpos, personagens, incidentes. Também tive sempre a mania de caminhar a pé, fosse na cidade, ouvindo as pessoas, fosse em lugares um pouco mais mágicos e misteriosos, na montanha, no campo... Por exemplo, Os Verdes Anos nasceu do facto de duas vezes por semana eu passar três horas a andar sem destino pelos arredores de Lisboa, naquelas zonas rurais que foram sendo «apropriadas» a pouco e pouco, onde se estabeleciam aqueles que não conseguiam encontrar um quarto na cidade. Ainda se viam os restos de um mundo secular vagamente idílico e de repente mudava tudo... Era atraído por estes lugares como que por um mistério, era qualquer coisa de obsessivo, acabei a ir lá duas vezes por semana.

"Os Verdes Anos nasceu também de uma notícia num jornal, o crime cometido por um sapateiro. Por acaso aquele crime tinha acontecido a uns cem metros da casa onde vivia em Lisboa, no cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida dos Estados Unidos."

Pela altura da estreia em Portugal, Alberto Vaz da Silva, "católico progressista", tradutor e programador do Centro Cultural de Cinema em Lisboa, escreveu sobre o filme para a revista O Tempo e o Modo, abrindo assim as hostilidades: "Deste filme desprende‐se, ao longo do tempo em que em nós assentam as visões que dele tivemos, o gosto das coisas gratas. O sopro que o percorre é a intimidade a cada plano encontrada e dada à câmara com o ligeiro sobressalto da ária que o tema introduz. quem conhecer de cor as cinco primeiras cenas do cosi fan Tutte xará os verdes Anos e saberá decompô-los, para os amar, em árias, recitativos e duetos para os resumir no mais belo quinteto que conheço, e assim se resume também em palavras:

Il destin così defrauda 
la speranze de’ mortali 
Ah chi mai fra tanti mali 
chi mai puó la vita amar? 

"Esta obra, cinema de câmara – tê-la-ia Paulo Rocha dedicado secretamente a Jacques Becker? –, em si mesma tritura e molda os seus defeitos que depois se transformam moduladamente na paz da linha seguinte. A voz-off de Paulo Renato desaparece verdadeiramente quando pronuncia a palavra cidade e uma quase imperceptível panorâmica, depois de uma pausa, descobre as casas para lá das terras. é este o primeiro genérico do filme. A desajeitada recepção da porteira alentejana resolve‐se depois no descobrir do jeito de abrir uma porta cromada de fecho escondido. e assim sempre, até que os repetidos passeios tudo a nam e as vozes se libertam para o seu reunido atravessar os campos. intimamente, na solidão, duas pessoas desaguam em imagens que as enquadram a olhar o rio e olhadas de um barco, a recuperar uma camisola molhada, recuperadas brevemente no centro de uma canção que as destina. A ária mais secreta inicia‐se naquele admirável plano em que isabel ruth e João Gomes, libertados entre o espectador e a janela do sapateiro trocam palavras – quais, quem se lembra delas? – que os implicam um no outro, reaparece na cena nocturna do passeio ‐após‐Texas‐Bar e na sequência da passagem de modelos e sustenta‐se no passeio final até à cidade universitária. é a ária chamada do segredo ou do tempo prestes a nascer.

"Todo o filme é um nascer de lua num céu ainda claro de anoitecer."

Já Jorge Silva Melo, que viu o filme na adolescência, escreveu para o jornal Sol em 2007 que "até terá havido filmes que vi mais vezes, Os Pássaros de Hitchcock, Rio Bravo de Hawks, Viagem em Itália de Rossellini, O Desprezo de Godard; até haverá filmes que insisto em guardar como só meus, A Rapariga da Mala de Zurlini, Duas Semanas Noutra Cidade de Minnelli; mas talvez nenhum filme, dos muitos que vi, me tenha rasgado mais o céu do possível do que este pequeno filme juvenil, inseguro, tímido e lírico de Paulo Rocha, filme feito aos vinte e cinco anos (o Paulo nasceu em Dezembro de 1936, o filme traz a data de 1963).

"A história é a de uma chegada à cidade, a uma cidade que mudava, que se construía. Júlio, o jovem que vem da província para a Lisboa moderna da Avenida dos Estados Unidos, terá dezanove anos, é um rapaz fechado, sozinho, olha para baixo, tem o belíssimo rosto de Rui Gomes, e a belíssima voz grave do Norberto Barroca, que o dobrou. E o filme narra o seu encontro com a criada espevitada do prédio ao lado, a Ilda, que para sempre será essa extraordinária Isabel Ruth.

"Vi Verdes Anos dois ou três dias depois da estreia, numa matinée do São Luiz (eu tinha quinze anos, não saía ainda noite fora, noite de todos os vícios), voltei para casa no eléctrico e voltei zonzo (ainda não fumava cigarros Porto, isso foi no ano a seguir)."

Até Terça!

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha



por Paulo Rocha

«Mudar de Vida», vinte e cinco ano depois...[1]

… «a gente acha... que daqui a cinco anos vai ser diferente e daqui a dez anos muito mais» (entrevista para a revista «A/Z», Agosto de 1967).

E hoje, em Ovar, em 1991, como será? Em 1966, em Portugal e no Furadouro, ninguém estava contente com a vida que levava. Estava tudo a mudar – mudavam os corações, os ideais, o modo de viver... Era o fim da sociedade dos pescadores, o início da industrialização, a emigração, a guerra em África.

Eu queria filmar o momento que passa, apanhar a vida a voar...

Os Verdes Anos era uma obra adolescente, frágil, subjectiva, lírica, com uma sinceridade quase confessional que se tornou embaraçosa para mim. Teve um grande sucesso, agradou a muita gente, mas logo a seguir eu senti a necessidade de fazer um filme que fosse o contrário do primeiro. Algo de adulto, onde se sentissem mais o mundo e os homens, e melhor executado tecnicamente.

Já desde 1959, ou 60, eu tinha escrito um argumento que se passava na ria e nas matas do Furadouro. Chamava-se “A viagem de inverno”, e foi escrito ainda em Paris, quando lá estava a estudar cinema. Embora o título possa enganar, as referências à música de Schubert eram muito longínquas. Havia muito que ver já com uma certa ideia de paisagem à japonesa, com uma atmosfera parecida com O Grito, do Antonioni. O herói era um pouco inspirado no doutor Pereira, de Ovar, grande caçador e grande contador de histórias. Viam-se os canais da ria, de madrugada, no pino do inverno, com a canoa a avançar como um fantasma até perto dos patos adormecidos, cortando a crosta do gelo à flor da água. Misturava também memórias de infância do meu pai e da minha mãe, com as grandes merendas familiares em Outubro, lá para o sul, perto das pateiras, numas grandes covas ovais de areia finíssima, cercadas pela mata misteriosa, e que agora já não se encontram. Havia cães… uma menininha doente, a mãe, de uma beleza já um pouco cansada, e o médico que gostava dela, mas… Tudo isto numa velha casa um pouco em ruínas, lá para os lados da Ribeira, longe de tudo. Foi pena não se ter feito; poderia ter sido o meu primeiro filme.

Havia também outra história, que ficou sem nome. Passava-se nos anos 20, foi-me contada pelos meus pais, e tinha “brasileiros” e cenas do São João, no Furadouro, de que já mal me lembro agora, mas de que ficou no Mudar de Vida a conversa do Raimundo durante o baile nocturno, a falar das fogueiras do São João no meio da mata, nos tempos antigos.

Bom, voltando ao Mudar de Vida, eu tinha sido criado, desde miúdo, a brincar entre os barcos e as redes, durante dois ou três meses cada verão. Para mim, aquilo era um mundo maior que o mundo das cidades, com aqueles homens ruivos, roucos, gigantescos, que pegavam naqueles rolos de madeira e naqueles remos pesadíssimos como se nada fosse..., gritando juras, insultos, numa cantilena sem fim. A miséria era medonha, com as crianças raquíticas, comidas pelas moscas e pelas pulgas, os pais encharcados de aguardente, mas eu não a queria ver. Eles, os do mar, eram os gigantes, nós, a gente do interior, os anões. Como as Companhas estavam a acabar, no início dos anos 60, eu sentia que era preciso fazer qualquer coisa para as salvar, ou, pelo menos, erguer um monumento à sua glória. O meu tio Álvaro Malaquias era sócio de uma, perdia dinheiro, mas a minha mãe ralhava com ele, para continuar…

Claro que, na atmosfera neo-realista da época, as pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho colectivo – reunindo centenas deles e grandes meios materiais –, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa. Eu explico isso mais em pormenor numa entrevista que dei em 1966, para a revista Cahiers du Cinema, onde falo da harmonia entre o trabalho dos campos, da ria e do mar (bois, moliço), e da independência daquela gente naquele reino escondido entre as areias, durante séculos, longe de tudo. Visualmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder de vista. Lembrava as construções em madeira dos templos japoneses, lembrava as imagens do cinema russo do tempo do mudo.

***

O mar andava a destruir as casas, as Companhas acabavam, havia uma nuvem negra sobre aquilo tudo. Como eu era da terra, muita gente ajudou, e o filme pôde ser feito com muito pouco dinheiro. Os carros foram emprestados, a equipa ficou alojada numa velha casa de brasileiros (vivenda Pereira Dias), à saída do Furadouro. Com a ajuda preciosa do Zéni d’Ovar (o irmão da Clara), geria tudo com mãos de ferro a bela Helena, ao tempo casada com o António Pedro de Vasconcelos, que aparecia nos fins de semana. (A Helena é hoje embaixatriz, casada com o escritor Álvaro Guerra).

O engenheiro Gil, da Ulyssea Filmes, entrou com os meios técnicos e os trabalhos de laboratório, e o Telles com 200 contos, avançados pela Vitória Filmes sobre as futuras receitas de distribuição em sala. A mulher do Telles, a Margareta Mangs, uma sueca inteligente e generosa, era a montadora. Todo o resto do dinheiro, mal se esgotou aquela verba, foi arranjado por mim, semana a semana, pedindo-o emprestado. A vida era, então, ainda muito barata: bastavam 20 contos para aguentar a equipa mais uma semana. O custo total do filme terá sido de 600 a 700 contos… Se fosse hoje a fazer, a pagar os figurantes num meio desconhecido, custaria cem mil.

O que impressiona hoje é a grande quantidade de gente que aparecia nas cenas colectivas, o lado “coral”, e que desapareceu quase do cinema europeu, todo virado para dramas fechados em casas apertadas. Foi uma experiência muito interessante. É pena que hoje não se façam filmes nestas condições, de colaboração com a gente de boa vontade, longe de Lisboa. Os filmes seriam muito melhores. (Uma Abelha na Chuva, do Fernando Lopes, filmada na mesma época, teve um modo de trabalho semelhante).

Como não havia dinheiro, a câmara era uma Arriflex, velhíssima, toda desconjuntada, cujo motor mudava de velocidade a meio de cada plano, e que estava sempre a riscar o negativo. O susto era tal que eu olhava mais para o contador das imagens por segundo do que para os actores, durante as filmagens. Para iluminar a capela de Entre-Águas, foram precisos carros de bois para levar as pesadas baterias de camião… e película XXX ultra-sensível, de que só havia um rolo. Não se podia repetir. Saiu à primeira.

Era a estreia do Roque, e ele aplicou-se a fundo para pintar a praia e a ria a preto e branco. Passava as noites sem dormir, a afinar a câmara e a pensar na fotografia… Era ainda muito novo, mas o resultado causou admiração em todos os países em que o filme passou. O Roque fez uma grande carreira no cinema. Hoje trabalha em França com realizadores conhecidos. O seu melhor trabalho a cores terá sido O Sapato de Cetim, do Manoel de Oliveira.

Para os diálogos falei com o Nuno de Bragança, que me sugeriu o Cardoso Pires, então no auge da fama, e que tinha acabado de reescrever As Ilhas Encantadas, do Carlos Villardebó, para o Telles.

O Cardoso Pires falou-me no António Reis, um poeta do Porto, muito interessado em arquitectura e em literatura popular, e que tinha feito um trabalho de recolha linguística sobre os pescadores da zona de Gaia.

O António Reis era, naquela época, um personagem extraordinário, que parecia saído direitinho de um livro de ficção. Vivia em Gaia, num apartamento com vista para o rio, com as paredes todas cobertas por brinquedos feitos por loucos de um asilo: era tudo monstros de muitas cabeças feitas nas cores do arco-íris. Tinha uma maneira de falar intensíssima, os olhos brilhavam-lhe como diamantes, vestia-se como um proletário, e tinha uma cultura meio científica, meio poética. Sabia de arqueologia, geologia, tudo coisas estranhas e fascinantes. E sobretudo apaixonou-se pela história do Mudar de Vida: trabalhava como um obcecado nos diálogos, horas sem fim, meses a fio, à procura da perfeição, perdendo uma porção de quilos. Tinha um ouvido musical muito preciso, os ritmos infalíveis, não se podia tirar ou pôr uma vírgula. Na confusão do trabalho, na hora não me apercebi, mas mais tarde, em Tóquio, quando tive que traduzir tudo para japonês quando o filme lá se estreou, é que vi como os diálogos eram profundos. Por trás de cada frase havia vários sentidos possíveis, cada qual mais interessante. Ele já tinha trabalhado no Acto da Primavera e no Auto de Floripes, mas ainda tinha medo de se profissionalizar. Julgo que foi a experiência do Mudar que o animou a deixar a “Vista Alegre”, em Gaia, e a ir para Lisboa, onde eu vim a produzir-lhe os primeiros filmes no C. P. C., o Jaime, e Trás-os-Montes.

A Isabel Ruth, que eu tinha descoberto nos Verdes Anos, faz no filme uma personagem de operária revoltada, que quer deixar tudo e ir para França. É ainda mais extraordinária do que no primeiro filme. Parecia uma chama a arder. Tive o cuidado de a vestir da maneira como as pessoas de Lisboa pensam que se vestem as de província. (De outra maneira julgam que o filme é falso…). Na realidade, as operárias de Ovar, da fábrica de confecções, vestiam-se exactamente como as estudantes da avenida de Roma, blue-jeans e rabo de cavalo. Mas ninguém queria acreditar. O problema já vinha dos Verdes Anos. Toda a gente protestou contra a roupa da Isabel – as verdadeiras criadas do meu prédio, porque se vestiam muito mais à moderna, os críticos do Vavá, ali ao lado, porque estava tudo falso, era bonito de mais. Na realidade, ninguém sabe, a olhar as coisas, como elas são, mas ficam com a ilusão de que sabem… e dizem que está errado.

***

A Maria Barroso foi convidada por mim depois de a ver num espectáculo no São Luís, A Voz Humana. Ela tinha reputação de ser uma grande actriz, afastada da cena por razões políticas. A mim, o que me interessava era o lado da coragem moral e física, uma certa integridade combativa, aliada à inteligência e à ausência de auto-piedade, que ela projectava na vida corrente. Na altura, o partido socialista ainda não existia, e não se podia imaginar a futura carreira do advogado Mário Soares, que passava a vida na cadeia. A minha escolha foi apenas profissional, nada tinha a ver com provocações contra o antigo regime. Sempre fui bastante inconsciente nas minhas escolhas, os riscos que corri sempre foram por distracção. Acho que na vida tenho uma estrela na testa; a melhor forma de trabalhar é ignorar os conflitos e concentrar-me naquilo que sei fazer. Nunca me vi no papel do herói. A Maria Barroso, durante as filmagens, confirmou a minha aposta, faz um poderoso contraponto à volatilidade da Isabel. Ela é a mulher portuguesa vinda do passado, a Isabel o futuro ainda sem cara definida. Como a não conhecia bem, fiz alguns erros no desenho de uma pescadeira do Furadouro, que impediram que o resultado fosse ainda mais longe. As mulheres da beira-mar, habituadas a um trabalho duríssimo, tinham um desembaraço físico inimaginável para uma pessoa da cidade como eu. Quando eu pedi à Maria Barroso para representar com um molho de agulhas com quarenta ou cinquenta quilos à cabeça, ela perdia espontaneidade, tinha medo de cair, era peso a mais… Devia ter mudado toda a cena na mata, antes e depois do desmaio dela, adaptando-a às características da actriz. Ou, então, pedido que fizesse artes marciais durante seis meses. Mas eu estava fascinado por aquela clareira na mata, durante dez anos tinha namorado aqueles pinheiros, aquele descampado, aquela luz ao fundo, no fim de tarde. Parecia-me uma cena de um filme japonês, dos Amantes Crucificados, com a senhora a rolar pela serra abaixo, agarrada ao quimono do homem que a queria deixar para a salvar da justiça. As grandes cenas de Maria Barroso são aquelas de interior, sobre a cara dela, e em que a sua voz é inesquecível.

O personagem da Isabel ladra veio, estranhamente, do resumo de um filme japonês que nunca vi. Lá se falava de uma rapariguita que roubava a caixa das esmolas de um templo budista. Antes, tinha escrito para ela uma história de uma outra ladra, que roubava de noite pelas azinhagas dos arredores de Lisboa, entre ribeiras e as ruínas de uma fábrica de armamentos, não muito longe daqueles campos que se vêem nos Verdes. Era uma coisa mais fantasiosa, uma espécie de Combatimento di Tancredo e Clorinda, com o rapaz sempre a correr atrás dela… A situação de operária, de mulher moderna, deu outro peso ao personagem. O poço em que ela corta à faca a mão do Adelino é uma imagem de um texto do Pavese “No verão o poço secava… marcávamos os pés no lodo, juntos”. Os passarinhos a fugir do poço vêm de uma das Elegias de Duino, do Rilke… É uma cena nas falésias de Triestre, se bem me lembro.

No filme havia uma caçada nocturna a esse pássaros, com redes, que o doutor Pereira me tinha contado. O Fernando Lopes também me contou uma cena semelhante, e depois achou que eu lhe queria surripiar a cena. Acabou por não se poder filmar, por falta de dinheiro.

A cena final vem também do Fernando. Ele tinha visto um filme do Mizoguchi, A Imperatriz Yang Kwei Fei, em que, no final, o imperador fala com o fantasma da sua amada, depois de morta, e começa às gargalhadas. Achei muito bonito e resolvi acabar o filme assim, a rir, na cena das notas roubadas e dos tiros. Foi talvez uma imprudência. Na época, toda a gente achou o final mais ou menos reaccionário. Na época, o povo tinha que ser combativo, anunciar a revolução. Só muitos anos depois vi a fita da Imperatriz e, claro, o filme era diferente daquilo que eu tinha imaginado. O ataque de coração, quando a Júlia sabe que vai ter uma casa no bairro social e não resiste à alegria, era uma ideia do Manoel de Oliveira para um filme que ele tinha imaginado em pleno período neo-realista, passado nos arredores do Porto, num bairro chamado “Xanghai”.

Outra ideia, pedida emprestada à Agustina, foi a conversa do casal dos velhos sobre o primeiro casamento do homem, enquanto ela, sua prima, adoecia de ciúmes…

A conversa no baile a dizer “dança este ano, que para o ano podes estar grávida”, vem de um poema japonês com mil anos, no Man'yôshu.

Quem não gostou nada do filme foi o Comandante Tenreiro, na época o grande patrão das pescas em Portugal. Ele só o foi ver com uma semana de atraso e ficou furioso com a imagem de pobreza que saía dali. Ele queria proibir a fita, mas já era tarde. Eu bem tentei diminuir o aspecto miserabilista, filmando os palheiros com luz do fim da tarde. Ao meio dia, o sol a pique, aumentava a sombra das tábuas, e as casas pareciam pobres. Foi impossível trabalhar dentro dos palheiros verdadeiros. As pulgas eram tantas que nenhum pó as matava; ao fim do dia, ficavam os desenhos das meias marcadas a vermelho nas pernas. Era o nosso sangue…

***

Foi o Zéni quem construiu os interiores, e muito bem, num estúdio improvisado na cave da vivenda do Pereira Dias, onde a equipa se alojou, aproveitando tábuas de casas que o mar tinha levado.

A vinda do Brasil do Geraldo Del Rey para fazer o papel do Adelino vinha da minha amizade com o Glauber Rocha, o chefe de fila do cinema novo brasileiro. Tínhamos muitas preocupações comuns, e volta e meia encontrávamo-nos, ora em Paris, ora em festivais. Eu estava no festival de Acapulco com os Verdes, quando ele lá apareceu como produtor dos Fuzis. Ficou no meu quarto, discutíamos a noite inteira. Ele contava-me as ideias que tinha para a sua Terra em Transe, que tinha muito a ver com um retrato do governador do Rio, o Carlos Lacerda; eu falava-lhe no “Sepúlveda” e no Mudar. Precisava de um actor com um físico muito especial, de pescador calejado, e ele insistia com o Geraldo, um baiano que ele tinha lançado no Deus e Diabo. Usando um teco-teco (um avião-táxi), o meu irmão Jorge foi desencantá-lo em pleno sertão, onde ele estava a filmar, e lá o convenceu a deixar tudo e vir à conquista da Europa. O Geraldo, mal chegou ao Furadouro e se vestiu de pescador, foi como um milagre. Como tinha algum sangue índio, a pela dele era um bocado bronzeada, e movia-se com uma milagrosa agilidade. Entendeu-se logo às mil maravilhas com os remos e as cordas. Ficou amigo do João da Torreira, um pescador com um corpo imponente; pareciam primos, iam beber para as tabernas juntos.

Aplicou-se a fundo ao papel. Só não conseguiu falar português de cá, sem sotaque. A voz dele ouve-se apenas a cantar o “Bendito”, e a seguir à dança da Senhora da Saúde, na boca de um pescador que lhe quer dar de beber. Foi uma tentativa de juntar as forças do cinema novo do Brasil e o de Portugal. 

O filme passou na Bienal de São Paulo. As pessoas gostaram muito do trabalho do Geraldo, que é pasmoso. Mas a verdade é que o filme não saiu no Brasil. Era preciso ser dobrado em brasileiro (ninguém de lá percebia uma palavra do nosso sotaque), e isso era muito caro. O Geraldo e a Tânia, a mulher dele, ficaram por cá um ano, à espera de um papel na Abelha, se bem me lembro. Como eram bem intencionados e muito simpáticos, foram adoptados por toda a gente do Vavá e do cineclube do Porto: Alexandre Alves Costa, etc… Cantava muito bem com o violão, era excelente em baladas de Coimbra. (Apareciam lá em minha casa o Goes, o Correia de Oliveira e o Paredes, que preparava a música do filme).

Um filho do Geraldo, gerado cá em Portugal, é hoje actor de telenovela – era um dos principais no Sassaricando, o rapaz novo por quem se apaixona a actriz que podia ser mãe dele.

*** 

A minha amiga japonesa Etsuko Takano, que acompanhou as filmagens e a montagem, chegou a ter lições de guitarra do Paredes. Ficou amiga da Maria Barroso, e pouco depois tornou-se numa das mulheres mais célebres do Japão, fama que até hoje dura.

O filme foi ao festival de Veneza, onde foi especialmente bem recebido pela crítica francesa. O Michel Cournot disse maravilhas, o Sadoul gostou muito… Saiu uma entrevista nos Cahiers, que provocou a ira do Carlos Porto (na revista Plano, por não ser nada ortodoxa… Falava dos quatro elementos, e de que o cinema do Porto, dentro do país, era um reino à parte. Mas a Seara Nova, pela boca do Machado da Luz, fez uma bela crítica, e na “Rádio e Televisão”, o futuro patrão da C. I. P., o Ferraz de Carvalho, que na época queria ser realizador, disse que era o melhor filme português de todos os tempos…

O filme ainda foi à Expo 68, em Montreal, ao festival de Hyères, etc. Passou nas televisões canadiana, alemã e polaca, e estreou-se com sucesso em Tóquio, numa sala de grande prestígio. No Japão saíram muitas críticas calorosas, e foi editado um lindíssimo cartaz e um catálogo de luxo, com os diálogos. Há, agora, bastante interesse pela fita na Itália. Julgo que, num futuro próximo, sairá cá em vídeo, e também no Japão.

O Rui Almeida, na época ainda um rapaz novo, fez espantosas fotografias da rodagem, que era necessário reencontrar, pois estão perdidas. A Cinemateca de Lisboa gostaria de fazer com elas uma grande exposição, a comemorar os 25 anos do filme.

Um jovem vareiro que seguiu as filmagens e, mais tarde, se tornou célebre, foi o Joaquim Pinto, um futuro realizador e produtor de filmes.

***

As canções do baile nocturno – “Ora aperta, amor, aperta, aperta a minha cintura…” –, deram um trabalho medonho a gravar. Como as filmagens foram pela noite dentro, as pessoas começaram a dançar mais devagar, e o ritmo do baile variava de plano para plano. Acabei por andar com a minha mãe pela Madragoa e pela Alfama à procura de peixeiras da nossa zona que ainda soubessem de cor a canção e que fossem comigo para o estúdio da Nacional Filmes. Foi preciso convencer os maridos delas. Quem as ensaiou a mudar de ritmo de plano para plano foi a Margareta, a montadora sueca, que tinha paciência e ouvido musical.

O sr. António Coelho, de Ovar, actor amador com muito mérito, fez de médico, o sr. Gesta, de patrão da Companha…, o que ele já era na realidade, se bem me lembro. A Edwiges Dias Simões fez de pescadeira a pentear a amiga, na abertura do filme.

A minha mãe, Cândida Malaquias, insistiu comigo para pôr no filme um cantar antigo da região: “Indo um lavrador para Arada, encontrou um pobrezinho…” O Giacometti, da recolha da música popular, veio ao Furadouro gravar o “Bendito”, depois de ter visto o filme. Não sei se existe em disco.

Na época, alguma crítica achou que havia desequilíbrio entre a parte documentário e a parte dramática. Hoje acham que é um dos aspectos mais modernos do filme, a colagem de materiais diversos.

Muitas coisas terão ficado por dizer… Só posso agradecer a ajuda generosa de centenas de homens e mulheres do Furadouro que me deram vontade de fazer este filme.

in «Mudar de Vida», 25 anos depois...», João Semana, 15 de Abril de 1991.

[1] Esta transcrição do artigo de Paulo Rocha publicado no quinzenário João Semana, de Ovar, provém de duas fontes incompletas: uma publicada no blog “Artigos do Jornal João Semana” de Fernando Pinto e outra do catálogo dedicado a Paulo Rocha durante a Omaggio a Paulo Rocha inserida no programa do XIII Festival Internacional de Cinema Jovem (Turim, 10-18 de Novembro de 1995). Apesar de servirem como complemento uma à outra, não temos maneira de saber se é este o texto completo e os primeiros quatro parágrafos são traduzidos do italiano. De qualquer forma, Paulo Rocha fala aqui de imensa coisa, e pareceu-nos indicado dar a palavra ao realizador neste caso. Da nossa parte, e falando de descobertas pessoais relacionadas com os bastidores da produção, parece-nos capital a importância deste filme para o cinema português, sabendo que reuniu à volta de Paulo Rocha António Reis, António Campos, Alfredo Tropa, Noémia Delgado e Joaquim Pinto, todos futuros realizadores. (João Palhares)

domingo, 9 de setembro de 2018

108ª sessão: dia 11 de Setembro (Terça-Feira), às 21h30


Faz sentido exibirmos três filmes de Paulo Rocha depois de termos visto em Braga O Intendente SanshoOs Amantes Crucificados e A Imperatriz Yang Kwei Fei  de Kenji Mizoguchi, a referência maior do realizador, motivo para visitar e revisitar o Japão vezes sem conta e fazer lá a sua obra mais pessoal, A Ilha dos Amores, restaurado recentemente pela Cinemateca Portuguesa e, esperemos que em breve, reposto em sala pela Midas Filmes. O cineasta esteve também pela zona de Braga durante os anos 80, no Mosteiro de Tibães, para filmar O Desejado ou As Montanhas da Lua.

Ao contrário do anunciado, o primeiro filme do pequeno ciclo-Paulo Rocha a ser exibido será Mudar de Vida, rodado nas matas e nas águas do Furadouro e interpretado por Geraldo D'el Rey, Isabel Ruth e Maria Barroso, hino a rituais ancestrais e prestes a desaparecer mas também a um novo mundo, de todo um povo, desiludido, porque "os que desejam MUDAR DE VIDA são os que sofrem a vida que têm".

Em conversa com Pedro Costa depois de voltarem a ver o filme numa televisão, Rocha disse que "é um facto que, ao ver o filme agora, ouço a voz de António Reis a ler os diálogos e a tentar dar-lhes intenções, como esse lado mais popular que ele tinha das indirectas, as ironias de uns com os outros, e os desgostos. Vem em parte, claro. Mas vem muito del decoração, porque é grave, as figuras são cortadas contra um fundo branco de areia, de dunas. É como se os triângulos amorosos entre adultos (coisa que eu não conhecia muito bem, ainda era um adolescente) compensasse isso com maior gravidade, mais silêncios. E o brasileiro, Geraldo d’El Rey, tinha um grande peso, e seu silêncio ajudava muito. A Maria Barroso encaixa com o melodrama popular, o sofrimento das mulheres casadas… por outro lado, eu tinha um sentimento de reverência em relação aos lugares e às pessoas. Tinha um respeito enorme por eles… desde pequeno, de bebé, tinha dormido à sombra daqueles barcos e tinha descoberto aquelas pessoas extraordinárias. Era uma raça de gigantes, cobertos de pulgas e doentes, mas uns tipos «bigger than life». Estava muito irritado comigo mesmo porque Os Verdes Anos tinha tido muito boas críticas, aqui e no estrangeiro, mas pensava que era muito sentimental, uma lamúria de adolescente, e portanto quis contrariar a minha natureza fazendo as coisas mais a sério, com mais peso. E apesar de o filme ter sido feito com menos dinheiro que Os Verdes Anos, sobretudo graças ao Roque que é ultra-trabalhador e apaixonado peas coisas, não se nota uma deriva técnica. O mais misterioso é que algumas das cenas mais brilhantes são o contrário de tudo aquilo em que acredito. Há muitos mais campos-contra-campos do que em Os Verdes Anos, por exemplo. O Roque puxava um bocado para esse lado, tinha feito muitos filmes franceses e tinha aprendido como se fazia o campo-contra-campo. Mas era uma maravilha sobretudo com Isabel Ruth, porque a Isabel Ruth era a coisa mais imprevisível do mundo e, portanto, nada era como estava no guião, como se tinha de fazer: os olhares dela estavam errados frequentemente, não obedecia e isso dava-lhe um grande encanto, selvagem, bruto, porque ela está à flor da pele naquela primeira grande cena de amor em que estão na barraca a meio do juncal e falam muito, enquanto que ele está mais ou menos normal, bem mas normal, ela é um bicho bravo, um gato. E, sozinha, acabou por revolucionar certas coisas do filme porque destrói a sua estrutura. Nunca se sabia o que é que ela ia fazer. Nisso, o filme é muito mais brilhante que Os Verdes Anos no que lhe diz respeito a ela. E é curiosíssimo agora, esse lado sofrido nela, uma adolescente já queimada pela vida: não tem nada de académico… acho que tive muita sorte. Hoje já não seria capaz de fazer essas coisas. Havia uma mistura um bocado mágica graças a António Reis."

Para o Ípsilon e a propósito da estreia do último filme de Rocha, Se eu Fosse Ladrão... Roubava (acompanhada pela reposição, pela Midas Filmes, das três obras do cineasta que vamos ver este mês), Luís Miguel Oliveira escreveu que "quando vemos hoje Os Verdes Anos (1963) ou Mudar de Vida (1966), há um apelo muito imediato. O do tempo que ficou “em conserva” nesses filmes, o retrato que eles propõem duma época específica de Portugal. A Lisboa cinzenta dos Verdes Anos, ainda a expandir-se pelo campo em volta, as ruas e os cafés, as vidas dos que vinham do campo para avançar pela cidade, como o sapateiro (Rui Gomes) e a sopeirinha (Isabel Ruth) que compõem o casal protagonista.

"Em Mudar de Vida, que não deixa de ser de vários modos um “reflexo” do primeiro filme de Rocha, a província (a região de Ovar, a que o realizador estava familiarmente ligado), as vidas dos pescadores, a sombra da guerra colonial (de onde voltava o protagonista). Tudo isto, toda esta precisão (“sociológica”, se quisermos), o tempo não fez mais do que salientar e reforçar, e este sentido de justeza também é, obviamente, a marca de um grande cineasta.

"Mas que não deve esconder outros aspectos, mormente a extraordinária construção dramatúrgica desses filmes, o modo como todos os seus elementos, sobretudo aqueles mais directamente arrancados ao “real” (por exemplo, em Mudar de Vida, a sequência da festa popular), se inserem numa progressão narrativa impecável, alimentada por pulsões e mais pulsões, invisíveis mas pressentidas, e frequentemente de sinal contrário – é essa violência, sanguínea, contraditória, inexplicável, que toma conta do final de Os Verdes Anos, por exemplo, esse filme que acabando embora com a morte é um filme pleno de vida. Nessa perspectiva, Mudar de Vida, sendo mais duro e mais árido do que Os Verdes Anos, é um filme mais optimista, a fazer bem jus ao título: a célebre fala final do protagonista, “ainda temos braços”, é uma promessa de vida, de futuro, um caminho de superação diametralmente oposto ao fechamento, dir-se-ia “subterrâneo”, para que tendem Os Verdes Anos."

Já Fernando Lopes, no catálogo da Cinemateca, Paulo Rocha O Rio do Ouro, disse que "falta falar, ainda, das fabulosas personagens que o Paulo ofereceu à nossa imaginação e ao nosso sonho: a Isabel Ruth em criadinha e em rebelde no Mudar de Vida; o Ruy Furtado em sapateiro (quando ainda os havia); o ensimesmado Rui Gomes; o conquistador da cidade mulher, Paulo Renato; o Geraldo Del Rey ferido da guerra e dos amores; a sofrida Maria Barroso; o fantasmático e prodigioso Luís Miguel Cintra naquela que é, para mim, a sua maior interpretação no cinema. 

"De quantos cineastas se pode dizer isto? De quantos cineastas se pode dizer que, pelas suas estórias e personagens (e o Paulo é, seguramente, no cinema português, um dos maiores criadores de estórias e de personagens) nos povoaram a imaginação e os sonhos? 

"Melhor: de quantos cineastas se pode dizer que nos fizeram olhar, de outro modo, o tempo que nos foi dado viver e, por isso mesmo, por esse outro olhar, tentar mudá-lo? 

"É tudo isto que devo ao Paulo. Como cineasta e como cidadão. É muito, mas não é tudo. Devo-lhe o seu visionarismo sobre os novos modos do olhar e do ouvir. De outros verdes anos e mudares de vida que aí vêm. 

"Em suma: o Paulo diz sempre a mesma coisa, como todos os autores maiores – é preciso mudar o olhar para se mudar a vida."

Até Terça-Feira!