por Carlos Melo Ferreira
«O aparecimento de uma nova geração, que juntamente com aquela que é proveniente do início do cinema sonoro, se torna famosa durante os anos 50, impõe-se com cineastas de prestígio, com nomes como George Stevens, William Wyler, John Huston, Fred Zinnemann, Billy Wilder e Douglas Sirk, entre os mais antigos, ou Joseph L. Mankiewicz, Vincent Minnelli, Stanley Donen, Anthony Mann, Nicholas Ray, Joseph Losey e Elia Kazan, entre os mais novos).»
Carlos Melo Ferreira, in «Cinema Clássico Americano – Géneros e Génio em Howard Hawks», Edições 70, 2018.
A minha memória do cinema começa pelo western, e por isso devo-lhe pelo menos isto: escrever sobre o género que foi o meu favorito na sua época de maior fulgor. Estou aqui um tanto limitado pelos excelentes ensaios de Jacques Rancière "Poétique d'Anthony Mann" e "Poétique de Nicholas Ray"[1], que há muito tempo fizeram já o tratamento exaustivo de dois cineastas centrais dos anos 50 que vou de seguida abordar. Respeitando essas fronteiras, irei tentar perceber de que modo Anthony Mann e Nicholas Ray foram centrais numa redefinição do western na década em que os géneros, em geral, e o western, especial, atingiram no âmbito da Hollywood clássica o seu apogeu, a sua maior e final depuração.
Oriundo da Série B dos anos do pós-guerra, Tony Mann vai dar o salto com a sua passagem para o western em Winchester 73 e Almas em Fúria/The Furies (1950), o primeiro o primeiro dos cinco westerns em que vai dirigir James Stewart, o segundo de inspiração shekespeariana. Tudo isso era fundamental já quando André Bazin escreveu a primeira poética do western[2], em textos exigentes e certeiros, como era seu apanágio.
Ora nesses cinco westerns com Jimmy Stewart, entre 1950 e 1955 Mann reinventou o western clássico antes de ele ter atingido o seu zénite entre os clássicos, com A Desaparecida/The Searchers, de John Ford (1956) - antes de Os Cavaleiros/The Horse Soldiers (1959) e de O Sargento Negro/Sergeant Rutledge (1960) -, e Rio Bravo de Howard Hawks (1959) - depois de O Rio Vermelho/Red River (1948) e Céu Aberto/The Big Sky (1952). Quer isto dizer que, antes ainda de ter sido dita a última palavra pelos clássicos, já sobre o assunto ele estava a fazer novo e diferente, acolhendo-os e antecipando-os no seu fulgor crepuscular, assim rivalizando com eles.
Vou mesmo escolher os dois westerns finais, antes de Cimarron (1960), de Anthony Mann, porque penso que neles o cineasta se liberta da crispação fundamental de Jimmy Stewart para, com actores da sua estatura, enfrentar uma serenidade, em Sangue no Deserto/The Tin Star (1957), e uma revolta, em O Homem do Oeste/Man of the West (1958), o primeiro com Henry Fonda, o segundo com Gary Cooper.
Em Sangue no Deserto temos uma história de iniciação comparável à de A Desaparecida mas em concentrado, num filme centrado numa cidade de que só se sai por boas razões: para a instrução do jovem sheriff, para a última viagem do Doc e para a memorável captura na gruta. No final, antecipando Hawks mas na linha de Fritz Lang, o gabinete do sheriff com a sua prisão é cercado para o próprio jovem sheriff dar provas de que aprendeu a lição.
Devo confessar que sempre achei estranho este final. Pessoalmente, teria preferido a morte do jovem sheriff e que o caçador de prémios indigno o substituísse, mas Anthony Mann sabia então muito mais do que eu sei hoje, e este foi um filme que eu vi em estreia. Olhando a partir de hoje, percebo que este filme antecipa em preto e branco optimista um O Homem do Oeste a cores em que o cineasta faz Gary Cooper viajar até ao fim da noite num conflito shakespeariano para dele sair intacto da sua fúria. E Fonda tinha sido Wyatt Earp em A Paixão dos Fortes/My Darling Clementine (1946) e um émulo do General Custer em Forte Apache/Fort Apache (1948), ambos de John Ford, enquanto Cooper tinha sido o Sargento York/Sergeant York para Howard Hawks (1941) e o sheriff abandonado por todos em O Comboio Apitou Três Vezes/High Noon, de Fred Zinnemann (1952), um dos grandes westerns dos anos 50.
A mitologia do western passa, nos anos 50, por este duplo tour de force, em que a tranquilidade e a revolta modernamente se impõem em termos superiores.
Nicholas Ray é outra história, pois desde o início, mas sobretudo em Johnny Guitar (1954), introduz a complexidade dos sentimentos e das personagens no esquema clássico dos géneros, em especial do western, assim subvertido. Aí, como em Sangue no Deserto, está em causa o enforcamento segundo a lei de Lynch, mas a lei está praticamente ausente e os protagonistas tornam-se fugitivos daqueles que pretendem interpretá-la e aplicá-la por vingança.
As mulheres ganham um novo protagonismo, ao arrepio do western clássico, como em Almas em Fúria, sinalizando a chegada de uma nova era, em que vão passar a ter um novo papel. Há alguma coisa de atípico mas tipificado em termos originais, novos e modernos, neste filme, com os seus vigilantes vestidos de negro, que nem por sombras perpassa no universo de Anthony Mann, em que as personagens surgem ainda desenhadas segundo uma configuração clássica, depurada, susceptível de acolher o preto e branco, muito embora O Homem do Oeste dê conta de um sobressalto temático que é também estético e até plástico. Os dois outros westerns de Nick Ray, O Fugitivo/Run For Cover (1955) e A Justiça de Jesse James/The True Story of Jesse James (1957), vão manter essa marca original, com a cor a desempenhar um papel fulcral como no Guitar/Vienna film.
A clivagem entre ambos, pelo menos no western, passará pois por um Mann como o último dos clássicos e um Ray como o primeiro dos modernos. Por isso mesmo eu gosto de pensar sobre eles um impensável, que é um Johnny Guitar a preto e branco e um Sangue no Deserto a cores, que representariam a negação da natureza de cada um deles.
Claro que nos 50 há também Delmer Daves e O Comboio das 3 e 10/3:10 to Yuma (1957), baseado em história de Elmore Leonard (1925-2013), em que um rancheiro, Dan Evans/Van Heflin (saído de Shane, de George Stevens, 1954) tem de transportar um bandido preso, Ben Wade/Glenn Ford (que ascendera à fama na década anterior e seria o actor favorito do cineasta), para apanhar o comboio que o levará para a prisão, o que só consegue cumprir por si próprio e graças à colaboração final do próprio preso. E se este filme nos interessa em especial é porque ele subverte parcialmente o esquema clássico do western, seguido nomeadamente por John Sturges, pondo-o em causa para, a preto e branco, nos devolver à solidão do herói ameaçado e deixado só por todos, como em O Comboio Apitou Três Vezes, para enfrentar um bandido sedutor e o seu bando. No ano seguinte Daves faria Como Nasce um Bravo/Cowboy, de novo com Glenn Ford e com um muito jovem Jack Lemmon, e Os Homens das Terras Más/The Badlanders, para dois anos depois concluir os seus westerns, iniciados com A Flecha Quebrada/Broken Arrow (1950) e prosseguidos com A Última Ordem/Drum Beat (1954), Jubal e A Última Caravana/The Last Wagon (1956), com Raízes de Ouro/The Hanging Tree, o filme de Cooper a seguir a O Homem do Oeste.
Mas se há um fulcro do western nos anos 50, definidor em termos poéticos de um género, ele passa pelo eixo Mann-Ray, que do lado do primeiro em filigrana Budd Boetticher, o cineasta de que Bazin se ocupa em especial, vai levar a um extremo final de depuração em sete westerns com Randolph Scott entre 1956 e 1960 - depois deles, dele só mesmo um western moderno, um anti-western ou uma paródia do western.
Nos anos 60, já com Sam Peckinpah, Monte Hellman, Sergio Leone e outros italianos nos seus respectivos inícios, o western fecha com Terra Bruta/Two Rode Together (1961), O Homem Que Matou Liberty Valance/The Man Who Shot Liberty Valance (1962) e O Grande Combate/Cheyenne Autumn (1964), de Ford, El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970) de Hawks, A Carga da Brigada Azul/A Distant Trumpet (1964) de Raoul Walsh, muito bom mas já inferior aos seus grandes westerns dos anos 50: A Caminho da Forca/Along the Great Divide e As Aventuras do Capitão Wyatt/Distant Drums (1951), Sob o Signo do Mal/The Lawless Breed (1953), Duelo de Ambições/The Tall Men (1955), Um Rei e Quatro Rainhas/The King and Four Queens (1956). Mas haveria também que chamar a atenção para os fabulosos westerns Série B de Allan Dwan nos anos 50: Flor Bravia/Montana Belle (1952), Falsa Justiça/Silver Lode e A Rainha da Montanha/Cattle Queen of Montana (1954), Rivalidade/Tennessee's Partner (1956) e The Restless Breed (1957). E para os de Jacques Torneur: Stars in My Crown (1950), Wichita (1955), Terra Sangrenta/Great Day in the Morning (1956) - os de William Wellman (Assim São os Fortes/Across the Wide Missouri e Caravana de Mulheres/Westward the Women, 1951, Track of the Cat, 1954), Henry King (O Aventureiro Romântico/The Gunfighter, 1950, O Vingador sem Piedade/The Bravados, 1958), André De Toth, Sam Fuller, Joseph H. Lewis e muitos outros menores na Série B. Mas haveria sobretudo que notar Sob a Bandeira da Coragem/The Red Badge of Courage (1951) e O Passado Não Perdoa/The Unforgiven (1960), ambos de John Huston, Apache e Vera Cruz (1954), de Robert Aldrich, Homem Sem Rumo/Man Without a Star (1955), de King Vidor, O Rancho das Paixões/Rancho Notorious (1952), de Fritz Lang com Marlene Dietrich, Rio Sem Regresso/River of No Return (1954), de Otto Preminger com Marilyn Monroe. Sem esquecer que os maiores, Anthony Mann e Nicholas Ray, acabaram ingloriamente nos anos 60 a dirigir super-produções históricas, pelas quais talvez sejam hoje em dia mais conhecidos, enquanto Delmer Daves, que tinha começado a trabalhar no cinema no final dos anos 20, acabaria no melodrama.
Neste contexto, um cineasta-actor como Clint Eastwood, depois de ter participado da glosa paródica de Sergio Leone como actor, surge como realizador de western com uma pertinência póstuma, fora do tempo certo e muito depois dele. Mas mais: considerando-o (ao contexto), embora se concorde que o western é um género mais ético do que épico, podem considerar-se como precipitadas simplificações as afirmações de Gilles Deleuze sobre um western de pequena forma da Imagem-Acção[3].
A poética do western é a da epopeia, da saga da conquista do Oeste que no Século XIX permitiu o nascimento de uma nação contra os que se lhe opuseram, não só os índios, que só a partir dos anos 50 começam a ser encarados de outra maneira pela mitologia do género, o que foi muito importante, mas os que do interior a quiseram dominar, uma expansão territorial por terras selvagens de que próprio western terá largamente exagerando os factos, como o peremptório “print the legend” de O Homem Que Matou Liberty Valance veio dizer para fechar e As Portas do Céu/Heaven's Gate (1980), de Michael Cimino, postumamente pretendeu demonstrar, permitindo defender contra o anterior: "print the facts". Uma poética da acção e da construção. De uma luta sem desfalecimento para cumprir uma missão, atingir um objectivo, estabelecer ou restabelecer a lei, frequentemente travada de forma solitária. Mas também uma poética da natureza em que organicamente se resolvem em duelo os conflitos instalados para que triunfem a verdade, a justiça e a bondade.
O western foi, assim, o verdadeiro filme histórico americano sobre a própria América, de que O Rio Vermelho de Hawks foi a "Ilíada" e A Desaparecida de Ford a "Odisseia" (e, não por acaso, eles foram os maiores entre os melhores clássicos do cinema americano e ambos os filmes foram interpretados por John Wayne), acompanhados por muitos outros grandes filmes de outros grandes cineastas, clássicos e modernos, que completaram uma epopeia que, como tal, só no cinema atingiu a sua plena dimensão.
[1] Jacques Rancière: "Quelques choses à faire: poétique d'Anthony Mann" e "Le plan absent: poétique de Nicholas Ray", in "La fable cinémagraphique", Paris, Seuil, 2001, páginas 105 e 127, o primeiro originalmente publicado em "Trafic - Révue de Cinéma", nº 3, Verão de 1992 (Paris, P.O.L.).
[2] André Bazin: "Le western ou le cinéma américain par excellence" (1953), "Évolution du western" (1955) e "Un western exemplaire: «Sept hommes à abattre»" (1957), in "Qu'est-ce que le cinéma?", Paris, Les Éditions du Cerf, 1981 para a édition définitive, páginas 217, 229 e 241 (edição portuguesa "O «western» ou o cinema americano por excelência", "Evolução do western" e "Um western exemplar: Sete homens para matar", in "O que é o cinema?", Lisboa, Livros Horizonte, 1992, páginas 231, 243 e 255).
[3] Gilles Deleuze: "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 202-209 e 226-231.