quarta-feira, 10 de julho de 2024

Fata Morgana (1971) de Werner Herzog



por João Palhares

Morgana é uma feiticeira das lendas arturianas, normalmente estabelecida como meia-irmã do próprio Rei Artur, e em tempos recentes dotada de maior ambiguidade no seio da grande narrativa. Na sua nomenclatura italiana, “Fata Morgana” baptizou uma forma de miragem dita superior e que se deve a uma inversão térmica que distorce os objectos situados entre o observador e a linha do horizonte. O efeito pode-se ver em horizontes um pouco por todo o mundo, em oceanos, lagos e desertos em dias muito quentes, embora seja mais comum nas zonas polares. Suspeita-se hoje que as lendas e estórias à volta do famosíssimo navio fantasma, O Holandês Voador, condenado a navegar para sempre pelos sete mares depois de um encontro fatídico com o gigante Adamastor no Cabo das Tormentas, tenham tido origem nestas miragens. 

“Eu sabia que havia alguma coisa que precisava de filmar em África,” disse Werner Herzog a Paul Cronin sobre Fata Morgana em Werner Herzog: A Guide for the Perplexed, de 2014. “Para mim, essas paisagens primordiais e arquetípicas do deserto, repletas de destroços, parecem totalmente irreais, como se fossem de outro planeta; fascinavam-me desde a minha primeira visita ao continente. Mas Fata Morgana tornou-se rapidamente num suplício extremamente difícil, algo que contagiou o sentimento geral de Os anões também crescem de baixo, que foi feito quase imediatamente a seguir. Embora eu tenha sido cuidadoso em África, as coisas lá correram-me sempre mal. Eu não sou um daqueles tipos nostálgicos de Hemingway e do Kilimanjaro que persegue animais pelo mato com uma arma de grande calibre enquanto é ventilado pelos nativos. A África é um local que sempre me deixou nervoso, um sentimento do qual provavelmente nunca me serei capaz de livrar devido às minhas experiências lá enquanto jovem. Aquilo por que passei na rodagem de Fata Morgana não foi diferente em nada.” 
 
Dividido em três partes ou capítulos, “Criação”, “Paraíso” e “A Idade de Ouro”, o filme desenrola-se sob o signo das géneses, escolhendo como cenário o continente hoje destroçado e abandonado que nos viu nascer a todos, reclamando o Popul Vuh como influência e material de trabalho narrado por Lotte H. Eisner, inaugurando ainda uma corrente na obra de Herzog que será desenvolvida em Lições da Escuridão e The Wild Blue Yonder e desembocará na “Declaração do Minnesota” de 1999. Estendido como um ensaio ou um diário de viagem, com imagens captadas pelo preço de um aprisionamento e a contracção de bilharziose, contém belíssimos planos de uma catarata aparentemente sem fim por trás de uma folhagem densa, de uma aldeia que parece de miniatura até vermos uma mulher a percorrer um dos trilhos entre as cabanas, de uma bebé que sai dos destroços de um carro com muita calma e muito cuidado, de animais estranhos segurados de forma ainda mais estranha, de travellings de aldeias, planícies e destroços e ruínas a velocidades e distâncias variadas sobre carrinhas da Wolkswagen, pontuadas com música escolhida a dedo e que potencia as formas e as características que lhes decidamos conceder, de um casal de proxenetas que encontra consolo e redenção ao piano e à bateria com versões entoadas de sucessos tauromáquicos espanhóis num bordel em Lanzarote, de oito aviões a aterrar em sucessão sob distorções morganas provocadas pelo calor e das dunas enigmáticas do deserto, cujo encanto vem não se sabe bem de onde nem como. 

“Muitas das religiões, muito da matemática e muito do pensamento sério sobre a vida começou no deserto,” disse Cormac McCarthy, que situou tantos dos seus romances em paisagens desertas e áridas, a David Krakauer em 2022. “Há algo no deserto que faz as pessoas pensar nas coisas. Será verdade? Não sei, mas parece ser verdade.” Poderíamos certamente elaborar sobre a imaginação ao trabalho com os meios mais escassos e rudimentares, o amarelo como cor primária e primordial, o seu calor e a sua austeridade a formar o próprio carácter e a própria filosofia de vida das pessoas que o habitam, essa paisagem enigmática e encantatória onde imaginamos que caberão o início e o fim de todas as coisas. Mas o enigma mantém-se.



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