quarta-feira, 22 de julho de 2020

171ª sessão: dia 23 de Julho (Quinta-Feira), às 21h30


Esta semana veremos um filme para que Buñuel tinha as máximas esperanças mas as viu goradas por falta de tempo e de dinheiro. É uma adaptação de um romance de Guy de Maupassant, chama-se Uma Mulher sem Amor e é a nossa próxima sessão na Casa dos Crivos.

No seu livro sobre Luis Buñuel, Bill Krohn escreve que "La hija del engaño foi feito tão rápido que Buñuel estava limitado a rodar apenas certos ângulos porque o cenário não tinha sido terminado, mas para Una mujer sin amor (1951), baseado no romance de Guy de Maupassant, Pierre et Jean, ele tinha cenários bastante elaborados. Mais tarde chamou a este o seu pior filme, indicando que tinha altas esperanças para ele, que foram provavelmente as que Maupassant expressa na sua introdução: mostrar como se ama, como se odeia e luta em cada meio social, e as lutas dos interesses burgueses - interesses de dinheiro, família e política.

"Mesmo que Una mujer sin amor tenha ficado aquém das intenções de Buñuel, é um excelente melodrama. Ele transportou a história para o México moderno, com os seus costumes patriarcais duradouros, onde fazer uma heroína de uma mulher infiel era consideravelmente mais subversivo do que teria sido em França.

"Rosario Granados é a protagonista como Rosario, a bela mulher de Carlos Montero (Julio Villareal), um antiquário que é, também ele, um bocado como uma antiguidade. Quando o filho Miguel (Xavier Loya) foge de casa, um engenheiro elegante, Julio Mistral (Tito Junco), trá-lo de volta. Julio torna-se o amante de Rosario mas ela recusa-se a partir com ele. Anos mais tarde, Miguel e o irmão Carlos, Jr. (Joaquín Cordero) tornam-se inimigos quando Julio morre numa terra longínqua e deixa a sua fortuna a Carlos, Jr. Consumido de inveja, Miguel descobre que Carlos, Jr. era o filho de Julio. Depois da morte de Carlos, Rosario diz aos filhos que viveu uma vida sem amor pelo bem deles. Reconciliado com ela e com o irmão, Miguel parte para uma terra distante."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "de todos os filmes de Buñuel (ou, pelo menos, dos que assinou) Una Mujer Sin Amor, segunda produção de 1951 (cf. ficha sobre La Hija del Engaño) e segundo filme produzido por Kogan (a inolvidável Susana foi o primeiro), é sem dúvida o menos conhecido e o menos comentado. Foi a única obra de Buñuel que não teve distribuição comercial fora do México (nem sequer em 1966, quando, como noutras fichas já disse, se trouxeram à Europa todos os seus filmes mexicanos que em devido tempo não ultrapassaram as fronteiras do país de origem).

"Até aos anos 80, as suas apresentações públicas fora do México, limitaram-se a retrospectivas em Cinematecas e festivais. Só nesta década, a partir de uma cópia conservada, (o negativo ardeu no incêndio da Cinemateca Mexicana em 1982) o filme foi mais divulgado.

"Graças a Deus, diria Buñuel em dias de invocar o Altíssimo para tais coisas. Porque mais ainda do que outros "filhos" mal-amados, sempre disse "cobras e lagartos" desta obra, «sem dúvida o meu pior filme», escreveu nas memórias. Dessa opinião parecem comungar os comentadores que o viram. La Colina e Turrent na tão citada entrevista, dizem-lhe «é o único dos seus filmes em que não encontrámos nada que se salvasse». E Buñuel responde: «Nem eu»."

Na mesma folha, há uma longa citação de um comentário de Agustina Bessa-Luís ao filme, publicado no Diário de Notícias a 19 de Fevereiro de 1990, em que a escritora confessa que "eu sou uma espectadora atenta, se não obrigada, de Buñuel, não me corresse nas veias um pouco daquele sangue judeo-mourisco que se deleita no melodrama. O filme, que ele repudia abertamente, Uma Mulher Sem Amor, passou na televisão para um público desinteressado e que decerto não aluga material de vídeo para perder tempo com aquelas histórias soníferas da burguesia. Buñuel não quis, ou não pôde, retirar Maupassant de cena. É dele a narrativa, e permanece dele a denúncia da hipocrisia quase fútil que desliza como água corrente ao longo dum enredo apresentado, e duma cenografia sem recursos. A figura da mulher, que Maupassant considera sempre objecto de desejo e insuportável quanto ao resto, está admiravelmente descrita. Ela não é nada para complexidades e aventuras, quer as coisas como estão e aspira a uma situação que instaure a hipocrisia como vacina contra a realidade. "Toda a merda do estúpido sentimentalismo" que Buñuel usa nos filmes finge ser uma lição moral e deixa perceber a perversidade que a cultura não aniquila nem vence. Esse homem que bebia o seu dry martini, reflectindo amargamente sobre as vantagens da cultura e do dinheiro! Mas o dinheiro e a cultura estão, na sociedade estabelecida (e não há outra), como compensação do Eros impossível. É nos supostos maus filmes de Buñuel que se verifica a "heroicidade" do dinheiro como uma resistência à desordem infernal do desejo humano. O marido de Rosário sabe que não a pode conservar senão produzindo nela o estado de culpa e chamando-a à obrigação do adultério. Para isso serve-se do primeiro recém-chegado como duma inspiração. Tudo é precipitado mas não sem arte; simula chegar tarde, quando chega, grita de longe a avisar, para dar tempo a que tudo se organize a favor da inocência aparente. A aparência é o que conta; os sentimentos jogam nesse sentido. São fórmulas, pequenas e complicadas vias do que é conveniente, justo e saudável. Rosário é uma "chata", aquela a que na permanência da vida doméstica os homens acabam por ajudar-se. Sempre de cara torta, sempre a defender o filho que, por sua vez, se torna mimalho e ressentido, ela personifica a esposa jovem e bonita que se julga mal empregada com o marido mais velho e homem de negócios inveterado. Os negócios estão na mente dele como uma esponja que absorve o medo das paixões e das suas consequências funestas. É preferível sacrificar a honra e ceder a essa engrenagem que permite uma felicidade óbvia, aplaudida pela comunidade."

Até Quinta!

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