por José Oliveira
No vídeo de apresentação ao Breathless americano o seu realizador conta-nos demoradamente a sua quota-parte numa das narrativas mais fascinantes e trágicas da história de Hollywood – a luta entre os realizadores e os estúdios, os autores e a indústria, a visão pessoal contra a necessidade de vender bilhetes e pipocas. Jim McBride esteve na Cinemateca Portuguesa a 2 de Maio do presente ano para introduzir a sua primeira obra e conversar com o público. Não no âmbito de qualquer retrospectiva sobre a sua multifacetada carreira, não como homenageado num festival qualquer – apesar do director da Cinemateca, José Manuel Costa, ter referido que a McBride cairia como uma luva o rótulo de herói independente no Indielisboa que acontecia por aqueles dias – muito menos por estar a tentar realizar um filme no nosso país, mas sim porque veio visitar Portugal e tinham-lhe falado muito bem dessa instituição. Foi ele mesmo a mandar um email, a pedir encarecidamente que lhe dessem a honra de mostrar um dos seus filmes em tão mágico lugar.
David Holzman's Diary foi então a escolha, que José Manuel Costa considerou uma das primeiras obras que mais marcaram o cinema desde aí, filme independente não por moda mas por vontade irrefreável. A introdução do realizador foi breve, simples, right to the point: como em 1967 ele não imaginava o mundo da blogosfera, do youtube, dos facebooks ou do instagram, e inspirado pela revolução da nouvelle vague francesa – a sua obsessão definitiva, como estamos a perceber – e aproveitando a nova leveza dos meios técnicos, decidiu ficcionalizar um diário, com uma certa distância mas metendo lá dentro muito da sua vida e experiência. Convidou amigos, captou o seu quarto e o seu tempo, fixou as rotinas e os rituais de uma geração e de uma época, saiu para a rua e foi ao encontro do outro, deu a entender e lançou para futura análise o ar daquele presente, do existencialismo ao Vietname. Isto disse ele e disseram alguns dos poucos espectadores de uma sessão que não foi badalada, sessão a que ele assistiu sem “problemas de consciência”, tendo sido consensual que o Big Brother não trouxe revolução nenhuma e que um gesto destes já continha em filigrana e terrível o embrião desse monstro anestesiante da preciosidade de cada ser, antecipando-o sem a sua abjecção. Visto hoje, o filme pode até já não ter o impacto da época, a frescura da descoberta sem aviso, essa intimidade e despudor chapados no ecrã que em 67 não estavam profanados, mas além de uma delicadeza e de uma verdade intrínsecas no instante sagrado, quando a câmara sai largada porta fora e se torna puramente observacional, ontológica mesmo, entregando-se às gentes e aos seus espaços num registo puramente etnográfico de quem quer conservar a memória envolvente, o esquema e a estrutura despegam para a emoção do descerramento de um artefacto humanista e por isso mesmo inigualável. Na dura Needle Park à beira dos anos 70 e nos seus passeios próximos redescobrimos espantados toda uma parcela do mundo que tanta ficção tentou emular, tal como quatro anos depois em The Panic the Needle Park, um tocante filme de Jerry Schatzberg que como este prova que a ternura não tem palco, nem raça, nem condição estabelecidas.
Voltando a Breathless, que foi aparecendo durante toda a conversa como o ponto de maior estupefacção na sua caminhada, e regressando às descabeladas e maquiavélicas aventuras oferecidas pela meca do cinema a quem tem uma ideia contrária ao sucesso vigente, McBride apareceu diante dos poucos mas bons que decidiram perder a última novidade ou o primeiro premiado em grande forma, absolutamente jovial e leve, risonho, simpático e a falar com qualquer um, inclusive num português bem aceitável para quem teve um ano de aulas nos anos oitenta. Ficando-se a saber da trucidante aventura que foi concretizar o remake da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard, esperar-se-ia uma figura taciturna, talvez mesmo uma personagem na defensiva, o artista maldito ainda e sempre vergado por uma cruz que carregou e levou a um porto tramado, mas nada esteve tão longe de qualquer desses clichés. Forever young, acompanhado da esposa, de um filho e de uma filha ainda jovens, estivemos na presença de um puro saído de um filme de Frank Capra, um Mr. Smith ou um John Doe no que ao coração diz respeito, lembrando o James Gray que há uns anos apareceu no festival Lisboa / Estoril com uma ninhada de filhos a agarrar-lhe a gabardina enquanto este contava a rir-se as suas lutas com os executivos televisivos que rapidamente o despediram. O tipo de sensibilidade, de desprendimento e de humor de quem foi percebendo as regras do jogo, o significado das pequenas mas únicas vitórias que importam, as mãos limpas e a grandeza de quem não sugou o sangue oferecido em bandejas douradas mas antes resgatou o brilho e a redenção essenciais de arenas tão retorcidas. Homens que saíram da elevação do cinema clássico americano para as terríveis aventuras do cinema moderno, não vendendo a alma ao diabo. McBride filmou com dinheiro, sem dinheiro, com a película de 16mm e a câmara na mão emprestada e a ferver de ideias mas também com stars e muitos camiões de produção, deu o seu toque a um episódio de Six Feet Under quinze anos depois de ter caído na Twilight Zone. O esfomeado que se perdeu de amores pelos falsos raccords, pela energia renovadora e pela juventude de Godard ou de Truffaut é ainda um dos últimos representantes da dura cepa dos valores de John Ford ou Howard Hawks. Sem resquício de bazófia ou de ressabiamento, apreciando nos dias de hoje em que não vai filmando tanto Wong Kar-Wai como Nuri Bilge Ceylan. Nascido em 1941, é um iniciante.
«About the future, which I don't know, you don't know! Nobody knows it! So fuck it, roll the dice!»
Quando se sugeriu a McBride a realização de um double bill em Braga com os dois Breathless a sua humildade voltou a dar cartas, disparando imediatamente que talvez fosse uma seca para os espectadores, ver a mesma história duas vezes... E apesar do fascínio, da admiração de fã número um ou da aproximação sempre imprevisível ao monstro sagrado – Mc contou ainda que uma vez falou ao vivo com Godard mas ele, já taciturno, quase só deu os bons dias – não existe nada de reverência contraproducente ou de citação fácil – mesmo que se prove que a iconografia e a carga explosiva está do lado de Pierrot le Fou, não vai ser Rimbaud a esbracejar mas algo bem mais instintivo e primário. Godard, nos seus filmes e nos seus escritos, ensinou muitas vezes como amar os «bons americanos» - de John Wayne a Manny Farber – e o filme de 1983 tem orgulho disso. Richard Gere emula Jerry Lee Lewis e baila com Sam Cooke, imita Jesse James ou os vertiginosos de Gun Crazy do filme de Joseph H. Lewis para encontrar a polaroid, o super-herói ou a verdade crua e espampanante de si mesmo. O movimento geral e a electricidade não vão sobre os trilhos e estrilhos do jazz modernista ou da pirotecnia estilística mas antes desliza na Americana clássica da velha Hollywood de fundos falsos, céus encarnados a fogo como os sentimentos em causa ou espalhando magia pela escala de planos infalível dos tarefeiros – e neste ponto a participação, as viagens e a poética fascinante do texano L.M. Kit Carson no argumento serão decisivos; Americana que não significa nostalgia vácua, muito menos mediação simbólica, antes fusão e luta com os quadradinhos da banda-desenhada cósmica que se debate entre o amor mais puro e a liberdade do absoluto, embate com o precioso cinema ele mesmo nessa cena orgástica em que o fugitivo possui a miúda na parte de trás da tela, numa assunção dessas imagens e sobretudo dos diálogos míticos mas também numa violação desses códigos e da subtileza de uma arte que sugeria mais do que mostrava, respiração frenética do beatnik de Kerouak torcendo e digerindo as ondas jazzísticas. De Las vegas, passando pelo deserto até Los Angeles e suspirando pelo México com o mesmo fôlego ou falta dele com que Jesse deseja a miúda francesa – a devolução principal de Mc a Godard – o Breathless de 83 é uma obra puramente americana e que mete em causa toda essa mitologia. Um filme com tomates, como tudo o que é singular.
Sob o signo de um nova Americana que aglutina e mete em guerra o classicismo e a Nova Hollywood dos anos setenta, mas capitalmente sob o domínio ou a tragédia da figura primitiva do hustler. Que pode ser o citado Jesse James, Theodore Roosevelt, o Paul Newman do filme de Robert Rossen, Michael Jordan, Sean Combs ou qualquer um dos biliões de anónimos nessas pradarias ou bilhares que perderam e dobraram a parada. Para mesmo aqui a questão e a moral ser fugidia, ambigua, sem centro, em dialécticas essenciais, precisamente actuando à maneira dos hustlers originais – cowboys ou matadores, colonizadores ou índios – ao exemplo da inacreditavelmente bela e perigosa cena da piscina, em que ele assume a ela o “tudo ou nada” do seu credo, para lá do “tudo” ou do “alguma coisa”; ou, talvez ainda mais sintomático, quando William Faulkner é contradicto para se preferir o “nada” à “dor”, chegando-se mesmo a utilizar o maior escritor americano como quem ousa cortar a rede do abismo sexual. Pelos fundos barrocos ou pós-modernistas de neons tipicamente anos oitenta, composições fotográficas ludibriantes ou ruínas plásticas, estamos mais uma vez no Romeo and Juliet de Shakespeare e soterrados na profusão de símbolos, estampas, iconografias e lixo dos novíssimos tempos. Talvez por aí o mais bonito, a dádiva deste remake parido viciado e virgem a um mesmo tempo, seja o movimento da bela, da Monica Poiccard feita por uma Valérie Kaprisky bazada da idealização da BD para a carne bruta desta paisagem suja, aura total utilizada assim por uma única vez: inicia-se cheia de medo, a tremer e a pedir ao delinquente que se vá embora, “não fode nem sai de cima”, preservando as cunhas e as saídas profissionais a todo o custo, para... lentamente, percebendo e vendo o incêndio no corpo e no espírito do Jesse ressuscitado do mito e da lenda e do pó americano, se entregar toda e nada como no mundo do cinema, esticando a ilusão até ao tiro final que como nas fitas irá ficar suspenso. Suspensão e fôlego, são estas as velocidades e o tempo que importam. Obrigado pela coragem, Mr. McBride. E volte sempre que quiser.