terça-feira, 28 de janeiro de 2020

161ª sessão: dia 30 de Janeiro (Quinta-Feira), às 21h30


Já no final do mês, exibimos a última longa-metragem de ficção realizada por Manuel Mozos. Ambientado na sua Lisboa de sempre, mas num tom mais jocoso do que o habitual, narrando os dias de um escritor tornado alfarrabista com as vizinhas, os amigos e Patrícia, pela sua loja e pelo seu bairro, Ramiro é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em entrevista ao Público, e quando questionado sobre a ausência de planos gerais (o que torna a cidade mais misteriosa), Mozos admitiu que "eu acho que ainda há um lado secreto, misterioso na cidade, e gosto de sublinhar isso. Se fizesse planos muito abertos, acabaria por dar uma imagem diferente da cidade, não reflectiria essa dimensão misteriosa. Depois, não sei se é por sofrer de vertigens, não gosto nada de utilizar gruas, gosto de ter a câmara a um nível com que nunca perca o contacto, e gosto de estar à câmara na preparação do plano, em vez de usar o monitor. Questões de produção, também: habituei-me a trabalhar com poucos meios, em que para se ter umas coisas tem de se prescindir doutras, e desde o princípio que me habituei a não ter gruas nem material mais sofisticado."

Sobre o actor principal, o realizador diz que "(...) não gosto nada de fazer castings, pelo menos seguindo o modelo tradicional de os fazer. Para o Ramiro havia várias hipóteses, e fomos discutindo os prós e contras de cada um, prós e contras no sentido do que é que a personagem ganharia ou perderia conforme o escolhido. Eu conhecia vagamente o António, tinha visto creio que duas peças com ele. Mas não tinha feito nada em cinema, portanto não havia muita informação sobre ele. Encontrámo-nos algumas vezes e decidi arriscar. É curioso que nas primeiras cenas que filmámos ele estava um pouco receoso, um pouco tolhido pela falta de à vontade. Mas isso era perfeito para a personagem, e eu pedi-lhe que ele não perdesse isso, mantivesse aquela espécie de embaraço à medida em que de facto, com o avanço da rodagem, o perdia. Algo que ele fez muito bem."

Para a Visão, Manuel Halpern escreveu que "talvez o filme se situe algures no meio caminho entre as comédias portuguesas dos anos 40 e 50 e a trilogia de Deus, de João César Monteiro. Ramiro é, sem dúvida, um filme diferente no panorama recente do cinema português. Uma comédia cheia de subtilezas que foge aos padrões facilitistas dos últimos sucessos nacionais de bilheteiras, mas que também se distingue daquele cinema que traz o peso do mundo às costas.

"Conhecendo o percurso do realizador, tudo isso faz sentido. Manuel Mozos é, por excelência, um cineasta de transição, entre gerações, que constrói pontes entre linguagens. Ao mesmo tempo que se formou na Escola Superior de Cinema com Pedro Costa, Teresa Villaverde, Joaquim Sapinho, entre outros, aproximou-se, com participações e cumplicidades, dos cineastas mais novos da chamada “geração curtas” (Miguel Gomes, Sandro Aguilar, entre outros). No caso de Ramiro, isso é flagrante. A história parte de um argumento original que foi oferecido a Mozos por Mariana Ricardo e Telmo Churro, dois dos principais nomes de “bastidores” da nova geração. É assim indisfarçável o aparecimento de uma certa linguagem, mesmo ao nível dos diálogos, próxima sobretudo de Miguel Gomes e João Nicolau. A história em si é feita de personagens-tipo, roçando o caricatural, mas sem que tal se desenvolva até ao limite. Ramiro, o protagonista, acaba até por ser a personagem menos extremada, embora partam dela, da sua reação com o meio, as principais situações de humor."

Já Luís Miguel Oliveira, em 2018, arguiu que "parecendo que não, 4 Copas estreou em 2009 e Ramiro é a primeira longa-metragem de ficção de Manuel Mozos em quase dez anos, período durante o qual ele nunca deixou de estar presente mas vestindo, por norma, a pele de documentarista (nomeadamente, os casos de Ruínas e de João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que eu Amei, ambos comercialmente estreados e amplamente divulgados). Ramiro, produção da O Som & a Fúria, obedece a premissas algo especiais: na sua origem está um argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo (habituais colaboradores na escrita dos argumentos dos filmes de Miguel Gomes), escrito a pensar no realizador (como um argumento escrito por “fãs” que se põem a imaginar um filme de Manuel Mozos, ou um filme para Manuel Mozos) mas sem intervenção directa dele, pelo menos até certo ponto. O desafio, assumido, era este: lidar com um argumento de terceiros que funcionava, em parte, como uma compilação de elementos associados ao cinema de Mozos. 

"Ficaram outros elementos, como é evidente, naturais e “idiossincráticos” em Telmo e Mariana, como certos apontamentos humorísticos que pareceriam “normais” num filme de Miguel Gomes e que aqui – por exemplo, logo numa das primeiras cenas, a lengalenga da miúda no alfarrabista – originam uma estranha sensação de deslocamento, pela simples razão de que não reconhecemos ali a “linguagem” de Manuel Mozos. Em todo o caso, isso faz parte do desafio; e em última análise, “à la longue”, num filme que tem várias “camadas de leitura”, o desafio é reflectido pelo filme, culminando naquele final em que o protagonista Ramiro recupera a sua obra (um caderninho de poemas que lhe tinha sido roubado) a um vendedor da Feira da Ladra. Como ele, também Mozos “recupera” o seu filme, organicamente, e faz corresponder ao seu olhar o que era na base um olhar de terceiros sobre a sua obra e sobre o seu estilo."

Até Quinta!

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

4 Copas (2008) de Manuel Mozos



por José Oliveira

(…) Interesso-me pelos homens e pelas mulheres, por conseguinte interesso-me por mim mesmo. Não me sinto tocado senão quando vejo a alma de um homem, ou quando, sem ornamentos nem estardalhaços, alguém se dirige à minha.” (…) “O que ele mostrava, a sua franqueza, a sua honestidade desconcertava como um soco, era um ser maior que os heróis, mais belo que os deuses; era um homem. (…) 

Jacques Serguine, Educação do Espectador, Cahiers du Cinéma nº 111, Setembro 1960. 

O que transmite a imensa sensibilidade e o profundo humanismo do filme de Manuel Mozos são coisas singelas. A começar pelas pessoas que vivem no filme, como vivem e o que fazem, até aos lugares por onde elas andam. Cheio de mundo e de vida, longe do fetiche babado e da cinefilia barata. Não existem vedetas, décors espampanantes nem grandes carros. Não existe um argumento intricado, piruetas estilísticas ou montagem a rasgar. Tudo é puramente comum e é isso que torna o filme especial e o engrandece. Claro que em muitas salas onde será projectado (e é milagroso ver coisas tão pequenas e íntimas serem projectadas) passará por simples objecto “demodé”, quem sabe anacrónico. Nada disso (mesmo que seja preciosamente “fora de tempo”), Mozos é um clássico, um dos últimos crentes da arte dos silêncios e do relato, do essencial e do sensível, da frontalidade, lateralidade ou em elipse sussurrada. É daqueles cineastas que sabe que quando a arte clássica é praticada com tal certeza absoluta e com tal humildade, só desse modo o cinema parece ser possível existir e fazer sentido. Nesse hiato que o filme dura, não há margem para dúvidas. Um cinema que se interessa pelo que o demais dispensa e lamentavelmente elide – desde os pequenos gestos e modos caseiros ou no trabalho, até à maneira como se sente um cigarro ou se bebe um copo de cerveja, se dá pontapés numa bola, ou ainda na fabulosa cena da discoteca, a criação de ambiente e atmosfera bem como os rituais próprios dos lugares, é de quem percebe tanto de cinema como da vida. Sim, pois não é só a mestria da velha escala dos planos e do trabalho de luz que está em jogo, é de modo tão decisivo um respeito pela subjectividade e pelas nuances de cada indivíduo. Cada um é um outro, zero de maniqueísmo nestes aspectos. Por tudo e mais alguma coisa, repare-se na imensa orgânica e nas respirações várias que o filme ostenta, nas sinuosidades, nos altos e baixos (precisamente como os baixos e os altos representados pelo centro comercial e a montanha; um pouco de sufoco, muito de transcendência), na forma como as coisas mudam e se transformam, nunca preso, muito menos dependente, de convenções narrativas e visuais destes tempos – impressionante a maneira como a música entra e se abandona conforme a emoção em jogo – inventando mais uma vez uma poética própria (como o Xavier, sempre). Que se note mais uma vez que o clássico quando nestes moldes sublimado e cinzelado é mesmo o mais ousado e feroz dos modos e logo o mais livre, é daí que nasce a frescura de 4 Copas. E que por tudo se perceba que na era do digital – onde se tenta a todo o custo substituir a carne, os ossos e o sangue, por meros pixels – ainda é possível que seres tão comoventes, inseguros, cheios de falhas e virtudes, numa palavra, humanos, habitem deste modo uma realidade e uma tela. Ainda é possível filmar afectos e relações, sem pedir desculpas. 

Classicismo, generosidade. Porque passou 4 Copas praticamente sem deixar rasto pelas salas dos grandes centros ou mesmo nas mais recatadas e cultas? Pode-se arriscar e reforçar que por um lado o gesto de Mozos vai contra todas as dominâncias e recusa o mel das ficções correntes e assumidamente criativas, onde as ideias mais mirabolantes andam a par com o embelezamento e o glamour das personagens orgulhosamente inventadas. Ora as pessoas dos filmes de Mozos, em qualquer um deles, parecem sair de uma qualquer esquina ou beco ou avenida dos simples e dos perdidos, uma ruela do Bairro Alto ou um cume da Mouraria, do mais rasca dos bares como o nosso lindo estádio a um qualquer pátio de bairro dessa Lisboa sem bilhete-postal e muito menos branca. Por aí fala-se e canta-se e berra-se, insulta-se e abraça-se. São cabeleireiras, floristas, seguranças, comerciantes flutuantes… e nesse percurso podem tornar-se Rimbaud ou Zé dos Anzóis. Nada a ver com o champanhe e os decotes baixos de uma Bela e o Paparazzo, tudo a reenviar para o seu tão amado Aki Kaurismäki ou se quisermos ir mais atrás, para as pessoas também desta terra dos filmes de Valerio Zurlini. Mas não esqueçamos o outro lado, o lado dito selecto dos possíveis “cinemas de arte e ensaio” ou de uma qualquer cinemateca em qualquer lado. Sabe-se, o termo moderno ou o seu decorrente experimental separou completamente as águas e criou facções a quem nele quis acreditar cegamente e fez disso dogma e bandeira. A recusa ou estilhaçamento da narrativa, a montagem fragmentária ou irracional, o desregramento totalitário e mais das vezes supérfluo, o tempo supostamente a valer por ele próprio tal como formulou Gilles Deleuze. “Can Movies Think?”, perguntou Kent Jones. “The Brain Is the Screen” – filosofia no cinema, entregou-nos o mesmo Deleuze. Depois, as tão sedutoras teorias de David Bordwel e todos os seus sucedâneos intercontinentais ou o comércio de Tom Schatz. Ganga e mais ganga, compêndios intermináveis de folhas obrigatórias de tese que pretendem redefinir e acabar com o cinema. Como aceitar, ler à luz desses apostolados ou encaixar nesses conceitos rijos como betão – ao contrário da caução progressista, liberal ou rompedora que tais autores juraram ter encontrado – uma carta de amor e uma ode às ruínas de uma civilização e de uma arte talvez irremediavelmente perdida, assim tornada centro e elo aglutinador? Velha questão e certeza, como alguém em algum filme de Godard escreveu a giz num quadro de aulas: clássico = moderno. Quem não perceber com um filme destes, jamais perceberá. Para provar isto, e se tal mais fosse preciso do que a alegria de viver que neutraliza a dor, os sorrisos de soslaio ou a liberdade de subir uma montanha – como deixar de referir as mãos dadas em grande plano e logo o beijo sem medo do ridículo como nos filmes de Douglas Sirk, abra-se bem os olhos à montagem entre as quatro copas e o baralho envolvente que em paroxismo contido, secretamente austero e em surdina vai pulando de vida em vida e escancarando-nos dependências, relações, milagres. As ambiências de fumo e de papelão, utopias impossíveis de sonhos de estúdio. Ou uma câmara e uma luz que de tão discretas e ternas e em concordância com aquilo que filma e modela nos dão não a magia de coisa alguma, sim a inesgotável fonte da impressibilidade e capacidade humana. A vida vale a pena mesmo com os seus baixos e crispações, recado esquecido. Manuel Mozos, cineasta de corpo inteiro. Repito, sem pedir desculpas. 

in «Jornal dos Encontros Cinematográficos», Novembro de 2011.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

160ª sessão: dia 23 de Janeiro (Quinta-Feira), às 21h30


Um pai e uma filha, a madrasta e o amante, coordenadas emotivas para um dos mais belos filmes de Manuel Mozos, que prova as maravilhas que é possível fazer com actores e com a ficção no nosso país. Com João Lagarto, Rita Martins, Margarida Marinho e Filipe Duarte, 4 Copas é a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Em entrevista ao Público em 2009, Manuel Mozos disse que "este filme tem uma nuance. Ao contrário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do 4 Copas nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessante até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, de maneira a que nalgumas partes se poderia até dizer que a história ficou fragilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo "fragilizada" no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a "coerência" da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens."

A Diana do filme, Rita Martins, assumiu ao Jornal de Notícias em 2009 que "acabamos sempre por dar um bocadinho de nós em todos os papéis. E a Diana tem uma idade semelhante à minha. Tinha 21 anos, como ela, quando fiz o filme. Por isso, a experiência de vida era a mesma. E identificava-me um bocado com a própria história. A personagem não sou eu, mas a forma de estar de uma miúda de 21 anos partia de mim. (...) Houve dois castings. No primeiro, sei que fui seleccionada pela minha aparência física. É norma, porque se procura sempre quem tenha uma aparência física com a personagem. No segundo, já me foi dado um texto para trabalhar. E fiquei eu. Foi um processo normal. Eu é que tinha alguns problemas, porque estava em época de exames. (...) O 4 Copas é um filme muito fresco e pode ser visto por qualquer pessoa. O Manuel Mozos conseguiu isso. É um filme de personagens, que pode ser visto daqui a dez anos. Espero agora vir a ter muito mais visibilidade."

Na sua crítica ao filme, Luís Miguel Oliveira escreve que "o filme de Manuel Mozos tem a capacidade de se confundir, a cada momento, com um infinito amor pelo seu conjunto de personagens, que é de resto a principal razão da sua existência. Nem todos os filmes, e na verdade não é assim uma coisa tão comum, estão interessados em gostar das suas personagens. E muito poucos querem, e sabem, mostrar a cada plano o amor que têm pelas suas personagens. A reduzirem-se - tarefa ingrata - as virtudes de 4 Copas a uma só, essencial, fique-se com essa: a capacidade que o filme tem para se confundir, a cada momento, com um infinito amor pelo seu conjunto de personagens, como se fosse ele a guiá-lo, e declará-lo a principal razão da sua existência. Doce mesmo quando é implacável (o plano em que João Lagarto adormece antes de a mulher, Margarida Marinho, se deitar, e assim com um pacífico ressonar se mostra um casamento em falência técnica), terno mesmo quando é severo (a bofetada de Lagarto na filha, Rita Martins), 4 Copas é um filme que parece feito para ele próprio, o filme, ficar a ver as suas personagens, ver o que elas fazem e como elas sentem, às vezes envergonhado com as suas falhas de carácter (os planos com Marinho, viciada no jogo, a rebaixar-se para conseguir algum dinheiro emprestado), outras orgulhoso das suas virtudes (a cabeça erguida, o peito cheio de ar, de João Lagarto na cena a seguir ao divórcio), mas sempre devotado. A verdade é que, como ensinou um velho cineasta francês, todos têm as suas razões, e é isso que torna a escolha difícil. Ou impossível: mesmo quando as personagens estão já todas zangadas umas com as outras (as três citadas mais a de Filipe Duarte), e não há um plano que possa conter duas delas ao mesmo tempo, o filme - e é talvez a sequência mais bonita - entra num vai e vem a saltar de umas para as outras, planos curtos sobre planos curtos, quase sem "avançar" coisa nenhuma, como se fosse só para conseguir estar com todas em simultâneo (e também para se descansar, e confirmar que elas são fortes, e se aguentaram durante o tempo em que a câmara as abandonou).

"Isto é uma questão de olhar, na verdadeira acepção da palavra, e juntamente com este tipo de dramaturgia sussurrada, num tom menor (como todo o tom menor, uma questão de estilo, e de estilo clássico) que reflecte o esbatimento de uma inquietação numa resignação (redentora ou não), a marca distintiva do cinema de ficção de Manuel Mozos (embora fosse interessante defender que também se encontram estas exactas características num filme como Ruínas). 4 Copas conta uma história "comum" como em Xavier ou no malfadado Um Passo, Outro Passo e Depois... Talvez não fosse tão "comum" a de ...Quando Troveja mesmo se 4 Copas conserva dele alguns ecos muito directos - Diana (Rita Martins), a miúda com nome de deusa da caça que para remendar o casamento do pai se põe a seduzir o homem que lhe seduziu a mulher, é um pouco como os "duendes" que nesse filme cuidavam da vida amorosa de Miguel Guilherme. Tornando-se a força motriz da história (espécie de pequena "metteuse en scène"), é também a personagem mais enigmática - nela coexistem a candura e a perversidade, mas as doses de uma e de outra coisa são cuidadosamente camufladas."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos

O filme, até agora, teve poucas projecções e, naquilo que me foi dado a entender pelas pessoas com quem conversei ou que me enviaram mensagens, realmente há pessoas que ficam na dúvida, não sabem o que é o verdadeiro, o que é o falso. Há outras que conseguem identificar mais facilmente. Há ali, também, camadas de informação que, eventualmente, para pessoas que tenham um maior conhecimento de cinema, servem para se poder perceber que há ali nomes que nunca existiram. Com um bocado de investigação a pessoa pode chegar à conclusão que aquilo que está no filme não foi bem assim ou não foi de todo assim. Mas aconteceu-me uma coisa engraçada na primeira projecção que o filme teve em Vila do Conde. À saída, uma rapariga, mas que lhe achei imensa graça, veio ter comigo e disse-me “você a mim não me engana. Uma daquelas senhoras que participa no filme como se fosse de há muitos anos, compro-lhe o peixe todos os dias”. Fiquei desarmado, mas isso foi o oposto. Houve, também, pessoas com algum conhecimento que me perguntaram, “mas o Régio filmou mesmo aquelas imagens”, ou, “nunca ouvi falar do nome Morais Abraão.” Jogo, no filme, com uma base verídica, como o que o motivou. A carta do Régio é um facto real, que estudou em Coimbra e que formou um grupo, Os ULTRA, com aquelas pessoas que foram mencionadas. Ele conheceu, realmente, o Manoel de Oliveira à saída do cinema Olympia, no porto, naquela data, através do Casais Monteiro. Mas há outras coisas que não são verdade. Ainda ontem estive com duas pessoas já de idade, amigas pessoais de José Régio, e para elas aquilo é um enigma. Ou seja, nunca houve menção à intenção de se fazer cinema por parte de José Régio e mesmo dos outros elementos do seu círculo de amigos, do ULTRA ou do Alberto Serpa.

excerto de uma entrevista de 2015 ao realizador feita por Ana Isabel Fernandes

Aldina Duarte - Princesa Prometida (2009) de Manuel Mozos



por Nuno Pacheco

No palco da Culturgest, hoje, vai estrear "Mulheres ao Espelho". Na tela do IndieLisboa, dia 26, vai ser protagonista do documentário Princesa Prometida, de Manuel Mozos. E em 2010 Olga Roriz vai levar os seus fados à cena. 

É quase uma ironia, mas aconteceu assim: Aldina Duarte entrou no mundo do fado por causa de um documentário que não chegou a ser feito. Agora, já fadista, foi ela mesma objecto de um, realizado por Manuel Mozos e programado para estrear no IndieLisboa (dia 26, às 21h45, na sala 1 do São Jorge). 

Porquê Mozos? Aldina cantara já um fado no seu filme Xavier, em 1991, e foi com ele que foi pela primeira vez a uma casa de fados, em 1993, com o objectivo de preparar entrevistas com Beatriz da Conceição, Celeste Rodrigues e Fernando Maurício (que entretanto morreu). Encantou-se de tal modo ao ouvir cantar Beatriz da Conceição que se tornou, ela própria, fadista. Quanto aos documentários, que seriam realizados por Jorge Silva Melo, não chegaram a ser feitos. E foi Aldina quem veio a figurar num, Princesa Prometida, assinado por Mozos. 

"Para mim é muito estranho, porque não fiz nada para que isto acontecesse. A Maria João Seixas, que ainda não conhecia pessoalmente, foi apresentar uma das quintas-feiras de leitura, no Porto, no Teatro Campo Alegre. A primeira parte era dedicada à poesia da Maria do Rosário Pedreira (eu não a conhecia mas já era fã, tinha ouvido as duas letras que ela escreveu para o último disco do Carlos do Carmo) e na segunda parte ia eu cantar fados, porque me convidaram." 

Dada a coincidência, Aldina pediu a Rosário Pedreira que lhe escrevesse então uma letra para ela estrear lá, o que veio a acontecer (foi "O amor não se desata", que entrou depois no disco Mulheres ao Espelho). Mas o pretexto para o filme veio depois. "Num jantar, estávamos a falar sobre política e eu não fui politicamente correcta. A Maria João Seixas achou extraordinário e disse que se tivesse um programa de entrevistas me entrevistava naquela altura. Porque, disse ela, a minha vibração infantil-adolescente com a minha idade era uma coisa rara." 

Passados três meses, apareceu-lhe com a ideia do documentário, já com tudo tratado. Como fio condutor haveria uma noite de fados no Palácio Fronteira e uma entrevista com Aldina, que foi feita em casa dela, na Madragoa ("Foi a primeira vez que abri assim a minha casa, porque era a pessoas minhas amigas. Mas fez-me impressão e não quero voltar a fazê-lo"). 

O concerto foi gravado em Dezembro de 2007 e as filmagens consumiram uma semana de Fevereiro de 2008. Além disso, ela tinha que escolher os percursos e as pessoas que queria integrar no filme. "Escolhi só duas: uma que tem a ver com a minha vida pessoal, que é a minha mãe; e outra ligada ao meu trabalho, o Jorge Silva Melo, que é a pessoa com quem eu acho que aprendi mais profissionalmente." 

A conversa com Silva Melo decorre no Largo do Carmo, numa feira de livros usados, enquanto a conversa com a mãe decorre no Jardim Tropical, junto a uma árvore enorme. "Sempre achei que aquela árvore era a minha mãe. Pelas raízes tão visíveis, tão fortes." 

Do cinema mudo a Olga Roriz 

Olhar-se no ecrã ou na tela é coisa que lhe faz impressão. "Eu tenho sempre medo destas coisas porque não me quero tornar bizarra. Não quero tornar-me, eu, Aldina, mais importante do que o meu trabalho. Há pessoas que adoram as minhas entrevistas mas não gostam do meu trabalho, por exemplo." 

Já viu o filme três vezes, mas nunca sozinha. Não é capaz. Aquilo que deu origem ao documentário, o encontro no Porto com Rosário Pedreira e Maria João Seixas, em Junho de 2007, foi também aquilo que deu origem ao disco "Mulheres ao Espelho", gravado em Dezembro de 2007, lançado em 2008 e que só agora vai estrear na Culturgest (dia 22, às 21h30). É do disco o fado escolhido para titular o filme, "Princesa prometida", onde Aldina escreveu: "Espelho meu que aconteceu/ do que é teu e do que é meu/ já não temos a certeza." 

Toda a história do filme, aliás, diz Aldina, "anda à volta da temática do disco." Do filme, Aldina espera que quem o vir retenha o essencial: "Que vale a pena tentarmos negociar as nossas revoltas com os nossos amores; que independentemente da nossa origem vale a pena manter sempre a consciência de classe, mas acreditando e fazendo o que está na nossa mão para melhorar a nossa vida e as dos que nos rodeiam; que a cultura e o conhecimento podem ser salvação para muitos males." 

Do disco, ao pô-lo em palco, deixará de fora os fados que não são criação sua, excepto um, "Não vou, não vou", de Lucília do Carmo. "Porque define todos os meus medos e toda a minha coragem." E abrirá a noite com "Lírio Quebrado", do seu primeiro disco, que tem a ver com os tempos em que trabalhou na Cinemateca e se apaixonou pelo cinema mudo. 

Com o espectáculo e o filme em estreia quase simultânea, vai já somando novos fados que lhe chegam. Amélia Muge prometeu-lhe um, Manuel João Vieira já fez dois (só música), Paulo de Carvalho gravou-lhe um original e José Mário Branco ofereceu-lhe, pela primeira vez, um fado seu, novo, com letra de Manuela de Freitas, "Apenas o Vento". "Eles sabem que eu adoro o vento. É das coisas que mais me acalma, como tudo o que é bravo, como o mar. Sou tão inquieta e tão agitada interiormente que é preciso algo mais forte para eu relativizar as coisas. Uma espécie de vassoura." 

Ela não planeia, mas as coisas vão acontecendo. Anteontem cantou nos Açores com António Zambujo (está a escrever para o novo disco dele); voltará ao Porto para cantar no Campo Alegre; em Junho, cantará no Castelo de São Jorge, em Lisboa, ao lado de Maria do Rosário Pedreira, Manuel Paulo e Nancy Vieira; já tem convites para cantar na "Festa do Avante!" e no Teatro Azul de Almada. "E em 2010 vai realizar-se o sonho da minha vida." Disse ao Jorge Salavisa que gostava muito que alguém da área do bailado desse corpo aos fados de "Mulheres ao Espelho". Esse alguém já existe e chama-se Olga Roriz. O espectáculo, "Aldina por Olga Roriz", estreia-se em Julho de 2010.

in jornal «Público», 16 de Abril de 2009

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

159ª sessão: dia 16 de Janeiro (Quinta-Feira), às 21h30


Na terceira semana de Janeiro, voltaremos a ver Aldina Duarte depois da sua aparição em Xavier para um pequeno fado vadio nas ruas de Lisboa, e saberemos das tentativas de José Régio em abrir uma produtora de cinema nos anos 20. Aldina Duarte - Princesa Prometida e A Glória de Fazer Cinema em Portugal vão ser a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Numa das biografias que escreveu para os Dias da Música de 2017, no CCB, Rui Vieira Nery debruça-se precisamente sobre a carreira e obra de Aldina Duarte, dizendo que "a sua paixão pela Literatura leva-a a aliar ao repertório musical tradicional dos grandes fados estróficos tradicionais uma escolha cuidadosa dos poemas que canta, sendo ela própria autora de muitas das suas letras, bem como de outras cantadas por outros fadistas destacados como Camané, Carminho, Ana Moura, Mariza ou António Zambujo, designadamente.

"Colabora frequentemente em projetos interdisciplinares que cruzam o Fado com outras expressões artísticas e culturais, em colaboração com personalidades como Pedro Mexia, José Tolentino de Mendonça, João Botelho ou Ricardo Araújo Pereira. É autora ela própria de diversos projetos de difusão do Fado, entre eles o ciclo de conferências-debates “A Cantar e a Contar”, realizado no Centro Cultural de Belém, ou as oficinas “Fado para Todos”, promovidas pelo Museu do Fado, e a série de entrevistas “Fados e Tudo”, em exibição online no site do mesmo Museu, tendo este último projeto dado origem a um ciclo de espetáculos no Teatro Municipal de São Luiz, sob a sua coordenação. Tem igualmente realizado conferências nos Festivais de Fado de Madrid, Sevilha, Bogotá e Buenos Aires. Da sua participação no cinema destacam-se o documentário Aldina Duarte: Princesa Prometida, do realizador Manuel Mozos, apresentado e premiado em diversos festivais de cinema nacionais e internacionais, e ainda a colaboração em Xavier, de Manuel Mozos, em A Religiosa Portuguesa, de Eugène Green e nos documentários Fado Celeste, de Diogo Varela Silva, e O Fado pelo Mundo – Aldina Duarte: Lisboa – Macau, este último produzido pela RTP."

Em 2011, numa entrevista publicada na revista Pública, Aldina Duarte é levada à infância por Anabela Mota Ribeiro, que cita uma cena do documentário que vamos ver e pergunta à fadista se ela e a mãe eram tratadas de forma diferente na casa da patroa, ela responde que "havia brinquedos que não tinha e que naquela casa havia, certo tipo de jogos. Poucos anos depois acabei por ter. A minha mãe leu num livro que era importante para o desenvolvimento intelectual de uma criança ter puzzles, fazer construções de Legos. Virou mundo para que eu tivesse isso. Da mesma maneira que me incutiu o gosto pela leitura. Achava que a salvação de um pobre era a inteligência e o conhecimento. 

"Acima de tudo tinha que ser leal à generosidade dessa patroa da minha mãe, para que pudesse estar ali. A minha mãe não tinha onde me deixar e não queria arriscar. Claro que, não vou mentir, aprendi coisas e sei que aquela marca também está no meu crescimento. Mas não tenho respeito nenhum por ela. Tenho gratidão."

Já sobre A Glória de Fazer Cinema em Portugal, e dissertando sobre o que será verdade ou mentira nessa curta-metragem, Manuel Mozos diz que "o filme, até agora, teve poucas projecções e, naquilo que me foi dado a entender pelas pessoas com quem conversei ou que me enviaram mensagens, realmente há pessoas que ficam na dúvida, não sabem o que é o verdadeiro, o que é o falso. Há outras que conseguem identificar mais facilmente. Há ali, também, camadas de informação que, eventualmente, para pessoas que tenham um maior conhecimento de cinema, servem para se poder perceber que há ali nomes que nunca existiram. Com um bocado de investigação a pessoa pode chegar à conclusão que aquilo que está no filme não foi bem assim ou não foi de todo assim. Mas aconteceu-me uma coisa engraçada na primeira projecção que o filme teve em Vila do Conde. À saída, uma rapariga, mas que lhe achei imensa graça, veio ter comigo e disse-me “você a mim não me engana. Uma daquelas senhoras que participa no filme como se fosse de há muitos anos, compro-lhe o peixe todos os dias”. Fiquei desarmado, mas isso foi o oposto. Houve, também, pessoas com algum conhecimento que me perguntaram, “mas o Régio filmou mesmo aquelas imagens”, ou, “nunca ouvi falar do nome Morais Abraão.” Jogo, no filme, com uma base verídica, como o que o motivou. A carta do Régio é um facto real, que estudou em Coimbra e que formou um grupo, Os ULTRA, com aquelas pessoas que foram mencionadas. Ele conheceu, realmente, o Manoel de Oliveira à saída do cinema Olympia, no porto, naquela data, através do Casais Monteiro. Mas há outras coisas que não são verdade. Ainda ontem estive com duas pessoas já de idade, amigas pessoais de José Régio, e para elas aquilo é um enigma. Ou seja, nunca houve menção à intenção de se fazer cinema por parte de José Régio e mesmo dos outros elementos do seu círculo de amigos, do ULTRA ou do Alberto Serpa." 

Até Quinta!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Cinzas e Brasas (2015) de Manuel Mozos



por Paulo Peralta

Cinzas e Brasas de Manuel Mozos é uma curta-metragem portuguesa de ficção e uma das que se encontra na Competição Nacional de Curtas-Metragens do IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente que decorre na capital até ao próximo dia 3 de Maio. 

Dulce (Isabel Ruth) é uma escritora que vive isolada no campo. Algures no tempo Dulce (Ana Ribeiro) conheceu Rui (Gustavo Sumpta), detido por um qualquer crime e sobre quem quis escrever um romance. 

Agora, largos anos depois de terem perdido contacto Rui, já em liberdade, volta para encontrar Dulce... por quem ainda tem uma tórrida atracção. 

O argumento de Luís Lopes leva o espectador a uma estranha viagem sobre a solidão, o desejo, a beleza, a loucura e os excessos. A "Dulce" interpretada por Ana Ribeiro aparenta ser uma mulher ambiciosa, alguém capaz e disposta a tudo para que os seus objectivos mais primários sejam satisfeitos e, no seu caso, estes prendem-se com a vontade extrema em alcançar fama e sucesso. Por sua vez a mesma "Dulce", agora interpretada por Isabel Ruth, é uma mulher por quem o tempo passou, alguém que nunca conseguiu - ou quis - estabelecer qualquer tipo de relação mais pessoal e que passou pela vida sem realmente a viver apenas cumprindo objectivos de interesses concretos. 

Agora que a vida parece dissipar-se muito rapidamente, "Dulce" regista uma solidão incomparável; vive só e não contacta com ninguém até que "Rui" surge novamente na sua vida. Mas aqui o espectador depara-se com a mais emblemática curiosidade desta curta-metragem ao constatar que ele se encontra exactamente da mesma forma como da primeira vez que "Dulce" o vira. Enquanto que os anos claramente passaram por ela e o envelhecimento seja notório, "Rui" é um homem com o mesmo olhar intenso pelo qual os anos não parecem ter surtido qualquer tipo de efeito. 

A conclusão imediata pela qual o espectador atravessa é que "Dulce" é uma mulher que ficou transformada pelos seus próprios desejos. Se inicialmente a beleza e a juventude eram aspectos e formas pelas quais poderia alcançar os seus objectivos - mesmo sem criar qualquer tipo de relação com os demais - com o passar do tempo e com o desvanecimento dos mesmos ela transforma-se numa mulher de certa forma afectada e traumatizada cuja latente solidão em que vive nada ajudam. Aliás, O passar dos anos e a solidão contribuem para que se senta a perder a noção da realidade, do espaço e dos momentos que atravessa. 

Algures no tempo "Dulce" despede-se de alguém despejando as suas cinzas na lagoa. Quem, não sabemos. Torna-se aliás indiferente na medida em que não vemos nela uma mulher afectiva mas sim alguém com desejos... Escreve e toma pequenas notas talvez para um eventual novo romance, mas poucos são os registos de que por aquela casa alguma vez tenha passado qualquer tipo de vida para além da sua. Se a dúvida existe de que a beleza - ou o seu desvanecimento - e a solidão a afectaram de forma provavelmente irrecuperável, a dança que enceta com "Rui" ao som de "La Folie" dos The Stranglers capta o melhor de todas as anteriores premissas... uma dança sedutora e cúmplice - talvez a única cumplicidade que ela alguma vez tenha estabelecido - onde a entrega é total. Terá sido este - por se encontrar detido e ser de certa forma um amor impossível - o único homem que alguma vez amou? 

Entre as brasas - o desejo ardente - e as cinzas - o apagar de uma vida - "Dulce" vive nas margens de uma lagoa como que numa espera de uma vida que não tem e de uma morte que será incerta, qual purgatório. 

Isabel Ruth é, para quem ainda tinha dúvida, uma força. A confiança com que agarra as suas personagens não tem limites e desde o primeiro instante percebemos que aquela mulher que interpreta é maior do que a própria vida - independentemente de concordarmos ou não com a forma como a vive. Despojada - ao que percebemos - voluntariamente de qualquer tipo e laços e ligações em nome de um sucesso obtido graças ao(s) seu(s) romance(s), a sua "Dulce" é uma mulher que vive numa margem entre o desejo e a amargura. Alguém que pode eventualmente ter sentido a necessidade de partilhar a sua vida com alguém mas que, ao mesmo tempo, percebe que ao fazê-lo iria "condenar" a sua total liberdade e objectivos. Enigmática e por vezes até cruel, Isabel Ruth transforma "Dulce" numa mulher assumidamente marcante cuja vulnerabilidade desconhecemos e cujo silêncio é a forma mais eficaz de comunicar mesmo quando as recordações insistem a reaparecer. 

Intensa e sedutora, a curta-metragem Cinzas e Brasas é um firme e criativo regresso de Manuel Mozos à direcção de uma obra de ficção e mais um excelente marco representativo de uma diva do cinema nacional como o é Isabel Ruth. 

in blog «CinEuphoria»

Solitarium (1996) de Manuel Mozos



por Fernando Magalhães

O maior “pecado” da pop continua a ser o de querer deixar de o ser. Rodrigo Leão insiste na menção a referenciais pop, em relação ao seu trabalho, mas a evidência mostra que a sua alma deriva hoje por outras frequências do espectro musical. Theatrum, segundo álbum com os Vox Ensemble, depois de Ave Mundi Luminar e do EP Mysterium, é o típico objecto que é fácil denegrir, sob as acusações de “pretensiosismo” e de acomodação a uma leitura simplificada da música clássica. 

Seria fácil classificar Theatrum como a mera procura do bonito e do politicamente correcto, com base em referências que vão de Michael Nyman a Mozart e Górecki. Ao invés, estamos perante algo mais do que simples teatro. Ao contrário de Ave Mundi Luminar, onde é por demais óbvia a sedução que a lógica das estruturas formais exerceu sobre Rodrigo Leão, em Theatrum percebe-se um arrebatamento e uma interiorização das formas “eruditas” que colocam a sua música acima, ou para além, da descodificação imediata das formas. 

A teatralização aqui é da ordem do drama, ou da tragédia, no sentido clássico grego, e de pulsações cuidadosamente revertidas para uma linguagem que se assume como liturgia. Com o Vox Ensemble e a ajuda do coro Ricercare juntou Rodrigo Leão uma tapeçaria de tristeza onde as formas clássicas se fundem com a artilharia gótico-industrial de uns In The Nursery (“Locus secretus”) e a computação tecnológica, aspecto no qual o seu trabalho se revela particularmente notável, seja na sequenciação dos “samples” percussivos ou ambientais, seja na simulação de mil e um arcaísmos, de que são exemplos os excelentes “Dies irae”, “O corredor” e “Contra mundum”. 

Theatrum despede-se e celebra o luto de uma música, a pop, em agonia. Ou de algo mais, na lamentação final, cantada em russo – “O novo mundo” – tal como no início, “In memoriam”, a bailar no som de sinos que sabemos serem os da loucura… 

16 de Outubro de 1996.

in blog «fmstereo»

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

158ª sessão: dia 9 de Janeiro (Quinta-Feira), às 21h30


A arrancar o ano da graça de 2020, prosseguimos a nossa retrospectiva dedicada a Manuel Mozos, com um mês em que além das duas últimas longas-metragens de ficção que realizou, 4 Copas (2008) e Ramiro (2017), veremos também curtas-metragens, documentários e videoclips seus. Assim, Solitarium (1996) e Cinzas e Brasas (2015) serão a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Ilustrando a sexta faixa do terceiro álbum de Rodrigo Leão com os Vox Ensemble, Theatrum, Solitarium marca a segunda colaboração entre Mozos e Leão, depois de Um Passo, Outro Passo, e Depois... Falando sobre essa primeira experiência nas lides das bandas-sonoras numa entrevista a Henrique Claudino, o músico disse que "foi a partir daí que eu me apercebi que, a partir de um computador, tinha um universo ilimitado à frente, podia gravar um piano, depois um violoncelo, um violino… e foi aí que eu comecei a ter mais vontade de compor em casa, com auscultadores, computador, sintetizador. Na altura foi o Paulo Abelho, meu companheiro dos Sétima Legião, que me ajudou a descobrir esse mundo. Apesar de não ser um crânio, com o mínimo, consigo arranjar um método de trabalho e gravar as ideias. A partir daí fiquei com uma vontade grande de fazer mais música para cinema. Não foram tantos os momentos como este, tirando os últimos cinco ou seis anos em que comecei a trabalhar mais em bandas-sonoras."

Em 2015, quando lhe perguntaram pelo que deve ter sido a milionésima vez se gosta da ideia de junção entre a realidade e a ficção, particularmente em Cinzas e Brasas, o realizador respondeu que "a mim agrada-me, não no sentido de querer brincar com as pessoas ou de estar a mentir descaradamente. Há, no entanto, uma intenção de tentar qualquer coisa que me parece divertida. O que realmente me interessa, e é o que a Ana me está a perguntar, é o de criar isso no espectador, ou seja, o próprio ficar intrigado e ir, por ele, a posteriori, saber mais sobre as coisas, sobre as pessoas, sobre os factos, se existiram mesmo. Usando exemplos concretos destes dois filmes, se terão existido o cinema Louxor em Paris ou o realizador Roger Léon. Há coisas que são verdade, claro. Se a pessoa se interessar, se achar interessante o filme, pode ir por aí e tentar ter outro conhecimento. Essa será, digamos, a minha intenção maior. Posso não conseguir, obviamente, mas a possibilidade do espectador ficar intrigado e querer, realmente, aperceber-se do que é verdade ou falso dentro do filme, me anima. Não quer dizer que em todos os meus filmes isso seja sempre tão óbvio. No caso do Cinzas e Brasas tem a ver, como disse, com o primeiro romance da Dulce, Campo de Sangue. Mas quanto aos argumentistas, no caso do Eduardo Brito, o autor do argumento do Glória de fazer cinema em Portugal, falei com ele, encontrámo-nos e a coisa foi-se desenvolvendo. Já com o Luís Lopes, o autor do argumento do Cinzas e Brasas, o argumento já estava escrito por ele, depois, adaptei-o em conversas e dizendo-lhe o que iria fazer, qual era a minha intenção em relação ao argumento que disponibilizava. Para ele, para o Luís, porque teve e tem uma relação muito particular com a Dulce, havia a intenção de não ser só um jogo com o primeiro romance da Dulce mas com a sua própria vivência e amizade com ela. Houve conversas com os três, não era uma coisa que a Dulce não soubesse ou que não estivesse de acordo. Foi uma espécie de brincadeira à volta do seu primeiro romance e dela própria. Obviamente que não se trata de um retrato da vida da Dulce."

Já em 2016, numa dessas sessões cineclubistas que fazem eco junto dos espectadores, Vera Bártolo escreveu para o Última Sessão que "na terça-feira da passada semana, dia 28 de Junho, esteve novamente em Tomar, a convite do CineClube de Tomar, o realizador Manuel Mozos, numa sessão em que foram exibidos três dos seus trabalhos.

Cinzas e Brasas (2015), uma curta de ficção filmada na aldeia dos Montes, concelho de Tomar, abriu as hostilidades e trouxe-nos uma história crua de uma vida marcada pelo alcançar de objectivos, pelo sucesso, que no fim não mais trouxe do que solidão, frieza e uma sobrevivência premente. É a história de Dulce, interpretada por Ana Ribeiro, na sua versão mais jovem e Isabel Ruth, na idade madura, uma escritora famosa para quem a vida foi um conquistar de metas, mas viveu esta mulher realmente, foi feliz? Não, e a Dulce madura é uma mulher marcada pela vida e solidão, a quem reaparece um homem do passado. E é entre cinzas e brasas que tudo culmina…

Até Quinta-Feira!

sábado, 4 de janeiro de 2020

Francesco, giullare di Dio (1950) de Roberto Rossellini



por José Oliveira

Na recente e revolucionária apresentação - uma velocidade, clareza e retaliação sem lugar para equívocos - que Abel Ferrara fez do seu último trabalho, o profético e guerrilheiro Pasolini, este fez saber que tinha acabado de assistir ao Messias de Rossellini, e que considerava tal realizador tão maluco como aquele sobre o qual fizera um filme. Mais ainda, segundo Ferrara, Pasolini achava o mesmo. Pode-se, para efeitos de constatação, evocar o período com Ingrid Bergman e os diversos milagres para alguns, patetices ou banalidades para outros. Entrar por aqui seria dividir o mundo entre os chamados conscienciosos e bem pensantes – logo os que fazem da boa imagem o credo capital – e os inocentes ou tontinhos que perante o terror da realidade bruta se abrem à fulminação de todas as possibilidades. Aqueles que já viram tudo e leram tudo e compreenderam tudo e os que estão permanentemente com sede e nada sabem. Aconteceu que numa guinada de última hora a Cinemateca Portuguesa trocou a Viagem em Itália por Francesco, giullare di Dio. Esse mesmo protagonizado por um grupo de benfeitores que idolatram a pureza de Francesco e o seguem até aos confins das suas descobertas e constantes ajustes, grupo que tanto está próximo do divino sublime como das macacadas circenses. Entre a terra e o céu, pela força do livre e belo fogo que urge atiçar, envoltos nos flocos de neve da inexplicável alvura, vão comunicar com os passarinhos, bailar mais leves que o próprio ar puríssimo dos ermitões, ser joguetes de gigantes infantes trogloditas e perdoar sempre; mas igualmente roubam pernas de porco para consolar estômagos profanos, beijam leprosos sem os limpar como os limparia Deus, excitam-se perante a aproximação feminina. Mas o tempo e a pregoada modernidade ainda não expurgaram tudo, mais de sessenta anos depois, muitos ainda bateram com a porta da Félix Ribeiro por tamanha beatice ou por tamanha, reforço, patetice; outros deixaram-se levar na tal maluquice que Rossellini e Pasolini por boa ventura comungaram, não presos a princípios oficiosos da religião ou da etiqueta mas sim, sem freios, na perene loucura e contradição que consiste entregar-se à infinidade de possibilidades e combinações da existência para tocar o essencial. Entre o credo e o desejo, vale a acção, protegida pelo amor, medida de todas as coisas, finalidade de toda a insurreição silente de Roberto Rossellini. A forma é pura, o conteúdo resvalante. 

in blog «raging-b»

Dá-me uma Gotinha de Água (2013) de José Oliveira



por José Lopes, Maria Petersen e Marta Ramos

Fui à fonte beber água 
Achei um raminho verde 
Quem o perdeu tinha amores 
Quem o perdeu tinha amores 
Quem o achou tinha sede 

Dá-me uma gotinha de água 
Dessa que eu oiço correr 
Entre pedras e pedrinhas 
Entre pedras e pedrinhas 
Alguma gota há-de haver 

Alguma gota há-de haver 
Para molhar a garganta 
Quero cantar como a rola 
Quero cantar como a rola 
Como a rola ninguém canta 

Algum dia em tendo sede 
Irei beber ao teu monte 
Agora a passo de roda 
Agora a passo de roda 
Vou beber a outra fonte 

Dá-me uma gotinha de água 
Dessa que eu oiço correr 
Entre pedras e pedrinhas 
Entre pedras e pedrinhas 
Alguma gota há-de haver 

Alguma gota há-de haver 
Para molhar a garganta 
Quero cantar como a rola 
Quero cantar como a rola 
Como a rola ninguém canta 

canção popular alentejana