sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Apresentação de "Wolfram, a Saliva do Lobo", por Bruno Andrade

Wolfram, a Saliva do Lobo (2010) de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta



por João Palhares

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Entre os anos de 2008 e 2009, Joana Torgal e Rodolfo Pimenta receberam um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para gravar um banco de sons dessas famosíssimas explorações mineiras situadas entre o Fundão e a Covilhã, na região da Beira Interior. Mais de doze mil quilómetros de túneis e subterrâneos foçados pela mão humana, até aos trezentos metros de profundidade, fundados alguns anos depois de um carvoeiro ter descoberto uma pedra negra e brilhante no século XIX e se terem suscitado os interesses e as explorações de variadas companhias, nacionais e estrangeiras, com os picos de actividade e procura situados pela altura da Segunda Guerra Mundial, estando hoje tudo nas mãos da Almonty Industries do Canadá. Torgal e Pimenta confessaram ter lá estado bastante tempo, viveram entre os mineiros, assistiram aos processos de extracção, transporte, filtragem automática, filtragem manual, moagem automática, moagem manual, embalagem automática, embalagem manual, mistura química e transformação dos cristais de volframite durante meses sem sequer ligar uma câmara, ficando apenas de ouvidos bem atentos e olhos bem abertos. Terão tirado as suas notas, percebido todo o processo, assistido às rotinas diárias de homens e mulheres do raiar da aurora ao cair da noite, provavelmente entrevistado essas pessoas, apanhado chuva, neve e bastante sol, entre os picos dos dois solstícios que são tão pronunciados e extremados nessa zona do país. “Sempre fomos forçados a desenvolver projectos com poucos meios,” disseram ainda os realizadores a Mário Fernandes, em 2013, “de outra forma estaríamos em casa sentados à espera do subsídio. É claro que o apoio de amigos e familiares foi fundamental para a nossa permanência nas Minas da Panasqueira e para eles vai o nosso eterno agradecimento.” 
 
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Já com a câmara, parecem esquecer esse trabalho todo (“parecem,” porque a rodagem foi preparada de forma minuciosa, envolveu invenção de equipamento e talvez faça falta uma entrevista ou um artigo de fundo sobre o processo de Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, que vêm do cinema de animação e são criadores muitíssimo pacientes) e deixam-se levar pela estranheza e pela intensidade mágicas do processo até às últimas consequências. E em vez de prepararem um documentário didáctico cheio de diagramas, legendas, documentos, testemunhos e vozes off explicativas preferem jogar com as poucas luzes humanas e a escuridão tenebrosa das minas (há momentos no filme em que se não nos soubéssemos na mais pura e dura das realidades, nos acharíamos num filme de terror ou de ficção científica), põem a câmara perigosamente perto e primorosamente longe, em planos que se parecem com os quadros mais negros e desesperados do pintor britânico John Martin (sendo outros sem parentesco traçável), atiram-na para cima de transportadoras e deixam-na vibrar violentamente com mecanismos enormes e esmagadores enquanto filmam, forçam ao máximo o reconhecimento visual dos movimentos rapidíssimos das engrenagens, enchem-na de terra e de água tornando-a também parte dos elementos. “Ao filmar-se certos planos não se sente medo,” dizem no entanto os realizadores na mesma entrevista, “mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”.” 
 
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Finda a aventura, então, estes choques encadeados de sons e de imagens. Entre as embalagens metódicas do pó trabalhado antes de ser enviado para os laboratórios, que marcam um abrir e fechar de ciclo. A partir de certa altura, quando os mineiros já estão lá dentro e as máquinas carburam e sugam, furam e ardem, arrastam e rebentam, acontece um milagre. Enquanto a matéria mineral se transforma, também os planos se sucedem numa reinvenção constante, alcançando por vezes a abstracção pura e criando a sua própria música, ritmos constantes, hipnóticos e alucinatórios que alimentam as máquinas e que, como em Vertov, não dependem das outras artes para descrever ou deixar em testamento o seu século, os seus vultos e os seus heróis. Um fio amarelo e vermelho a rasgar a escuridão, um camião a atravessar o céu azul e a despejar uma nuvem negra pela encosta clara e frágil de um monte, um buraco iluminado com um homem em silhueta e como arquétipo a dominar um engenho mecânico e o seu meio, representado num enquadramento e num claro-escuro sintéticos. As metáforas são infindáveis, dos homens como autómatos, presas do trabalho e do complexo militar e industrial responsável pelos massacres do nosso mundo à figura reversa ascética e resiliente que pode significar a justiça derradeira e o alívio de todas as penas: continuam cá, como colossos a oscilar ao vento sem nunca tombar. 1895-2010, a história das indústrias mineiras e cinematográficas em cinquenta e cinco minutos sem diálogos, peripécias narrativas ou sopas do audio-visual. Para lá e para cá do tempo, para lá e para cá do espaço, a garantir-nos como D. Quixote, Al Jolson ou Alain Resnais e através das décadas e dos séculos que por mais que tenhamos visto, “ainda não vimos nada”. Bem hajam, Joana e Rodolfo.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

180ª sessão: dia 22 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Depois dos anos vinte, espreitamos agora as vanguardas do século XXI, à procura de rimas e parentescos. Foi no início deste nosso século que Joana Torgal e Rodolfo Pimenta, através de um apoio da Fundação Minas da Panasqueira para a criação de um banco de sons das Minas, realizaram Wolfram, a Saliva do Lobo (2010), a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos, que será antecedida por uma apresentação em vídeo pelo crítico e realizador brasileiro Bruno Andrade.

Em Outubro de 2010, em texto publicado no Jornal dos Encontros de 2013 e na Foco - Revista de cinema de 2014-2015, Mário Fernandes (programador e também realizador de The Last Day  of Leonard Cohen in Hydra, que vimos em Outubro de 2018) escreveu que "nesta maravilhosa e portentosa obra-prima do cinema, o Pimenta e a Joana acompanham o processo de extracção e transformação do minério das Minas da Panasqueira. Sem explicações em voz off, sem diálogos, sem cair na confrangedora antropologia audiovisual tão em voga, sem a armadura patética do realizador etnográfico, souberam negar as pretensas e idiotas continuidades narrativas documentais. 
 
"Apostaram numa “montagem de atracções”, tributária de Eisenstein e Vertov (ressalvando as diferenças entre os dois realizadores), em que todos os planos criam sensações, ressonâncias emocionais, jogos de elementos, matérias e maquinações que geram estímulos e reacções. 

"Assim, através de metamorfoses sucessivas da matéria, em movimentos ascendentes, descendentes e dispersivos, os dois realizadores fraturam o bloco bruto da matéria em partículas resistentes à análise, ao controlo; ninguém do lado de cá consegue juntar as peças nem reconhecer os materiais, só a Beralt Tin dá um peso e uma medida e um preço de mercado como filmam com ironia o Pimenta e a Joana. Na Realidade, o “preço simbólico” ou o “símbolo preçado” é fracturável e não facturável, consome-se em galerias subterrâneas, criptomanias, túneis, tubos de ensaio, cavidades, labirintos, licantropias, máquinas, decomposições, sombras, explosões, ângulos insólitos, curto-circuitos etc... O minério desmultiplica-se numa plural trasladação simultânea. Na “cripta fílmica” da mina os segredos só se revelam pela fractura e a cripta constrói-se pela violência emocional e material dos fragmentos."

Em entrevista ao mesmo Mário Fernandes, e quando este lhes pergunta se estavam interessados em "captar uma certa desumanização do trabalho", Torgal e Pimenta respondem que "sim. Na sociedade, a importância que se atribui ao minério (produto) é superior à que se atribui ao mineiro (homem). Neste filme esta ideia está subjacente, pois o mineiro encontra-se quase sempre em segundo plano, como um vigilante do precioso processo mecânico. O mineiro apenas surge em primeiro plano no final do filme, quando se corporiza em árvore, mantendo-se firme e resistente perante a vida e a morte. Não existe uma completa recusa da palavra, mas antes o recurso à dureza e riqueza visual e sonora, que tem a capacidade de nos envolver numa realidade muito particular."

Quando Mário Fernandes lhes pergunta na mesma entrevista se foderam alguma lente, os realizadores respondem que "com alguma sorte nenhuma lente nos fodeu! (risos) Ao filmar-se certos planos não se sente medo, mas antes respeito e alguma adrenalina. Tal como filmares em cima dos vagões, com o tecto a meio palmo da testa, ou confinados num buraco onde só cabíamos nós e uma pá escavadora para recolher os escombros, ou ainda, quando te encontravas em cruzamentos sonoros de máquinas escavadoras a aproximarem-se na escuridão. Tanto a mina como a lavaria são lugares labirínticos onde nos podemos “perder ou encontrar”."

Em texto publicado para a revista Estado da Arte, Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins, defensores apaixonadíssimos deste filme, apresentam o filme ao Brasil, falando dos "homens que extraem minério, transformam madeira em carvão e saudades em cartas, enquanto são filmados por realizadores que, com suas câmeras, tripés e microfones, colhem e burilam seus gestos. O esforço para dobrar a matéria, o aprendizado da sua manipulação, o artesanato, tudo isso é o que nos dão a ver os oito filmes apresentados na mostra Perspectivas do Cinema Português, que acontece no dia 24/07 na Cinemateca Brasileira, com produção da Foco – Revista de Cinema e da Pena Capital. 
 
"Para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Chelovek s kino-apparatom (1929) de Dziga Vertov



por António Cruz Mendes

Denis Kaufman (1895-1954), cineasta que adoptou o pseudónimo Dziga Vertov (“dziga”, do ucraniano “roda”, e “vertov”, do russo, “vertev”, “que significa “girar”, nome que poderíamos traduzir por “pião que rodopia”), criou no campo do cinema documental uma obra que consideramos exemplar. 
 
Com a sua mulher e o seu irmão, fundou o grupo Kinoks cujo nome foi formado a partir das palavras Cine (Kino) e Olho (Glaz), que defendia a “honestidade” do documentário relativamente ao filme de ficção e a superioridade do olhar cinematográfico em face do da visão humana. Rejeitando a pretensão de uma falsa objectividade cinematográfica, fez da exploração das relações olho / câmara / realidade / montagem os pontos de partida para a construção da nova realidade construída pelo cinema. 
 
No contexto da programação dos Encontros da Imagem, que acolheu a ideia de “genesis” como tema, apresentamos O Homem da Câmara de Filmar, o seu filme mais conhecido, que, simultaneamente, procura documentar o nascimento de uma nova sociedade e exemplificar uma nova forma de conceber o cinema. Trata-se, por um lado, de assinalar o impacto da modernidade, da produção mecânica e da velocidade no ritmo da vida urbana, numa sociedade, como a da Rússia, durante muito tempo marcada pela persistência de velhas tradições e de estruturas sociais arcaicas; por outro, de o fazer através do olho da máquina de filmar, explorando todas as possibilidades oferecidas por esse poderoso mecanismo, ele próprio produto dos novos tempos que se pretendia celebrar. 
 
O documentário de Vertov oferece-nos, em imagens vertiginosas, uma perspectiva da vida moderna a partir da representação de um dia na vida de Moscovo, sobretudo, mas também de Kiev e de Odessa: o despertar, o movimento febril das ruas, o mundo do trabalho e da produção em série, o tempo de lazer, o cair da noite… É um olhar fascinado diante dos progressos técnicos e das transformações sociais ocorridas na União Soviética no período da NEP. Um filme que dispensa intertítulos, cenários artificiais e actores, afirmando claramente a sua independência em relação à literatura e ao teatro, para se exprimir como cinema em estado puro: mero registo de imagens em movimento captadas pela máquina operada pelo seu irmão, Mickhail Kaufman, e montadas pela sua mulher, Elizaveta Svilova. 
 
Dziga Vertov recorre a uma imensa panóplia de recursos cinematográficos: câmara lenta e animação, zooms, ecrã dividido, imagens múltiplas e imagens desfocadas. Recusa, portanto, qualquer descrição naturalista, mas reinventa a linguagem cinematográfica que, na sua assumida artificialidade, ele vê como o veículo ideal para exprimir uma sensibilidade futurista que ainda hoje nos consegue espantar. 
 
O conceito de “revolução” encontra-se subjacente tanto no tema, como na forma de o abordar. Considerava-se que os novos tempos anunciados pela revolução socialista de Outubro só podia ser expresso numa linguagem que fosse ela própria a expressão dessa mesma modernidade. Pensava-se, então, que as vanguardas artísticas (e, entre elas, o futurismo ocupava um lugar destacado) se deviam, logicamente, associar às vanguardas políticas na construção de um mundo novo e que esse mundo novo que a revolução profetizava não poderia ser anunciado através das velhas fórmulas artísticas herdadas do passado. 
 
De facto, com a afirmação do estalinismo, elas foram acusadas de um formalismo distante do entendimento e do gosto dos trabalhadores, sendo progressivamente asfixiadas e preteridas a favor do chamado “realismo socialista”, que privilegiava formas de expressão mais tradicionais. Depois deste filme, Dziga Vertov realizaria ainda mais alguns documentários, entre eles Três Canções para Lenine (1934) será o mais conhecido, mas O Homem da Câmara de Filmar terá sido o filme-manifesto que melhor exemplifica a sua concepção do que deveria ser um cinema revolucionário ao serviço da revolução.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

179ª sessão: dia 15 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Na terceira semana de Outubro (curioso mês) continuamos na União das Repúblicas Sociais Soviéticas para mostrar o homem e o olho perdido pela urbe moderna de Dziga Vertov, nascido David Abelevich Kaufman, através da sua obra mais conhecida, O Homem da Câmara de Filmar, que é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Na sua introdução ao livro de escritos do realizador soviético, Kino-Eye - The Writings of Dziga Vertov (University of California Press, 1984), Annette Michelson escreveu que "a investigação epistemológica e o projecto de um cinema revolucionário convergem nesse mundo de verdade visto pelo olho cinemático. E Vertov é o grande descobridor desse mundo. O seu trabalho é paradoxalmente concreto, a instância original e paradigmática de "uma tentativa de filmar, em câmara lenta, aquilo que aconteceu, em consequência da forma como é apreendida em velocidade natural, não absolutamente invisível mas perdida pela vista, sujeita ao equívoco. Uma tentativa de abordar de forma lenta e calma essa intensidade original que não é dada em aparência, mas da qual as coisas e os processos, no entanto, por sua vez derivaram."

"A evolução do seu trabalho torna insistentemente concreto, como numa série de ícones cinéticos, aquele fantasma filosófico da consciência reflexiva: o olho a ver, apreendendo-se a si mesmo à medida que constitui a visibilidade do mundo: o olho transformado pelo projecto revolucionário num agente de produção crítica.

"O caso de Vertov é muito especial: uma história com quarenta anos da recepção mais céptica e hostil e de uma sistemática negligência crítica. Claro que o cepticismo e a hostilidade não são únicos; mas a negligência continuada, o cepticismo e a perplexidade partilhados por parte de espectadores geralmente perceptivos e qualificados e a literatura evasiva e inadequada sobre o filme de Vertov dão que pensar. A história do cinema soviético é uma das áreas mais elaboradamente documentadas e consagradas do meio. Claro que é verdade que há muita pesquisa sobre a história do cinema soviético que continua por se fazer e refazer, para ser resgatado do molde prejudicial da piedade, mas a ausência de atenção dedicada e séria até muito recentemente torna o caso de Vertov efectivamente singular. Metido à pressa e distraidamente no balde do lixo da história do cinema, os seus maiores trabalhos foram deixados a marcar o tempo, ao longo de quatro décadas, como bombas-relógio."

Em resposta ao jornal Kinofront, em 1930, Dziga Vertov disse que "até agora, não houve um único documentário ou filme actuado a responder totalmente às exigências políticas feitas pelo cinema revolucionário. Lançado numa altura de crise cinematográfica (crise não tanto temática - havia temas infindáveis - como de meios de expressão), lançado como um filme com um propósito em particular - o de preencher a lacuna no interior da linguagem cinematográfica, e a cineficação da fotografia "de pau", O Homem da Câmara de Filmar não reivindica substituir ou destituir os nossos outros trabalhos. Mas nem sequer a soma total destes filmes pode esperar ter respondido (ou responder) totalmente e de forma oportuna a todas as exigências políticas que o partido criou e devia criar para o cinema revolucionário.

"É essencial triplicar a nossa energia, re-organizar a produção e a distribuição cinematográfica com base na "proporção Leninista," organizar uma fábrica de filmes documentais, nomear quadros de trabalhadores de produção cinematográfica ao longo de toda a frente do Plano Quinquenal. O método de competição socialista vai ajudar os trabalhadores de filmes documentais a aproximar-se de uma melhor e mais completa realização das exigências políticas do partido."

Já Henri Langlois, em texto reunido nos Écrits de Cinéma (Flammarion, 2014), e descrevendo o trabalho de Vertov, escreveu que "considerando a imagem já filmada como um valor em si, ele quis fazer dela o elemento de base da arte cinematográfica, quis, na verdade, utilizar o documento nascido intervindo apenas a posteriori, com a escolha do documento e com a sua organização, dando à montagem um valor primordial e absoluto. Por isso, foi um dos grandes pioneiros do cinema.

"O Homem da Câmara de Filmar é apenas um dos seus últimos filmes mudos, o único que nos está acessível actualmente, e se a data da sua realização não nos permite situar Vertov neste programa dentro da sua data e do seu lugar histórico : antes de Ruttmann, esse arrependimento é amplamente compensado pela vantagem de tornar sensível a sua arte, as suas teorias e a sua ciência com o seu filme mudo que consideramos mais representativo.

"Dificilmente se pode imaginar montagem mais fulgurante, ao ponto de fazer da imagem um valor secundário e de nos fazer esquecer a teoria do Cine-Olho."

Até Quinta!

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Arsenal (1929) de Aleksander Dovjenko



por André Miranda

Numa casa pobre uma mulher ocupa o espaço central. Cabeça voltada para baixo. Os braços caídos ao longo do corpo. Uma posição de completa angústia. A imagem repete-se. Outras mulheres, nas mesmas posições, espalhadas pela aldeia. Vemos homens desfeitos fisicamente. Um deles conduz um cavalo tísico pelo campo infértil. O desespero transborda, e o homem lança-se sobre o animal numa brutalidade primitiva. Ao mesmo tempo, a mãe agride os filhos que choram de fome. O czar, por sua vez, escreve no diário: "Hoje matei um corvo. O tempo está agradável." 
 
O império russo afunda-se na primeira guerra mundial. Os jovens são enviados para as trincheiras. As explosões sucedem-se. O gás mostarda corre pelo ar. Os soldados saltam dos buracos imundos onde se protegem da morte e atiram-se sobre a terra de ninguém. Vão matar outros homens como eles. Avançam com um ódio que não lhes pertence, seguindo as ordens de oficiais que nunca viram o rosto sorridente de um cadáver, sujo pela terra e pela pólvora. Mas do outro lado não está ninguém. Um deles pergunta: "Onde está o inimigo?" É morto pelas costas por um oficial. 
 
Encomendado pelo partido, o objectivo do filme era comemorar o levantamento dos trabalhadores ucranianos da fábrica de arsenal em Kiev, que desencadeou a revolta bolchevique na Ucrânia. A vitória que significou o fim daquele país enquanto estado livre e independente. Dovjenko era ucraniano. Não se sabe até que ponto sentimentos conflituosos existiram em si durante a realização. A verdade é que vários intelectuais do partido sentiram que o filme não cumpria os requisitos de uma obra que, acima da estética, devia ser propagandística. "Arsenal Falso" ou "Em vez de um épico, uma farsa", eram os títulos dos jornais ucranianos. A rebelião, que devia ser o ponto fulcral, não o era, queixavam-se. Em vez da celebração da alma proletária, Dovjenko perdia-se na crueldade da guerra, nos homens mutilados que regressam a casa, nas mulheres que perderam os filhos e os maridos, nas crianças que já não têm a quem chamar pai. 
 
Talvez para os membros zelosos do partido, Arsenal não atingisse o pináculo do que deve ser uma obra que ensina o povo e canta a glória de um destino que se cumpre. Ou talvez Dovjenko tivesse tomado demasiada liberdade artística. Mas a verdade é que a alma revolucionária está presente. E um só momento demonstra-o em toda a sua glória: uma mulher aguarda junto a um buraco aberto na terra coberta de neve; três homens entregam-lhe o corpo do filho caído pela causa e dizem: "Não temos tempo para explicar. A nossa vida e a nossa morte são revolucionárias."

terça-feira, 6 de outubro de 2020

178ª sessão: dia 8 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Chegados à segunda semana de Outubro, voltamos às revoluções e à vida que nasce das cinzas - a sangue e violência na Ucrânia do início do século vinte. Vamos acompanhar um soldado desiludido que sobreviveu ao flagelo da primeira grande guerra para desafiar as autoridades e tentar instaurar o sistema soviético na sua Kiev natal. O filme é Arsenal, foi realizado por Aleksander Dovjenko e é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Em forma de apresentação do cineasta soviético, cuja obra nunca tínhamos exibido, relembramos palavras de Henri Agel, que escreveu no seu belo livro Les Grands Cinéastes que Je Propose que "de certa forma, o autor de Michurin é o anti-Zola na medida em que a imagem, nele, não é a figuração mas a própria expressão de uma fé ardente na fecundidade do futuro. Se o autor de Paris gosta das metáforas que sugerem essa fecundidade, Dovjenko vê-as através de um temperamento que só se podia exprimir plenamente pelo cinema. A sinfonia da colheita em A Terra, os girassóis em grande plano do início de Shchors, a envergadura beethoveniana do Outono de Michurin não revelam apenas o amor imenso do autor pela sua terra, o seu enraizamento na pátria ucraniana: comunicam também a presença vitoriosa dessa matriz eternamente jovem que dita ao homem o seu destino épico. Entre os cineastas dessa época, nenhum senão Dovjenko estava convencido da vocação gloriosa e transformadora do homem soviético. O seu panteísmo instintivo unia as grandes revoluções cósmicas à afirmação incessantemente alargada das possibilidades humanas. Ao longo do estudo substancial que lhe dedicou no nº 648 de Lettres françaises, Sadoul lembra o acto de fé de Dovjenko: «Não há uma época na história mais heróica que a nossa nem pela envergadura dos acontecimentos nem pelo seu poder nem pela profundidade ilimitada dos seus significados.» Esta convicção nunca mais se desmentiu desde o primeiro grande filme de Dovjenko, Zvenigora, do qual Eisenstein exaltou o poder de imaginação poética, até à evocação da Idade de Ouro orquestrada em Michurin e O Poema do Mar.

"As obras explicitamente épicas de Dovjenko são animadas pelo mesmo lirismo: a Sibéria de Aerograd e as grandes extensões nevadas de Shchors ampliam a luta dos soldados russos, no primeiro contra os japoneses, no segundo contra as tropas alemãs de ocupação em 1918; mas são a vibração do estilo e a sua diversidade de expressão que nos agarram: em Arsenal, a imobilização das máquinas paradas pelos grevistas lembra o emprego que Eisenstein fez da imobilidade no final do Couraçado Potemkine. O descarrilamento com que se inaugura Arsenal aproxima-se pelo seu poder rítmico das primeiras imagens de Shchors, que nos mostram o tumulto da guerra, os cavalos nas searas de trigo, os incêndios e as explosões. O que sempre houve de recolhido e de imponente na montagem soviética atinge aqui uma plenitude espantosa. Mas o lirismo de Shchors oferece outra surpresa: alia-se à brincadeira, aproxima-se do picaresco, alterna com o cómico ou insere-se em pleno coração da tragédia, tal como nos episódios centrados no valente amigo do herói: o seu discurso no palco, atrás de um canhão, o seu desespero com a perda da mulher que só se acalma com o presente de um sabre. A envergadura épica regressa só no episódio do seu cortejo fúnebre que nos mostra em plano aproximado a sua maca sobre um fundo todo a crepitar de galopes. A este filme adequar-se-ia plenamente o que Eisenstein escreveu de Zvenigora: «O charme de uma concepção de espírito completamente particular; de um encontro harmonioso entre a realidade objectiva e a inspiração poética; elementos mitológicos introduzidos no mundo moderno; humor e patético, verdadeiro Gogol.» (in «Ciné-club», nº 5) Esta referência a Gogol é bastante esclarecedora: em suma, o que falta aos grandes contemporâneos russos de Dovjenko, talvez seja essa possibilidade de relaxamento, a descontração da epopeia num sorriso de malícia, como em Homero. E se Dovjenko lembra Brueghel pelo menos em Shchors, não é apenas pela beleza das paisagens de neve mas por um certo gosto regional que não é a mais pequena das atracções do cinema soviético no que tem de melhor."

Para a Senses of Cinema, Miguel Marías escreveu que "ver Arsenal (Arsienal) de Aleksander Dovjenko hoje em dia pode-se revelar uma experiência estranhamente impressionante; pode parecer ao espectador tanto um filme muito remoto – não só pela sua idade, mas também devido ao abismo sempre crescente entre a sua concepção visionária do que os filmes deviam ser e aquilo a que estamos agora habituados a aceitar como cinema – e, depois de alguma reflexão, um filme muito moderno, talvez mesmo demasiado moderno para nós. Não sendo um filme narrativo clássico, Arsenal é imediatamente visto como uma sucessão rápida de imagens aparentemente não relacionadas. Algumas das suas imagens têm a crueza, a simplicidade e a urgência de metragem documental ou de actualidades, enquanto outras parecem bastante formalistas, mesmo expressionistas ou exageradas, jogando com as bordas do enquadramento ou com simetrias invertidas enquanto empregam formas bem variadas de alcançar um estado de abstracção. 
 
"Várias séries de planos aparentemente não relacionados são montados como se não houvesse diferença alguma na sua respectiva natureza, categoria, ou grau de estilização. Arsenal, por um lado, tem um aspecto bastante primitivo e apresenta alguns desvios notáveis dos princípios do realismo-socialista que supostamente já estavam a ser impostos pelas autoridades fílmicas/políticas soviéticas na altura do seu lançamento (como o cavalo que fala, obviamente em intertítulos, já que o cinema soviético iria permanecer mudo durante muitos mais anos). Por outro lado, Arsenal é reminiscente e antecipativo da liberdade associativa característica de Godard, Straub/Huillet ou os primeiros Makavejev. O efeito global de Arsenal está bastante em discordância com outros filmes soviéticos familiares feito na mesma altura, como A Linha Geral ou O Velho e o Novo (1929) de Eisenstein – mesmo que estes possam ter sido influenciados até certo ponto pelo filme de Dovzhenko. Parte do fascínio do trabalho de Dovzhenko reside em contradições destas, embora tenha ameaçado a continuidade do trabalho do autor como cineasta."

Já João Bénard da Costa escreveu na sua folha da Cinemateca sobre o filme que "(...) o que em Zvenigora era poema (o tal poema em doze cantos) volve-se aqui em "poema sinfónico", em epopeia de sons e imagens, a que Dovjenko chamou «histórico-revolucionária». O que nos leva, desde logo, a uma questão histórica. Arsenal é um filme, ainda, da época do mudo (o sonoro só se generalizou na URSS a partir de 1931, quatro anos depois da estreia de The Jazz Singer). Mas, sempre, Dovjenko se recusou a ver ou a pensar este filme sem acompanhamento musical, à época a partitura de Igor Belza. Por isso, me decidi a projectar a versão sonorizada reconstituída há dez anos, de tal modo a versão totalmente muda desta obra fica amputada. Outros filmes de Dovjenko (como da maior parte dos grandes mestres russos) foram recentemente sonorizados. Mas se, por exemplo, as bandas sonoras que conheço introduzidas em Zvenigora ou em A Terra são pleonásticas, imitativas ou nada acrescentam, em Arsenal o contra ponto imagem-som é fundamental. E é-o porque todo o filme, ao contrário dos citados assenta na ideia de montagem e dou carradas de razão ao crítico francês Barthélémy Amengual quando este sustenta que «nenhum filme soviético foi mais longe nas vias do 'cinema de montagem', nem mesmo o de Eisenstein». Arsenal é um ano posterior a Outubro de Eisenstein e é contemporâneo de A Linha Geral. Comparem-se essas obras a esta e, em minha opinião, o filme de Dovjenko ilustra melhor do que os de Eisenstein, a célebre definição do último da montagem: «uma espécie de post-pintura evoluindo para uma espécie de pré-música - música dos olhos». Pode-se conjecturar sobre a influência exercida por Eisenstein sobre Dovjenko, o Eisenstein de A Greve, Potemkin ou Outubro. Ela é evidente e comprovada. Mas a «libertação de toda a acção de definições de tempo e espaço», «a dramaturgia do visual» nunca foram, quanto a mim, levadas tão longe como nesta obra-prima, sobretudo nos primeiros vinte minutos dela. John Reed, referindo-se à Revolução de Outubro, falou, como "toda a gente" sobre «dez dias que abalaram o mundo». Em Arsenal apetece falar de 15 minutos (os tais iniciais) que abalaram o mundo das imagens, introduzindo na dinâmica cinemática semelhante revolução."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Un chien andalou (1929) de Luis Buñuel



por João Palhares

Aproveitando a transição do ciclo Buñuel para este terceiro ciclo em parceria com os Encontros da Imagem, depois de “O Belo e a Consolação” em 2018 e “What Now?” em 2019 (este ano o tema é “Génesis”, descrito e apresentado como “tudo isso: a origem ou criação e, como em todas as criações e também na arte, a génese sucede à destruição”), decidimos voltar-nos para o início da carreira do cineasta espanhol. Não apenas para jogar com essa analogia entre o tema que Carlos Fontes nos pôs nas mãos e o nascimento de um cineasta, ou associar esses vários começos possíveis ao início do cinema, mas também para louvar este filme-vanguarda que sobreviveu à própria vanguarda do surrealismo como acto verdadeiramente revolucionário, subversivo e fundador. Pleno de som e de fúria e ainda hoje perfeitamente indecifrável. 
 
«Todos nós éramos apoiantes de um certo conceito de revolução», ditou Luis Buñuel a Jean-Claude Carrière na sua auto-biografia, «e apesar dos surrealistas não se considerarem a si mesmos terroristas, estavam constantemente a combater uma sociedade que desprezavam. A arma principal deles não eram pistolas, claro; era o escândalo. O escândalo era um agente potente de revelação, capaz de expor crimes sociais como a exploração dum homem por outro, o imperialismo colonialista, a tirania religiosa—em suma, todos os alicerces secretos e odiosos de um sistema que tinha de ser destruído. O verdadeiro propósito do surrealismo não era criar um novo movimento literário, artístico, ou mesmo filosófico, mas explodir com a ordem social, transformar a própria vida. No entanto, logo a seguir à fundação do movimento vários membros rejeitaram esta estratégia e entraram na política “legítima”, especialmente o partido comunista, que parecia ser a única organização que merecia o epíteto de “revolucionária”.» 
 
Entre as muitas imagens do filme que se tornaram icónicas, dos seminaristas e dos pianos com cadáveres de cavalos em cima arrastados pela personagem do “homem” à mão com formigas, passando pelo homem sem boca ou as mamas que se transformam em nádegas, os corpos mortos finais no início da Primavera, a mais misteriosa talvez continue a ser mesmo a mais famosa: uma navalha rasga a córnea do olho esquerdo duma mulher enquanto uma nuvem atravessa uma lua cheia. É Buñuel quem desfere o golpe, o que não pode ser um dado insignificante. Pode-se pensar nas criações e nos partos que brotam da destruição, na ordem pelo fim da ordem, na vida que renasce das cinzas, mas talvez fique sobretudo essa sensação de que é possível viver de olhos abertos e não conseguir ver nada, ser preciso abrir mais os olhos, chegar ao cúmulo de ficar cego para passar a ver (o 7th Heaven de Frank Borzage em que Chico diz a Diane que “now that I'm blind, I can see that” é dois anos anterior a esta curta e Buñuel pode muito bem tê-lo visto). Planos inaugurais depois do “Era uma vez...” O realizador afia a navalha e olha para o céu nocturno, na atitude parece denunciar a censura de que andamos a olhar para as coisas sem as ver, que nos temos de preparar para a verdadeira revolução e deixar de nos fiarmos nos nossos sentidos, que há demasiados preconceitos a toldar-nos a mente e o juízo. Quase cem anos depois, depois de mais de um século de cinema, de todas as provações possíveis e imagináveis no mundo exterior, passámos a ver melhor? Porque é que há grandes profetas da mitologia que são cegos? Quando já se viu tudo, os olhos passam a meros acessórios? No Evangelho Segundo Mateus, livro 5, versículo 29, lê-se que “se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o” e Luis Buñuel arranca o esquerdo. Porquê? 
 
Talvez não haja respostas, e nem se descreveu mais que o primeiro minuto de filme, prelúdio profético e muito adequado para a loucura que se segue, para os seus enigmas e para as suas muitas transgressões estéticas, religiosas, sociais, narrativas... Às vezes a única despedida ou conclusão possível é desejar uma boa noite e bons sonhos a todos.