Na segunda semana de Julho, e com os termómetros a ultrapassar em muito os trinta graus, também sobe a temperatura no nosso ciclo dedicado à obra de Luis Buñuel Portolés no México. Veremos Rosita Quintana a endoidecer meio mundo com a lábia e as pernas, numa dança frustrante e mais prazerosa e sedutora por ser frustrante. O filme é Susana, o ano é 1951, o local é a Casa dos Crivos. Esperemos que as máscaras aguentem.
Na sua autobiografia de 1982, Mon Dernier Soupir, e referindo-se aos acontecimentos de 1950, o realizador escreve com a sua modéstia habitual que “nesse mesmo ano, realizei Susana, um filme perfeitamente rotineiro sobre o qual não tenho nada a dizer. No entanto arrependo-me de não ter forçado a caricatura do final feliz; mesmo hoje me preocupo que alguém possa levar aquele final mesmo a sério. Lembro-me de uma das primeiras cenas, quando Susana está na prisão, e em que o guião requeria que uma aranha gigante rastejasse para trás e para a frente na forma de uma cruz ao longo das sombras projectadas pelas grades da cela. Quando pedi uma aranha, o produtor disse que não tinha nenhuma. Irritado, arranjei-me no entanto sem ela, quando um homem dos adereços me disse que tinham mesmo uma aranha gigante totalmente a postos numa jaula. O produtor tinha mentido simplesmente porque pensava que a aranha nunca iria fazer o que eu queria, e não queria ficar sentado a ver o dinheiro acabar enquanto eu me punha a fazer um brilharete à frente dele. Surpreendentemente, quando abrimos a porta da jaula e a espicaçámos com um pau, ela rastejou imediatamente pelas sombras exactamente como eu tinha planeado, e a tomada toda levou menos de um minuto.”
Em Da Vida e Obra de Luis Buñuel, publicado no catálogo do Ciclo "Luis Buñuel" de 1982 na Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa escreveu que "Susana foi um dos raros filmes de Buñuel exibidos em Portugal nos anos 50, ao que parece sem qualquer objecção por parte da censura (que nessa década proibiu Los Olvidados, Subida al cielo, El, Cela s'appelle l'aurore, Nazarín e La fièvre monte à El Pao). Que se saiba, nenhuma censura de nenhum país levantou problemas à exibição deste filme. Ora, paradoxalmente, esta é das obras mais subversivas de Buñuel, e Susana a primeira figura da linhagem erótica que, no futuro, daria La Joven, Viridiana, Le journal d'une femme de chambre, Belle de Jour, Tristana, Cet obscur objet du désir.
"Esta tolerância com Susana não se deve a qualquer liberalismo de momento ou a distracção dos censores. Deve-se à suprema habilidade de Buñuel no uso da "antífrase", ou seja em construir um filme cujo texto diz exactamente o contrário do seu contexto. Para o espectador desprevenido ou inocente (e os censores não costumavam ser particularmente argutos) não há filme mais moral: uma não casta Susana (Susana, A Perversa, foi o título do filme em França) tenta fazer o mal numa santa e unida família. Consegue fazer vacilar muita gente, mas no fim a sua perversidade é descoberta e castigada e a paz e a harmonia voltam a reinar. O bem triunfa sempre. A moral também. Só que todos os substantivos e adjectivos de conotação ética usados neste parágrafo (moral, casta, perversa, mal, santa, unida, castigada, paz, harmonia, bem) são a colocar com todas as aspas possíveis, porque tudo é o contrário do que parece ser. Talvez não haja na história do cinema, ou na história de qualquer arte, muitas fintas à censura tão hábeis como Susana, outra das obras culminantes de Buñuel."
Já Jacques Lourcelles, no seu Dicionário, diz-nos que Susana é o "quarto filme mexicano de Buñuel, rodado mesmo a seguir a Os Esquecidos. Neste período difícil da sua carreira, Buñuel tem de utilizar os truques e o saber-fazer de um realizador hollywoodiano para se conseguir exprimir. Aqui manipula um género convencional da altura e do país onde trabalha - o melodrama erótico-religioso - para lhe trocar as voltas e lhe alterar subtilmente o sentido. Longe de ser uma narrativa edificante, a história de Susana prova pelo contrário a força devastadora do erotismo, que pulverizaria as virtudes e a ordem burguesas sem a intervenção final da polícia e sobretudo a regra sacrossanta do final feliz. O melodrama desvanece para dar lugar a uma comédia sardónica, um jogo de massacre, um teatro de fantoches para adultos em que o espectador se regozija em antecipação com os golpes sofridos pelas personagens, perturbados pela presença de Susana. A fidelidade do autor aos seus temas, o seu rigor totalmente clássico, uma ironia subjacente mas nunca resvalante perfazem uma obra impactante e de uma juventude deslumbrante. Por ser sem ambição aparente, pode-se julgá-la menor; na verdade ostenta as marcas da perfeição. Como muitos cineastas da sua geração, Buñuel aprendeu na sua segunda pátria mexicana que a liberdade de expressão dele repousava antes de tudo na sua habilidade de gozar com o mundo, a lidar com as falsas aparências e a alcançar assim, por vias travessas, o seu verdadeiro público."
Até Quinta!
Na sua autobiografia de 1982, Mon Dernier Soupir, e referindo-se aos acontecimentos de 1950, o realizador escreve com a sua modéstia habitual que “nesse mesmo ano, realizei Susana, um filme perfeitamente rotineiro sobre o qual não tenho nada a dizer. No entanto arrependo-me de não ter forçado a caricatura do final feliz; mesmo hoje me preocupo que alguém possa levar aquele final mesmo a sério. Lembro-me de uma das primeiras cenas, quando Susana está na prisão, e em que o guião requeria que uma aranha gigante rastejasse para trás e para a frente na forma de uma cruz ao longo das sombras projectadas pelas grades da cela. Quando pedi uma aranha, o produtor disse que não tinha nenhuma. Irritado, arranjei-me no entanto sem ela, quando um homem dos adereços me disse que tinham mesmo uma aranha gigante totalmente a postos numa jaula. O produtor tinha mentido simplesmente porque pensava que a aranha nunca iria fazer o que eu queria, e não queria ficar sentado a ver o dinheiro acabar enquanto eu me punha a fazer um brilharete à frente dele. Surpreendentemente, quando abrimos a porta da jaula e a espicaçámos com um pau, ela rastejou imediatamente pelas sombras exactamente como eu tinha planeado, e a tomada toda levou menos de um minuto.”
Em Da Vida e Obra de Luis Buñuel, publicado no catálogo do Ciclo "Luis Buñuel" de 1982 na Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa escreveu que "Susana foi um dos raros filmes de Buñuel exibidos em Portugal nos anos 50, ao que parece sem qualquer objecção por parte da censura (que nessa década proibiu Los Olvidados, Subida al cielo, El, Cela s'appelle l'aurore, Nazarín e La fièvre monte à El Pao). Que se saiba, nenhuma censura de nenhum país levantou problemas à exibição deste filme. Ora, paradoxalmente, esta é das obras mais subversivas de Buñuel, e Susana a primeira figura da linhagem erótica que, no futuro, daria La Joven, Viridiana, Le journal d'une femme de chambre, Belle de Jour, Tristana, Cet obscur objet du désir.
"Esta tolerância com Susana não se deve a qualquer liberalismo de momento ou a distracção dos censores. Deve-se à suprema habilidade de Buñuel no uso da "antífrase", ou seja em construir um filme cujo texto diz exactamente o contrário do seu contexto. Para o espectador desprevenido ou inocente (e os censores não costumavam ser particularmente argutos) não há filme mais moral: uma não casta Susana (Susana, A Perversa, foi o título do filme em França) tenta fazer o mal numa santa e unida família. Consegue fazer vacilar muita gente, mas no fim a sua perversidade é descoberta e castigada e a paz e a harmonia voltam a reinar. O bem triunfa sempre. A moral também. Só que todos os substantivos e adjectivos de conotação ética usados neste parágrafo (moral, casta, perversa, mal, santa, unida, castigada, paz, harmonia, bem) são a colocar com todas as aspas possíveis, porque tudo é o contrário do que parece ser. Talvez não haja na história do cinema, ou na história de qualquer arte, muitas fintas à censura tão hábeis como Susana, outra das obras culminantes de Buñuel."
Já Jacques Lourcelles, no seu Dicionário, diz-nos que Susana é o "quarto filme mexicano de Buñuel, rodado mesmo a seguir a Os Esquecidos. Neste período difícil da sua carreira, Buñuel tem de utilizar os truques e o saber-fazer de um realizador hollywoodiano para se conseguir exprimir. Aqui manipula um género convencional da altura e do país onde trabalha - o melodrama erótico-religioso - para lhe trocar as voltas e lhe alterar subtilmente o sentido. Longe de ser uma narrativa edificante, a história de Susana prova pelo contrário a força devastadora do erotismo, que pulverizaria as virtudes e a ordem burguesas sem a intervenção final da polícia e sobretudo a regra sacrossanta do final feliz. O melodrama desvanece para dar lugar a uma comédia sardónica, um jogo de massacre, um teatro de fantoches para adultos em que o espectador se regozija em antecipação com os golpes sofridos pelas personagens, perturbados pela presença de Susana. A fidelidade do autor aos seus temas, o seu rigor totalmente clássico, uma ironia subjacente mas nunca resvalante perfazem uma obra impactante e de uma juventude deslumbrante. Por ser sem ambição aparente, pode-se julgá-la menor; na verdade ostenta as marcas da perfeição. Como muitos cineastas da sua geração, Buñuel aprendeu na sua segunda pátria mexicana que a liberdade de expressão dele repousava antes de tudo na sua habilidade de gozar com o mundo, a lidar com as falsas aparências e a alcançar assim, por vias travessas, o seu verdadeiro público."
Até Quinta!
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