domingo, 24 de março de 2024

Bitter Victory (1957) de Nicholas Ray



por Jean-Luc Godard

Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rosselini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora, há o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. 

Porque permanecemos insensíveis perante as fotografias de Cruel Vitória, embora saibamos que são fotografias do mais belo dos filmes? Porque nada exprimem. Eis. Enquanto que uma só fotografia de Lilian Gish basta para simbolizar O Lírio Quebrado, uma só de Charles Chaplin Um Rei em Nova Iorque, uma só de Rita Hayworth A Dama de Xangai, até mesmo uma só de Ingrid Bergman Helena e os Homens, a fotografia de Curd Jürgens perdido no deserto, ou de Richard Burton na tela. Um abismo separa a fotografia do filme. Um abismo que é um mundo. Um mundo que é o cinema moderno. 

É neste sentido que é possível dizer-se que Cruel Vitória é um filme anormal. Não já nos interessamos pelos objectos, mas por o que entre eles há, por o que agora se torna também objecto. Nicholas Ray obriga-nos a olhar como real o que, até ele, nem por irreal olhávamos, o que não olhávamos simplesmente. Cruel Vitória assemelha-se a um desses desenhos onde se pede às crianças que descubram um caçador por entre um emaranhado de linhas aparentemente sem outra significação. 

Importa não dizer que por detrás do ataque dos comandos ingleses ao Q.G. de Rommel se esconde o símbolo da nossa época, porque não há por detrás nem por defronte. Cruel Vitória é o que é. Não temos dum lado a realidade, que seria o conflito de Leith e do capitão Brand, e do outro a ficção, que seria o combate da coragem e da cobardia, do medo e da lucidez, do isto e do aquilo. Não se trata nem de realidade nem de ficção, nem de uma sobrepondo-se à outra. Trata-se doutra e bem diversa matéria. Creio que diria que de estrelas e de homens que gostam de olhar as estrelas e sonhar. 

Esplendorosamente montado, Cruel Vitória é superiormente interpretado por Curd Jürgens e por Richard Burton. É a segunda vez depois de E Deus Criou a Mulher que acreditamos na personagem de Curd Jürgens. Quanto a Richard Burton que sempre se soube salientar em todos os seus precedentes filmes é, dirigido por Nicholas Ray, absolutamente sensacional. Importa pouco que se lhe chame um Wilhelm Meister 1958. Porque seria também pouco dizer que Cruel Vitória é o mais goethiano dos filmes. Que interessa refazer Goethe, ou refazer seja o que for, D. Quixote ou Bouvard e Pécuchet, J’accuse ou Voyage au bout de la nuit, uma vez que já o foram? Que é o medo, o amor, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a morte? Qual a sua importância, quando olhamos as estrelas? 

Nunca antes as personagens de um filme pareceram tão próximas e ao mesmo tempo tão distantes. Confrontados com as ruas desertas de Benghazi ou com as dunas, pensamos de repente e pelo espaço de um segundo noutra coisa - os snack-bars nos Campos Elísios, uma rapariga de quem se gostava, e, tudo e mais alguma coisa, mentiras, a perfídia das mulheres, a futilidade dos homens, jogar nas slot machines. Porque Cruel Vitória não é um reflexo da vida, é a própria vida transformada em filme, vista por detrás do espelho em que o cinema a intercepta. É ao mesmo tempo o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema. 

Como se pode falar de um filme destes? Qual é o sentido de dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curt Jürgens observa é montado com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma das cenas durante as quais fechámos os olhos. Porque Cruel Vitória faz-nos fechar os olhos, como o sol. A verdade cega-nos. 

in «Au delà des étoiles», Cahiers du Cinéma nº 79, Janeiro de 1958.



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