quarta-feira, 17 de julho de 2024

Herz aus glas (1976) de Werner Herzog



por Duarte Carvalho

Este filme, em suma, é sobre o esforço de uma comunidade da Baviera e do dono da fábrica de vidro, Huttenbesitzer, de replicar o vidro característico - o “vidro rubi” - após a morte do único funcionário que o sabia reproduzir. A sua narrativa é acompanhada pela visão desobstruída do narrador presente Hias. 

As cenas iniciais do filme replicam muitas das temáticas do estilo romântico, em particular da pintura romântica, e até partilha semelhanças visuais. O maior paralelismo é com as obras de Caspar David Friedrich Der Wanderer über dem Nebelmeer, a observação e a admiração pela natureza - as nuvens, a água e a névoa são utilizados com grande efeito para elevar o que estamos a ver ao grau de místico, mítico e divino. O filme, além de se passar na Baviera Alemã, decorre durante o século XVIII no qual este estilo surgiu e influenciou todas as artes, à excepção do cinema que ainda não tinha surgido. Na música existe uma grande influência medieval e mantém-se o fenómeno romântico, destacando-se o yodelling inicial que nos introduz e nos insere no filme que, apesar de associado à Baviera, neste caso é suíço. 

No decorrer do filme existem várias falas com graus elevados de poesia e de importância. Destaco duas que, para mim, resumem a direção do filme e as suas influências. 

A primeira fala, quando alguns homens se encontram sozinhos a partilhar visões com o profeta Hias, “The time of giants is coming back”, alude à saudade da imaginação medieval, ou no caso de Werner, a um tempo mais campestre como o romântico; ao surgimento de indústrias maiores que destruiriam as mais pequenas, por meio da revolução industrial; e por fim às grandes guerras do séc. XX, que viriam a ser destrutivas para a Alemanha. Ao que Hias responde vendo mais longe, mais longe que o próprio espectador, “the giant was just the shadow of a dwarf” indicando que todos os eventos resultado de ações humanas são ultrapassáveis. E a segunda, quando confrontados com o provável fecho da fábrica, “Will the future see the necessary fall of factories just as we see the ruined fortress as a sign of inevitable change?”: mais uma vez a alusão aos fortes medievais e à lembrança dos valores do passado para enfrentar o futuro indicando a brevidade dos eventos presentes e futuros. 

O realizador, Werner Herzog, descreveu este filme como “slowest of the slow” e “strangest of the strange”, contudo revela que é “a child that is dear to me”, chegando a dizer o quão orgulhoso está deste filme, colocando-o num lugar especial na sua filmografia. 

Werner explica em várias instâncias que se baseou num livro de Herbert Achternbusch, sobre Mühlhiasl - um profeta/pastor alemão que é uma espécie de lenda, apesar de ter existido mesmo. Este deu origem à personagem Mathias ou Hias, o Nostradamus do séc. XVIII. 

Neste âmbito surgiu ao autor a imagem que propulsionou o filme, das cascatas a correr, e das nuvens que as imitavam formando rios no topo das montanhas, como no quadro de Friedrich. Estas imagens tinham inicialmente o objetivo de, quando auxiliadas com a música e o próprio Herzog a dar instruções, hipnotizar a audiência, coisa que não se concretizou pois o próprio reconheceu ser demasiado perigoso e irresponsável, bastando apenas os yoddles e as diferentes sequências de nuvens e água para introduzir os visualizadores à história. As sequências foram obtidas através de várias fotografias que, devido às limitações tecnológicas da altura, tiveram de ser tiradas a cada 2, 3 minutos manualmente, alterando a abertura da lente e as definições da máquina para manter a consistência da luz. No caso do rio de nuvens foram precisos 11 dias para as conseguir. Os momentos parecem difusos e o autor revelou terem sido gravados através de um tecido parecido com papel japonês. Para além da Baviera Alemã foram usadas gravações de paisagem na Irlanda, Yellowstone e Alaska, também presentes no fim. 

O aspeto mais único deste filme é a presença do hipnotismo durante todo o seu decorrer. Após estudo e o auxílio de um hipnotizador profissional (que depois foi dispensado porque o realizador já não o aguentava mais), Herzog hipnotizou todos os atores, menos Josef Bierbichler (Hias), em quase todo o filme. O hipnotismo deu origem a vários momentos interessantes no filme como por exemplo lutas de bar com sentimentos românticos exacerbados, que se tornam lentas e sem reação. Ou o aldeão que perante o momento mais conclusivo do filme, do grande fogo, não larga a mão das cartas porque segundo Herzog tinha 3 ases. No guião do filme foi dada larga amplitude aos atores para criarem novas falas porque, segundo o realizador, o hipnotismo não só não afeta a criatividade como a evidência. Em discussão com o escritor, foi decidido visualmente e através da interpretação que apenas Hias vê os eventos com clareza sendo o único “completamente consciente” para o presente. É um ser de outro plano que vê os acontecimentos de cima, onde a visão não está obstruída podendo ver a maiores distâncias. 

No final do filme, Hias, que veio ao centro da ação para pedir ajuda para matar um urso e tentar alterar os resultados, volta para o cume da montanha e mata o urso que descobrimos ser inexplicavelmente invisível. A inconclusão e a despreocupação do fim são propositadas e não têm em conta as teorias narrativas de “insipid film studies”. Dá à humanidade uma esperança ou o fim garantido, dependendo da perspectiva.



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