por Alexandra Barros
Para que serve a poesia (e a arte em geral) e de onde vem? O que forma a nossa identidade? O que é ser mulher? O que é que nos faz felizes? Estas são questões centrais na história contada em Para
sempre mulher.
A mulher do título é Fumiko, personagem inspirada na poeta japonesa Fumiko Nakajo (1922-1954), nome grande da poesia tanka. Tanka é uma forma poética tradicional japonesa, caracterizada por poemas curtos, com uma estrutura específica de cinco versos e um total de 31 sílabas. Relativamente ao haiku, que é mais curto e mais focado na natureza, a poesia tanka permite uma expressão mais ampla de emoções e pensamentos pessoais. Geralmente, aborda temas como o amor, a natureza, a saudade e reflexões sobre a vida. É uma forma de poesia apreciada pela sua capacidade de transmitir, num formato conciso, sentimentos profundos e momentos emotivos.
Para sempre mulher está povoado por diversos poemas tanka escritos por Fumiko. De acordo com a própria, descrevem realisticamente a sua história, tal como ela é. Para contar essa história Kinuyo Tanaka constrói as suas próprias “rimas” visuais e narrativas, como por exemplo: temas visuais recorrentes e pontos e contrapontos narrativos, onde cruza desvalorização e reconhecimento, prisão e liberdade, conquistas e perdas, amores e desamores.
Ponto: Fumiko aguenta-se num casamento infeliz, por dever de respeito pelas convenções sociais. Contraponto: As suas agruras tornam-se a matéria da sua poesia. Ponto: Fumiko ama um outro poeta, Taku, mas não é correspondida. Contraponto: Taku, no entanto, admira a sua poesia e consegue que ela seja publicada numa revista reputada. Ponto: Fumiko divorcia-se. É-lhe descoberto um cancro da mama e perde os seios para se salvar. Essa perda assegura a sua liberdade, pois sabe que não sofrerá pressões para se voltar a casar. Contraponto: Por ter deixado de se sentir mulher, sente-se perdida como artista. Ponto e contraponto: Perde a vontade de escrever, na época em que vê o seu trabalho reconhecido e aclamado. Ponto e contraponto: A doença traz até si um jornalista de Tóquio que admira a sua obra, Ôtsuki. Com esse
encontro, conhece finalmente a ventura de uma paixão correspondida e vive os dias mais felizes da sua vida, apesar de sentir a morte a aproximar-se velozmente.
Recorrências, paralelismos e oposições:
- Os triângulos
a) O triângulo das relações sentimentais de Fumiko: o marido que não ama e por quem não é amada; Taku, o amigo a quem devota o seu amor, mas perde inesperadamente, devido a morte súbita; Ôtsuki, o seu amante sem futuro, com quem inicia uma apaixonada relação quando a doença já a conduz irremediavelmente para a morte.
b) O triângulo que “causa a doença” de Fumiko: Fumiko ama secretamente Taku, que é casado com Kinuko, sua grande amiga.
- O espelho
O que lhe devolve o espelho em diversos momentos do filme? O seu corpo doente; a amiga cujo lugar desejaria ocupar; o amante.
- Conquistas e perdas
Quando perde os seios, Fumiko conquista a liberdade para ser quem quer, mas simultaneamente é devastada pelo sentimento de perda de identidade.
- Os banhos
Dois banhos são preparados por Kinuko: o primeiro para o seu marido; mais tarde, prepara um segundo para a amiga, que vem a confessar ter desejado banhar-se na mesma banheira que Taku.
- A doença
Fumiko acredita que a doença é um castigo pelo seu amor imoral por Taku, mas é a doença que trará até si um admirador que a venera e a sua única paixão correspondida.
- Os medicamentos
Fumiko reprovava o marido por tomar medicamentos com efeitos danosos. Implora-os nas noites de insónia.
- As mãos
No hospital, Fumiko estende as mãos vazias, ansiando por comprimidos que aliviem o seu extremo sofrimento. Mais tarde, nas suas mãos sem vida é colocado um telegrama anunciando a chegada ansiada do amante.
- O corredor
Fumiko percorre um corredor do hospital e descobre com horror que conduz à morgue. Mais tarde, os filhos fazem o mesmo percurso acompanhando o corpo sem vida da mãe.
- As grades
As grades do quarto de hospital são semelhantes às grades da morgue, destino anunciado na altura em que Fumiko vive a vida mais intensamente, sentindo-se realizada como artista e como mulher.
- Os seios
Os seios perdidos de Fumiko são evocados pelos montes que enquadram o lago onde os filhos lançam flores em sua homenagem.
Pelas paisagens ou estados da natureza que ecoam emoções e formas humanas, pelos poemas curtos sobre o quotidiano, pela forma como os poemas surgem sobrepostos nas cenas, e também pelo
encontro do protagonista com um poeta japonês, ocorreu-me que Paterson, de Jim Jarmusch, poderá ter
em Para sempre mulher uma das suas fontes de inspiração. Em todo o caso, Para sempre mulher é um filme intemporal e universal. A realização pessoal e o reconhecimento artístico, os conflitos morais, os males e bonanças do amor são temas que pertencem a qualquer tempo e lugar. Para sempre, Kinuyo Tanaka!