sábado, 14 de março de 2020

Xavier (1991-2002) de Manuel Mozos



por João Palhares

Ainda bem que vimos a cópia de trabalho de Xavier em Novembro do ano passado, com as suas cruzes brancas em fundo negro, falhas sonoras e “bips” fugazes, como em sessão de meia-noite. Iluminou-nos em relação ao trabalho épico e hercúleo que Manuel Mozos teve, mesmo que apadrinhado por Paulo Rocha, para poder estrear o seu filme na versão que hoje vamos ver, “ripada” de uma passagem discreta mas muito importante na RTP 2, ainda com o logo em pontinhos brancos (2004-2007), cópia pirata e riscada que viajou de mão em mão até chegar até nós. As rugas são a pintura da sabedoria. Voltamos às trocas de cassetes e mix-tapes entre amigos no ciclo ou no secundário, às recomendações em carne viva seladas com passagens de cópias ou de originais. Voltamos aos anos 90, velados por um filme dessa década mas que só estreou na seguinte, numa cidade em que não foi exibido até quase duas décadas depois disso. O tempo funciona assim, nunca é tarde demais, não há oportunidades perdidas. X Nunca é tarde demais para rever material de uma ponta a outra, esquecer o guião, esquecer a rodagem, e vislumbrar consequências dramáticas inauditas num corte ou numa elipse milagrosos. Nunca é tarde demais para acordar para a vida depois de meses a penar pelas ruas de Lisboa, aprendendo com os erros trágicos dos outros e descobrindo que não se vive enredado em si mesmo ou que não se tem de carregar o peso do mundo às costas. Nunca é tarde demais para ouvir um “Eh pá, não leves a vida tão a sério!” ou ver a campa do zarolho De Toth, que nos interpela ainda em desafio e com um olhar penetrante e imponente do outro lado da vida, “DON'T BE CAREFUL, HAVE FUN. I DID.” Nunca é tarde demais para aprender que “a relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme.” E nunca é tarde demais para pedir uma mão aos amigos e ver se as coisas se resolvem, que isto tarda mas vem, até as estreias tardam mas vêm, os resultados tardam mas vêm. Num ano, em seis ou em onze, mas vêm. X Nos anos 80 e 90, mesmo depois disso, os miúdos também se fechavam em quartos no sétimo céu como o Chico de Charles Farrell, que diz à Diane de Janet Gaynor que “I work in the sewer – but I live near the stars!” Alguns desses se calhar viram o Xavier. Diz Manuel Mozos: “acho que para as pessoas mais novas a vida está complicada. Não que isso seja o principal no filme... No entanto, para mim ou para os meus amigos naquela altura, a realidade é que não sabíamos a que nos agarrar. O futuro era nebuloso. "No future". A maioria avança para qualquer lado, havia uma grande indecisão. Depois trabalhávamos em coisas como tirar fotocópias, descarregar caixas de bagaço, ser paquete de escritórios de advogados. Ou tirar cursos de inglês e de computadores. Mas estávamos motivados para escrever poesia ou fazer música...” Então Xavier, Hipólito, Rosa, Luísa, a irmã Luz e a dança da vida. Podiam ser outros, podem ser de carne e osso. O trabalho, as antenas, o dinheiro, as contas, as multas, os esquemas, a polícia e a choldra. Podem descomprimir disso tudo à noite gritando “TU GOSTAS É DE LEVAR NA PEIDA” ou “BRING ME THE HEAD OF ALFREDO GARCIA” aos golpes de karaté pelos parques de Lisboa, para pôr um sorriso na cara da Luísa de Sandra Faleiro. X Nos últimos meses vimos muita, muita coisa. Vimos mesmo de tudo, filmes e ainda outras coisas, que não são filmes (“Isso não é um filme,” responde Mozos a Miguel Gomes na entrevista publicada no catálogo do Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, «Manuel Mozos – Um Ponto de Vista»), da ficção ao documentário, da colagem de arquivo como puzzle ou como poema, cinema, televisão, videoclips, definição e ruído, estática, saltos, quebras, imagens arrastadas, ondas e vulcões, mares e ruínas, montanhas e becos, cinema falado e cinema mudo, voluntária ou involuntariamente que a projecção e as colunas também falharam, fez tudo parte da experiência, como num concerto antológico a que foram cinco ou seis pessoas e falhou tudo menos o ânimo, a resiliência e a paixão (“este Mozos é fabuloso, pá!” – Carlos Fontes, 2019), vimos parte substancial da obra completa de um cineasta que não teve receio algum das páginas brancas e abraçou a imprevisibilidade da vida e do trabalho, na vida e no trabalho, como um contratado muito inspirado e muito modesto da Poverty Row, Manuel Augusto Fernandez de los Mozos: Um Passo, Outro Passo e Depois... (1989, 60'); Xavier (1991-2002, 101'); Lisboa no Cinema – Um Ponto de Vista (1994, 55'); Solitarium (1996, 4'40''); Cinema Português ? (1996, 58'); José Cardoso Pires – Diário de Bordo (1998, 57'); Os Tristes Anos: 1945-1960 (1998, 59'); ...Quando Troveja (1999, 89'); Cinema – Alguns Cortes: Censura (1999, 70'); Crescei e Multiplicai-vos (2000, 15'); Erupção (2001, 28'); António Pinho Vargas – Notas de um Compositor (2002, 52'); Sobre o Mar (2003, 27'); Olhar o Cinema Português 1896-2006 (2006, 54'); Diva: Simplesmente uma Homenagem (2007, 48'); 4 Copas (2008, 104'); Aldina Duarte – Princesa Prometida (2009, 60'); Ruínas (2009, 60'); Tóbis Portuguesa (2010, co-realizado com Pedro Efe, 45'); Angelitos Negros (2010, 15'); Imagens do Bairro de Alvalade (2013, 27'); Cinema – Alguns Cortes: Censura II (2014, 39'); Cinema – Alguns Cortes: Censura III (2014, 46'); João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que eu Amei (2014, 75'); Cinzas e Brasas (2015, 21'); A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015, 16'); Ramiro (2017, 99'); Sophia, na Primeira Pessoa (2019).

quarta-feira, 11 de março de 2020

167ª sessão: dia 12 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


Para a sessão de encerramento do nosso ciclo Manuel Mozos, ameaçada mas não dizimada pela névoa cinzenta  e triste do Coronavírus, teremos o realizador em pessoa para nos falar sobre Xavier, exibido desta feita na versão que saiu nos cinemas em 2002, e para responder a todas as perguntas que possam ter surgido nos últimos meses com a visualização das muitas curtas, documentários e ficções que constituem a sua obra.

No catálogo editado pelo Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, o realizador conta ao crítico Miguel Gomes que "a rodagem do filme tinha sido adiada porque se chegou à conclusão que o dinheiro vindo do IPC não chegava para se fazer aquilo que eu desejava. Entretanto, houve uma remodelação no IPC e vários subsídios foram reavaliados, entre os quais o do Xavier. E nessa altura o João Pedro Bénard conseguiu uma co-produção com França. Já estávamos em plena rodagem quando nos apercebemos que, afinal, o produtor francês estava falido. O orçamento tornou-se impossível. O João Pedro tenta esticar o orçamento, tenta renegociar com o IPC e com as pessoas da equipa, há uma primeira paragem mas só no último dia de rodagem um actor não aparece e grande parte da equipa decide não existirem condições para se terminar a rodagem. Entretanto tinha cortado cenas do argumento. Tentámos reformular, cortar cenas e dias de rodagem... Mas nesse último dia, não deu mais. De manhã íamos filmar planos da cena da corrida de atletismo no Estádio Nacional e, à tarde, a última cena do filme, na prisão."

"(...) mas eu compreendo a atitude das pessoas... Nesse dia até estávamos esperançados que o produtor nos desse boas notícias, que chegasse dizendo que tinha arranjado dinheiro. Já havia semanas de atraso nos pagamentos, que tinha conseguido renegociar com a equipa. Nesse dia, quando chega, paga de facto, mas menos do que tinha combinado. As pessoas exaltaram-se e resolveram não trabalhar mais até ao momento em que tudo estivesse resolvido. Com alguns deles, ainda fomos fazer uns planos sem actores, depois fui para casa mas estava convencido que a coisa se iria resolver mais tarde ou mais cedo. E passou uma semana, depois outra, depois outra... Aquilo foi-se arrastando sem que o João Pedro Bénard chegasse a uma solução. Entretanto, o Luís Alvarães que estava em montagem do filme dele, também é prejudicado pelo episódio e obrigado a interromper o trabalho. Os filmes estavam a ser produzidos pela mesma pessoa e havia dinheiros que passavam de um para outro. O Alvarães e o João Pedro julgaram melhor gerir o pouco dinheiro que havia para tentar acabar os dois filmes, e eu achava que o melhor era terminar o filme do Alvarães como estava previsto. Enfim, acabou por não se terminar nenhum... (risos). Mais tarde, o Alvarães conseguiu acabar o dele, embora de modo inglório, passando directamente para cópia vídeo."

Sobre a personagem interpretada por Pedro Hestnes, diz que "(...) o Xavier não tem grandes referências afectivas e sente-se abandonado - embora isto seja de novo pouco racionalizado da minha parte -, e então procura uma ordem própria. Essa ordem é muito fechada e autista. Acho que o Xavier poderia vir a acabar como o Nogueira. O Xavier assume um peso muito maior do que todos os outros à sua volta. Embora os outros possam ter tantos problemas como ele. Acha-o um bocado idiota, ao tornar tudo tão pesado. Na construção da personagem, equacionamos a seguinte ideia: alguém que sente uma culpa que não é sua, embora ele pense que é. Há pessoas próximas de mim, e eu próprio, que por vezes tornam as coisas mais complicadas por terem uma consciência deturpada daquilo que são. Um amigo meu alemão, mais novo que eu, disse-me que sentia uma grande culpa pelo facto do povo alemão ter sido nazi. Teve que ir a Israel... (risos). O que achava piada na escolha do Pedro Hestnes era o seu lado hirto e a dificuldade de relacionamento. O Xavier é assim, não se descontrola muito, nem para a alegria nem para a tristeza, isso só acontece quando algo é irreversível como com a morte da mãe. Aí ele sentirá a impotência de não a ter podido salvar, de não ter feito mais por ela independentemente de o ter deixado no asilo... O Xavier não culpa a mãe pelo facto de o ter abandonado no asilo, culpa-se a si próprio. Agrada-me a ideia de alguém que julga a importância do mundo concentrada em si próprio."

Finalmente, e sobre as várias actividades praticadas por Xavier, diz que "(...) acho que para as pessoas mais novas a vida está complicada. Não que isso seja o principal no filme... No entanto, para mim ou para os meus amigos naquela altura, a realidade é que não sabíamos a que nos agarrar. O futuro era nebuloso. "No future". A maioria avança para qualquer lado, havia uma grande indecisão. Depois trabalhávamos em coisas como tirar fotocópias, descarregar caixas de bagaço, ser paquete de escritórios de advogados. Ou tirar cursos de inglês e de computadores. Mas estávamos motivados para escrever poesia ou fazer música..."

Até amanhã!

terça-feira, 10 de março de 2020

Sophia, na Primeira Pessoa (2019) de Manuel Mozos



por Joana Emídio Marques

A libertação de Sophia num documentário de Manuel Mozos 

Na reta final das comemorações do centenário da poeta surge o melhor e mais vivo objeto que esta maratona produziu: chama-se "Sophia, na Primeira Pessoa" e é um documentário de Manuel Mozos. 

O mar com que entramos nesta espécie de biografia poética de Sophia não é azul. É negro, largo e traz promessas sombrias. A luz será sempre filtrada por arestas de rochedos, árvores, nuvens. O Douro é negro também e de uma fonte decrépita corre apenas um fio de água. Atravessando as imagens, as eras e todo o cortejo de mortos ouve-se a voz da poeta: “em todos os jardins hei-de flor”. É promessa, mas também afirmação. Até nos lugares mais desérticos, mais inférteis ela há-de ter a sua voz, a sua palavra, ela há-de ser aquilo que nenhum discurso académico, teórico, museológico, grandiloquente poderá apreender ou determinar. Sobre si mesma, a ultima palavra será sempre a dela.

É assim, imensamente livre, viva, inteligente mas sombria e solitária que Sophia de Mello Breyner nos aparece neste documentário de Manuel Mozos todo feito com materiais de arquivo (fotos, cartas, velhas gravações de rádio e televisão, restos de outros filmes guardados no Anime) e que, neste ano de comemorações, o primeiro (talvez o único) gesto poético digno de uma poeta que nunca se cansou de falar de liberdade. Sophia, na Primeira Pessoa, teve estreia esta sexta-feira no DocLisboa, numa sessão apenas para escolas. Volta a passar um única vez no domingo, 27 de outubro, no cinema São Jorge, pelas, 16 horas. 

“Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real, um poema sempre foi um círculo traçado à roda de uma coisa. Um círculo dentro do qual o pássaro do real fica preso”, ouve-se explicar a poeta. A sua voz, as suas palavras; as recordações da criada Laura que lhe ensinou a Nau Catrineta, do avô que lhe lia sonetos de Camões e Antero, das muitas casas onde habitou, da asfixia da cidade, da sua relação com Homero, da poesia, dos segredos do mar que só os pescadores lhe ensinaram… A voz humana, a sonoridade de uma língua trabalhada para esticar para o infinito os seus limites, trabalhada para designar o que ainda não tem nome eis a grande linha de força deste filme que é também um gesto de liberdade e um exercício crítico prenhe e instigante de Manuel Mozos. 

Este documentário de escassos 56 minutos não se deixa levar pelo caudal de discursos académicos, oficiais que foram sendo proferidos ao longo deste ano e dos quais pouco ou nada ficará para a história. 
“Não queria fazer uma coisa definitiva mas dar pistas, criar no público o interesse em descobrir mais sobre a poeta, a mulher, a pessoa de causas. Por mim, o que fui lendo levou- me a perceber que esse lado solar de que tanto falam não corresponde à verdade, porque havia nela e naquilo que ela escrevia um lado de violência, de fantasmagoria, de pesadelo. Por muito cheia que fosse a sua vida há nela um lado sombrio, uma grande solidão que estão presentes nos seus poemas. Era uma pessoa muito contraditória e foram essas contradições que me interessou explorar”, diz o realizador, em conversa com o Observador. 
“Um dia mortos e gastos voltaremos a ser livres como os animais”, diz-nos o poema que ela recita com uma entoação que nos causa estranheza porque é declamatória. Mas é também um prodígio da articulação limpa das palavras, das sílabas. Como se Sophia quisesse chegar à mais ínfima tonalidade dos fonemas. Cada palavra é gerada para ser dita e é nessa musica efémera das palavras faladas e não escritas que se engendra a poesia. E aí, novamente Manuel Mozos releva uma grande sensibilidade ao deixar que seja a palavra falada a dominar o filme. Podemos esquecer-nos que um dia ela fixou tudo isto em livros e os livros parecem-nos, vistos daqui, apenas cemitérios mudos. 

Depois da morte da poeta em 2004, foram sendo produzidas dezenas de trabalhos, debitadas centenas de palavras, de opiniões, comentários, encómios. Criou-se uma outra Sophia cada vez mais distorcida e distante daquela que um dia viveu, escreveu e pensou. Torna-se e retorna-se aos lugares comuns: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Há uma espécie de acordo tácito em fazer de Sophia uma poeta pueril e fácil. Mas, na verdade, Homero nunca designou a cor azul, porque os gregos não tinham nome para esta tonalidade. O mar de Homero é sempre negro ou cor de vinho. O mundo grego é terrível e cruel, a musa ensina-lhe o canto que, no final, lhe “corta a garganta”. 

O grande espanto que nos causa este documentário é vermos como de entre congressos e panteões, tudo o que fazia falta a Sophia era que alguém a libertasse, lhe devolvesse a voz. O documentário de Mozos não recorre a nenhuma outra voz que não a da artista. Não há comentadores, especialistas, filhos, amigos. Não há ninguém a não ser ela: “Quem procura uma relação justa com o homem (…) é necessariamente levado a buscar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo”, ouvimo-la dizer, enquanto as praias do Algarve, onde ela tanto nadou, não são um bilhete postal, mas um lugar de faina, onde homens de rosto duro e curtido pelo sol se lançam ao trabalho. 

O filme que resultou de uma encomenda da RTP e da Comissão das Comemorações do Centenário de Sophia teve um orçamento limitado, como nos explica o realizador, mas esses limites foram usados para potenciar o trabalho. Assim, conta-nos Mozos: 
“Não fui filmar à Grécia, nem sequer ao Algarve, recorri a imagens que havia em arquivo, imagens não usadas de outros filmes que os realizadores gentilmente me cederam e dei-lhes uma nova vida”. 
O arquivismo é uma das fontes recorrentes de Mozos que, além de cineasta é arquivista no ANIM (Arquivo Nacional de Imagens em Movimento). ” No arquivo há coisas que têm uma vida obscura, coisas que não foram conhecidas ou foram esquecidas, apagadas, e eu gosto de trazê-las à luz”, afirma. Uma das preciosidades que encontrou no ANIM foi uma longa entrevista a Sophia feita pelo também poeta Fernando Assis Pacheco. Essa conversa nunca antes divulgada acaba por servir como fio condutor do filme. A escritora fala da sua infância e de sentir que “foi a poesia” que a criou. Vemos desfilar rostos antigos, quase todos de mortos, postais, cartas, bilhetes tudo grafado manualmente. O arquivo faz retornar esse passado que é tudo o que temos, fá-lo encontrar-se com o nosso presente para reclamar uma vida própria. Sem ele, sem aquilo que sobra da experiência dos dias, nada seria possível de criar. 

“Nada me consolará que Jorge de Sena tenha passado estes últimos anos longe de Portugal…” confessa Sophia, com uma voz já endurecida pelo tempo. Com esta frase, Manuel Mozos faz duas coisas: uma homenagem simples e subtil a Jorge de Sena, cujo centenário também se assinala este ano, e o facto de que esta data tem passado ao lado e ao longe dos discursos oficiais. 

“Hesitei em colocar este excerto” diz o realizador, “mas entre outras coisas houve uma grande amizade entre eles e eu queria também prestar uma pequena homenagem a Sena”. De facto, Sena continua a não habitar em Portugal, não obstante a sua obra poética, ficcional e estatística e poucos parecem reconhecê-lo como Sophia o reconheceu. De resto, o país é sempre uma fonte de desapontamento para a poeta. O documentário que nos dá a ver as várias idades da mulher e da poeta também nos deixa ver a sua progressiva desilusão com aquilo que ela chama de “manipulação, oportunismo e demagogia” dos partidos políticos que tomaram conta de Portugal depois do 25 de Abril. Quem não se cansa de repetir o poema sobre o “dia inicial e limpo” deveria ouvir o que ela dirá anos mais tarde. 

Há uma melancolia, uma perda irreversível que atravessam os filmes de Manuel Mozos e este não é exceção. Digamos que são duas melancolias que se encontram sob a luz velada das tílias (de que a poeta tanto gostava) e do tempo dentro e fora das casas. A casa é uma imagem e um tema recorrente para os dois artistas. A dada altura ouvimos a poeta dizer que um exterior das casas “é tão importante como o interior” porque ela precisa de ir à janela. E muitas vezes esta obra se debruça sobre janelas invisíveis para ver a cidade ensolarada, mas na qual Sophia sofria por não ver o mar, nem “o mudar das luas”. Aqui não há a luz do meio-dia mas sempre a do alvorecer ou do sol posto, Manuel Mozos rasgou nestes dias uma janela para Sophia respirar de novo, ela que um dia escreveu: “Ressurgiremos onde as palavras são o nome das coisas”. 

in jornal Observador, 26 de Outubro de 2019

Crescei e Multiplicai-vos (2000) de Manuel Mozos



por Miguel Gomes

Adaptado de um conto homónimo de Urbano Tavares Rodrigues, Crescei e Multiplicai-vos é a única curta-metragem ficcional de Manuel Mozos à data. A matriz neo-realista do texto original, uma abordagem mais complexa de um caso de incesto entre dois irmãos adolescentes num ambiente socio-económico degradado, é transposta para o filme com uma visível resistência do cineasta. De algum modo, essa é simultaneamente a força e a fraqueza do filme. Mozos não acredita nesta ficção e manifesta-o de uma forma tão ostensiva que a validade do projecto fica remetida à resposta de uma questão que só o espectador pode dar: será consequente tentar respeitar as linhas gerais do conto num argumento cinematográfico e, depois, filmar contra o próprio argumento? 

A uma primeira visão, estamos apenas perante uma péssima ilustração de uma narrativa extremamente simples. Planos gerais do bairro da Musgueira introduzem-nos o espaço (físico e social), depois é apresentado o casal (nesta versão não tão jovem como no conto) que se desloca à igreja, seguido do encontro com o padre que enuncia o conflito dramático – pretendem-se casar mas o padre compreende que se tratam de irmãos e, chocado, não o consente. O final é deixado em suspenso, com o percurso do padre pelo interior do bairro até se aproximar da casa dos irmãos e levantar os olhos para o céu. Ora, esta é uma péssima ilustração porque segundo os parâmetros convencionais de qualquer teledramático que se preze, falta a espessura psicológica às personagens, sente-se uma rigidez extrema na interpretação dos actores e na planificação do filme e ainda, para culminar, regista-se um emprego absurdo da música que oferece um complemento extra de ridículo à ficção. E, se nos ficássemos por aqui, não restariam dúvidas que Crescei e Multiplicai-vos se tratava de um indesmentível “turkey”, momento de absoluta inépcia cinematográfica. 

Se fosse o primeiro filme realizado por Manuel Mozos, certamente o ia colocar em apuros. Como não é, e já não pode existir inocência possível para quem conhecer a obra anterior, passamos directamente para um segundo nível de leitura, mais crível embora não menos tortuoso. E se Crescei e Multiplicai-vos fosse um pequeno apontamento paródico de releitura das convenções dos telefilmes e seriados televisivos de âmbito social? Então, teriam que se inverter as premissas de análise, revertendo o que julgávamos simplesmente ridículo numa (masoquista, é certo) experimentação de humor “trash”. Por exemplo, a apresentação da menina atirando a flor em direcção ao céu surgiria como paródia aos mais descabelados genéricos de telenovelas mexicanas. E a rigidez dos corpos dos actores imitada pelo próprio dispositivo formal, alternando primariamente planos do casal e do padre à medida que cada um fala, desmonta-se através da exposição da sua auto-consciência, algures entre Manoel de Oliveira (não estaremos muito longe de algumas cenas de Party) e Takeshi Kitano. Trata-se de uma rigidez de filme burlesco, essa mesmo que sempre explorou a desadequação entre os corpos e o mundo, entre as personagens e a ficção. No fundo, estas personagens paralisadas não estão distantes das várias estátuas que pontuam em fundo na igreja ou da gravura do Cristo na casa dos irmãos. A rigidez das leis – humanas ou divinas – fica assim paradoxalmente bem mais posta em causa do que se tivesse havido um tratamento tradicional e conforme da narrativa. 

Trata-se, contudo, de um jogo perigoso, este com que Manuel Mozos se diverte e pune simultaneamente. Por um lado porque está no limite da auto-complacência, é um exercício de estilo malandreco a brincar às escondidas consigo próprio. Por outro, porque estará sempre a meio caminho entre a primeira e a segunda leitura – mesmo que o autor mantenha que esta é uma versão provisória, destinada a passagem televisiva –, é um filme que habita um desconfortável limbo entre o embaraço e a provocação, o respeito e a irrisão, os arremedos de (má) consciência e o desejo de frivolidade.

in «Manuel Mozos - Um Ponto de Vista», Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, 2001

quarta-feira, 4 de março de 2020

166ª sessão: dia 5 de Março (Quinta-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão é dupla, já na recta final da maior retrospectiva alguma vez feita em Portugal à obra de Manuel Mozos. A primeira parte é Crescei e Multiplicai-vos, uma curta-metragem de 2000 com Carla Chambel e Fernando Luís, baseado num conto de Urbano Tavares Rodrigues com o mesmo nome. A segunda é o último filme de Mozos, Sophia, na Primeira Pessoa, colagem poética de arquivos pessoais e testemunhos públicos da escritora. Às 21h30 no auditório da Casa do Professor.

Sobre Crescei, e em entrevista a Miguel Gomes para o catálogo «Manuel Mozos - Um Ponto de Vista», publicado pelo Festival de Cinema Luso Brasileiro de Santa Maria da Feira, o realizador admitiu que "não acho que seja um filme demagógico. Poderia dizer que é um filme que daqui a vinte anos vai ser compreendido, mas não é verdade. É mauzote. No entanto, há meia dúzia de momentos que são conseguidos. É constrangedor porque o projecto não era meu, só intervim na fase de rodagem e, parcialmente, no casting. Mas não estou arrependido de o ter feito.

"(...) acho que fiz um filme mau. Existem alguns planos de que gosto mais: quando o casal espreita à porta, quando ela põe a cabeça para trás, quando estão fora da igreja, um ou dois planos do Fernando Luís e até o plano final que acho completamente... fora."

O ano passado, em entrevista ao site Comunidade, Cultura e Arte, Mozos falou sobre Sophia, na Primeira Pessoa, dizendo que "(...) apesar de em termos de realização eu ter tido um prazo relativamente limitado ― tive alguns meses para poder pensar o filme e fazê-lo segundo os compromissos que tinha com o centenário e com a própria RTP (este documentário foi feito para a RTP, partindo da comissão comemorativa do centenário do nascimento da Sophia e, portanto, o filme teria de estar terminado até à data da celebração, 6 de novembro) ― isso foi conseguido. No início, apesar de gostar e de conhecer relativamente a obra de Sophia, sobretudo enquanto poeta, havia muita coisa que eu desconhecia e, realmente, na investigação e pesquisa feita é que fui percebendo, conhecendo e aprendendo coisas que, se não fosse pelo filme, provavelmente ainda não conheceria. Como já disse, no início até se punha a hipótese de haver depoimentos de outras pessoas e assim, mas com o avançar da pesquisa é que fui começando a delinear o que é que o filme poderia ser. Ou seja, íamos montando o material que tínhamos e, à medida que encontrávamos sequências ou linhas que nos pareciam interessantes, íamos filmando, montando e definindo aquilo que iria ser o filme."

Já Joana Emídio Marques escreveu para o Observador que "depois da morte da poeta em 2004, foram sendo produzidas dezenas de trabalhos, debitadas centenas de palavras, de opiniões, comentários, encómios. Criou-se uma outra Sophia cada vez mais distorcida e distante daquela que um dia viveu, escreveu e pensou. Torna-se e retorna-se aos lugares comuns: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Há uma espécie de acordo tácito em fazer de Sophia uma poeta pueril e fácil. Mas, na verdade, Homero nunca designou a cor azul, porque os gregos não tinham nome para esta tonalidade. O mar de Homero é sempre negro ou cor de vinho. O mundo grego é terrível e cruel, a musa ensina-lhe o canto que, no final, lhe “corta a garganta”.

"O grande espanto que nos causa este documentário é vermos como de entre congressos e panteões, tudo o que fazia falta a Sophia era que alguém a libertasse, lhe devolvesse a voz. O documentário de Mozos não recorre a nenhuma outra voz que não a da artista. Não há comentadores, especialistas, filhos, amigos. Não há ninguém a não ser ela: “Quem procura uma relação justa com o homem (…) é necessariamente levado a buscar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo”, ouvimo-la dizer, enquanto as praias do Algarve, onde ela tanto nadou, não são um bilhete postal, mas um lugar de faina, onde homens de rosto duro e curtido pelo sol se lançam ao trabalho."

Até amanhã!

segunda-feira, 2 de março de 2020

UM CINEMA DE VERDADE

Linguagem cinematográfica: o jogo das múltiplas condicionantes 

Existem diversas condicionantes práticas e muito concretas que delimitam e condicionam o uso das ferramentas e dos instrumentos do cinema. A experiência é uma delas, embora ache que nada impede alguém sem grande experiência de fazer um filme. Mas conhecer a História do Cinema, conhecer os meios técnicos com que se trabalha (quer se trate de suportes digitais ou película, material de som), ter noções de montagem, saber o que é um plano, e o que é um plano colado com outro, o que é que isso proporciona, são tudo conhecimentos que funcionam eventualmente como mais-valias. A relação humana tem também a sua importância: em cinema nunca se trabalha sozinho, trabalha-se em equipas, mais pequenas, maiores, e tem que haver uma relação honesta e concertada com as pessoas que estão envolvidas no que se pretende filmar, e que posteriormente resultará num filme. A relação com o produtor, por exemplo, pode imediatamente fechar um bocadinho aquilo que o realizador idealizou, porque é nesta relação que se evidenciam as questões que têm a ver com meios de produção, onde se decide o nível de disponibilidade para a persistência, para ir mais fundo num determinado assunto. Mesmo o momento e o modo da difusão e exibição podem condicionar o trabalho de fazer um filme. Rapidamente o realizador se vai apercebendo que existe uma série de condicionantes que limitam aquilo que inicialmente pretendia fazer. Mas claro que também pode surgir o contrário, que é ter momentos mágicos em que aparece uma coisa inesperada e que realmente dá outra força ao filme. 

Tudo isto se convoca e altera no momento em que se filma, e está dependente daquilo que cada um escolhe como assunto a tratar (em documentário ou ficção). Se se pretende filmar um determinado acontecimento ou um episódio, ou se se quer ir filmar uma fachada de um prédio e o passar do tempo sobre essa fachada, a linguagem cinematográfica é convocada de maneira totalmente diferente. Ao mesmo tempo, se a 10 realizadores diferentes fosse dado o mesmo tema, e se eles nunca se encontrassem, provavelmente resultariam 10 filmes completamente diferentes. São coisas muito difíceis de definir. 

O jogo das condicionantes aplicado a um caso concreto: o documentário e a televisão 

No caso do documentário há um assunto que acho importante discutir a este nível: o facto de hoje em dia, para mim, ele estar demasiado formatado a modelos televisivos. Como tem pouca divulgação comercial e no cinema, os canais televisivos são a sua possibilidade de divulgação. E esses canais impõem certas regras, que podem ter a ver com a duração do filme, com formatos, até mesmo com a escolha do próprio suporte, que condicionam a realização do filme. Mesmo os próprios assuntos: os canais televisivos interessam-se talvez muito mais por coisas da actualidade, ou com contornos mais sociológicos. Lembro-me por exemplo de ter assistido a certas sessões de pitchings onde era óbvio que alguns projectos eram barrados porque não eram interessantes no contexto actual, do ponto de vista das televisões que a este nível funcionam como centros decisórios. 

Eu percebo que realmente se calhar não é possível toda a gente estar a filmar, mas acho que deste modo também se limitam em excesso algumas coisas que aparentemente podem não ser importantes num determinado momento, mas que um dia poderão vir a ser. O próprio filme considerado sem “interesse” – porque não é pertinente, ou actual – pode ser bem mais interessante em termos cinematográficos, do que aquele que se achou importante produzir, mas que nada tem de cinema. Acho que no documentário isto às vezes é um pouco confuso. Há muitas coisas tomadas como documentários que mais se parecem com reportagens ou com os antigos jornais de actualidades, que não têm um cunho daquilo que, na minha opinião, deveria ser o documentário cinematográfico. 

Mas acho que isto não se passa só ao nível do documentário, acontece também na ficção: há produtos que se percebe que são de televisão. E são feitos até com imensa qualidade, e têm méritos, mas são coisas de consumo imediato. São entretenimento, e terão o seu valor por isso mesmo, mas também não são mais do que isso. Não entram na categoria da obra de arte. 

O ponto de partida, ou de como os filmes se vão transformando 

Também não sei até que ponto é que realizadores ou filmes que pelo menos a partir de certa altura começaram a ser considerados obras de arte foram pensados para ser isso mesmo. Talvez fossem somente uma vontade de contar uma história através do cinema sem qualquer outra pretensão para além dessa. Há muitas coisas que podem não partir do realizador, e acabarem por se tornar grandes obras, e falo de encomendas, ou filmes feitos dentro de contratos com produtoras. De repente no meio disso pode aparecer um filme genial porque o realizador trabalhou como trabalharia nos outros filmes, acabando por catapultar o trabalho para a zona, digamos, da obra de arte, deixando o lado de entretenimento. Um filme como o Zidane, por exemplo, para mim é uma coisa que realmente só tem a ver com televisão. Mas acaba por ser um produto muito fora do vulgar. Aquilo é feito um pouco como se fosse um jogo de futebol só que em vez de estar a acompanhar a bola, se está sempre em cima de um determinado jogador, e com isso apercebemo-nos de que grande parte de um jogo é passado a olhar, à espera (mesmo eu, que gosto de futebol, e jogo ainda às vezes, não me tinha apercebido disto). Trata-se de um processo televisivo, embora consiga identificar raízes cinematográficas, como os filmes da Leni Riefensthalt, com a utilização de uma panóplia de câmaras para filmar um determinado objecto. E isto traz um outro problema que é o da classificação. Realmente, qual é o espaço daquele filme? Para mim é até muito curioso, porque trabalhando no ANIM, para catalogar o material, tenho que tomar decisões. Onde é que se põem certos objectos que são, como este, mais fora do comum? Julgo que mesmo na área do documentário há uma série de coisas muito diferentes. E por uma facilidade de linguagem há tendência para catalogar as coisas: é o western, um filme de aventuras, um melodrama, um thriller; um certo documentário é cinéma-vérité... mas para mim, o que eu acho mais interessante é ver o contrário dessa classificação, ou seja, conseguir ver que todos os filmes têm um carácter documental. 

Entre a ficção e o documentário: o filme e a sua época 

Por um lado não acredito no cinema como uma coisa da verdade. É sempre uma coisa da encenação. Ao colocar a câmara num certo sítio já estou a delimitar. Não acredito no “cinema-verdade”, não acredito que as coisas acontecem e nós estamos a captar o real. Acho que nunca é bem o real. Mesmo que atirasse uma câmara ao ar, e donde ela caísse filmava, mesmo isso implica uma acção, quer dizer, não é a vida em si. Por outro lado mesmo os filmes que estão no tal campo do entretenimento, para mim documentam a sua época. Mesmo aquilo que está ultra-encenado acaba por transmitir qualquer coisa de uma época e eu acabo por encontrar a arquitectura de uma cidade, ou por ver a maneira como as pessoas se vestem, os costumes, certas tradições, o que é que comem, e portanto, mesmo que aquilo seja tudo encenado, também há um lado que não está a fugir completamente ao real. Mesmo as coisas mais mirabolantes do cinema fantástico estão contaminadas pelo real. Tal como o oposto, ou seja, no documentário, para mim a colocação da câmara num sítio já está a deturpar esse real. E a própria película está a passar por um lado químico, no mínimo, que já vai refractar a realidade (mesmo nós, a nossa visão, ou os sentidos em si não nos possibilitam captar tudo). Por enquanto as ficções que fiz são muito centradas em Lisboa, para deixar alguma coisa do tempo em que estou a filmar a própria cidade. E isso é deliberado. Mas nem sequer obedeço à geografia da cidade. Na última ficção que fiz havia um personagem que saia de Alfama, e já estava no Lumiar a apanhar o Metro para ir para Caselas onde não há Metro. Tento transformar a cidade num cenário. E não me interessa obedecer ao seu lado realista nesse aspecto, interessa-me sim que esse pedaço de Alfama, do Lumiar ou de Caselas, um dia seja reconhecido por alguém que possa assim ver como eram as casas desses bairros. Ou seja, em vez de estar sempre a filmar o mesmo bairro, prefiro mostrar coisas diferentes. Do mesmo modo, nos documentários eu assumo que tudo está a ser um bocado encenado, não quero dizer que aquilo é a verdade de qualquer coisa. 

Em termos de documentário, fiz sobretudo biografias, ou coisas em que usei materiais de arquivo. Portanto, não tenho o tipo de relação com as coisas que tem a maioria dos documentaristas portugueses. Coisas como a análise do bairro não sei quê, ou a comunidade tal que vive não sei onde... acho óptimo que se façam esses filmes, mas como eu acho que já há pessoas a trabalhar sobre isso, e que é o que lhes interessa, eu tento explorar outras coisas que a mim me interessam, mesmo que não sejam coisas tão obedientes aos cânones do documentário, mas que fiquem eventualmente como retrato de uma época. 

Nas biografias do José Cardoso Pires ou do Pinho Vargas tratei uma época da vida deles, e não fugi a isso, mas nos outros servi-me muito de material de arquivo, e neste que estou a fazer agora, e que é talvez o mais “livre”, a minha ideia é contaminá-lo com uma série de coisas que lhe trazem um lado mais artificial. Ou seja, vou tentar jogar com efeitos de encadeados e sobreposição de imagens, pôr imagens fotográficas e fílmicas de arquivo e sons, fugindo a esse lado, digamos, mais verdadeiro do documentário que realmente não é a coisa que eu acho mais interessante. 

Um percurso de experimentação e recolha. 

Eu comecei por trabalhar em ficções. E acabei por fazer documentários um pouco por ter tido um problema com um dos meus filmes. E grande parte dos filmes que fiz até hoje passam por ser propostas, quando não encomendas mesmo, que não partiram de mim. E o que para mim acabou por ser interessante é que, através de filmes cujo assunto não me interessava tanto, consegui ter a possibilidade de experimentar certas coisas. Quer seja em termos técnicos, quer, como no caso das ficções, em termos de direcção de actores. 

Portanto, muitas das coisas que aceitei fazer, fiz porque me agradava experimentar uma certa coisa. Nunca me interessou realmente ter um contrato com uma produtora, e fazer por exemplo publicidade, ou trabalhar para um canal televisivo, e se calhar posso viver pior, mas sinto-me mais à vontade com os filmes, e com as pessoas com quem trabalho. Tenho mais liberdade para experimentar. 

Por outro lado nunca fiz um filme de 2 horas, não arrisquei nesse sentido. Mas guardo aquilo que faço, fico com os materiais do que filmo e às vezes capto coisas que sei que não vão ser usadas naquele trabalho específico, só para ficar com elas. Por exemplo, no documentário em que estou agora a trabalhar era óbvio que não ia poder fazer um filme com aquele material todo. Mas isso não me impediu de filmar e de experimentar coisas que me interessavam mesmo sabendo que não ia usá-las na montagem. 

Quase todos os dias tenho a possibilidade de ver mais um filme que não conhecia, no meu trabalho no ANIM. E como os vejo muitas vezes, acabo por comparar os materiais todos, de cada filme. Às vezes é um bom pincel... mas como gosto de fazer aquilo. Mesmo quando acho os filmes bastante fraquinhos, tento ver as qualidades que podem ter. A cada visionamento do filme tento aperceber-me de mais qualquer coisa. O que, para mim, acaba por ter alguma graça: reparar nos tiques de certos actores, ou perceber porque é que um realizador decidiu cortar num certo ponto. É uma grande vantagem quando quero trabalhar numa coisa minha, e quero recorrer a material de arquivo. É muito bom já ter um conhecimento razoável e ter já clara a hipótese de utilização de certas imagens, quando estou a pensar num projecto. 

Há uma grande vantagem em ter alguma familiaridade com os filmes portugueses. Estar perto deles e poder vê-los. Para além disso, gosto de poder continuar a surpreender-me, e a encontrar coisas novas nos filmes que vou vendo ou revendo. Por exemplo, hoje vi o filme que estou a trabalhar neste momento, e que nunca tinha visto, chamado Perdeu-se o Marido. É um filme de ’57, uma comédia banalíssima. Tem alguns momentos engraçados, graças aos actores, mas o que me surpreendeu bastante ao vê-lo foi o haver uma série de imagens – que eu não fazia ideia – de exteriores de Lisboa. E surpreendeu-me porque não era muito habitual na época filmar-se em exterior (e o filme de facto é praticamente todo feito em interior). Mas pude ver por exemplo a Baixa, e que era um pouco a Baixa que eu conheci quando era miúdo, com muitas lojas e cafés. Ou o Hospital de Santa Maria que deveria ter sido inaugurado próximo daquela época, ainda sem nada à volta, uma coisa no meio do descampado. Há assim esse tipo de coisas que ainda me animam e me entusiasmam nestas coisas. Confesso que não acho o cinema português nada excepcional, mas acabo por poder encontrar, mesmo em filmes que eu não acho particularmente bem conseguidos, pequenos pontos de interesse. Seja porque têm momentos em que apanham a arquitectura da época ou certas tradições, certos costumes, certos usos, e isso eu acho muito interessante. 

Processo de trabalho: a preparação e o improviso

Em Portugal estamos muito condicionados ao subsídio do Instituto, temos que apresentar as coisas de uma determinada maneira. E há logo bastantes diferenças com o que temos de apresentar para os concursos de documentário e de ficção. Nos concursos de ficção é necessário apresentar um argumento, temos que ter uma história contada ali no papel e depois o filme será mais ou menos aquilo que ficou escrito. No documentário isso é sempre um pouco mais aleatório porque às vezes há coisas que dependem de imprevistos. Portanto, eu não vou escrever o que é que um fulano que eventualmente quero entrevistar vai dizer. Sei que quero que ele me responda a certas coisas, mas não sei o que é que ele me vai responder (como nos diálogos de uma ficção). E o facto de termos que entregar estas coisas já é um bocadinho limitativo. Posso ter uma ideia para uma ficção, ter tudo na cabeça e não querer ter nada no papel. Essa era uma experiência que eu gostava de um dia poder fazer: escolher actores, e com a própria equipa, o filme ir-se fazendo. Ter uma ideia mas nada em concreto. Ora, isto é muito complicado, porque ou seria por muita carolice dessas pessoas todas (e depois logo se veria o resultado) ou então logo à partida o produtor – mesmo que fosse eu próprio – considerava tudo aquilo um bocado disparatado, diria que nunca mais íamos sair dali. Era preciso um domínio muito grande das coisas para que elas realmente funcionassem desse modo. Julgo que há realizadores que conseguiram trabalhar sem ter guiões, tinham uma grande confiança nas equipas, e vice-versa, as pessoas com quem trabalhavam tinham também confiança neles. Conseguiram partir assim, um bocado para o vazio. Mas gosto de ter as coisas bem preparadas. Gosto de ter muito tempo para preparar uma coisa e depois poder então improvisar sobre isso. E ser possível eu próprio ficar surpreendido com o que me está a ser dado. De repente ficar arrebatado por uma coisa de que não estou à espera vinda do actor, ou de repente haver uma luz magnífica, ou surgir alguém no écran que eu não contava. Agora, pelo menos nas ficções, temos o video assist, e estamos ali um bocado a controlar as coisas. Mas eu muitas vezes não o ligo. Gosto muito mais de estar a ver. Até porque, como muitas vezes acabo por trabalhar na montagem, acho divertido reparar em coisas que não tinha notado. 

No filme sobre o António Pinho Vargas as coisas estavam bastante marcadas porque ia fazer uma homenagem à obra dele. E então tinha que acompanhar os concertos, e não podia fugir às peças, tinha que respeitar as datas dos concertos. No caso do filme sobre o Cardoso Pires passou-se um bocado o oposto. Primeiro porque ele já estava bastante doente e portanto havia dias em que a equipa estava toda preparada, encontrávamo-nos com ele, e a ele depois não lhe apetecia filmar. A nível de produção foi complicado porque uma coisa que estava para ser feita em 3 semanas acabou por se arrastar por mais de 3 meses de filmagens. Isso levou a que, por exemplo, a fotografia do filme fosse feita entre 5 pessoas. Mas ganhava-se sempre qualquer coisa com isto. Ganhámos tempo para pensar as coisas, e pude ter luzes diferentes do dia (embora não quisesse enfatizar demasiado isso). Se fosse naquelas tais 3 semanas em que estava previsto, era Outono e a luz até não estava má, mas assim ganhei nuances. E o próprio Cardoso Pires estava diferente, ao longo deste tempo. De qualquer forma houve essa liberdade, de não termos que filmar só porque estava previsto, fizemos as coisas sem muita pressão, e as coisas não ficaram excessivamente esquematizadas, e programadas. 

A força de um primeiro impulso 

Quando comecei a trabalhar tinha coisas que fui perdendo, umas para o bem, outras para o mal, acho que é um bocado o que acontece com toda a gente. Perdi um lado mais impulsivo, mais ingénuo, mas ao mesmo tempo de maior risco e empenho. E com o tempo ganha-se outra coisa, mais experiência, mais saber técnico, mas também, eventualmente, mais desilusões, mais amargura e desconfiança. Mas em todos os momentos para mim sempre foi importante haver verdade naquilo que estava a fazer. Partir de uma premissa de verdade para com o que queria fazer. E acho que isso realmente é talvez o mais importante, acreditar-se no que se está a fazer e ser-se verdadeiro. Tentar aprender e conhecer, sem fechar as coisas. Há uma enorme tendência para julgarmos que somos os únicos e que só nós é que fazemos bem, o que é muito falso. Eu acho que é muito importante a força de querer fazer uma coisa. E acreditar que se pode fazer. Portanto, eu acho que o mais importante é a verdade que cada um tem para fazer cinema. 

Na minha trajectória, trabalhei muito sobretudo na área de montagem, e trabalhei com realizadores mais velhos, mais experientes com quem aprendi muita coisa. Mas a partir de certa altura o que eu achei mais interessante foi poder aprender com os novos. Acabei por fazer praticamente só primeiras obras ou projectos não tão poderosos em termos de produção. Acho que foi para poder voltar a sentir essa força e essa vontade que se tem muito no início, e que eu acho fantástica e que infelizmente depois – embora não seja para toda a gente – se acaba por perder um pouco. E apesar da falta de experiência, senti ali um certo não saber que achei e acho interessante. Porque às vezes é por aí que se podem abrir novos caminhos, formas de ver coisas que de outro modo já estão excessivamente estilizadas e marcadas, demasiado rígidas. Eu acho que o que importa é esse lado de força e de verdade para fazer cinema.

retirado do catálogo do Panorama - Mostra do Documentário Português de 2008

Manuel Mozos