segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Casa de Lava (1994) de Pedro Costa



por Carlos Melo Ferreira

MELANCOLIA

Um Leão que morre/não morre, um Leão cabo-verdiano atrás de quem vai uma Mariana, enfermeira (Inês de Medeiros), de Lisboa para as ilhas de Cabo-Verde. 

Desconhecedora das estórias locais, dos enredos tecidos entre as pessoas, brancas e negras, Mariana vai progressivamente acedendo ao conhecimento do que antes apenas entrevira da vida: fogo e cinzas. 

Este, penso, o primeiro grande mérito de Pedro Costa, nesta sua segunda longa-metragem: identificar-nos com a protagonista que, chegada a um local que desconhece, aos poucos vai entrando no meio, num percurso feito de descobertas, frequentemente dolorosas. 

No entanto, se fosse só isso, apesar de tudo, demasiado fácil, demasiado convencional. Com grande sageza, o cineasta faz com que, a partir da recuperação de Leão, tudo se volta a baralhar de novo, tornando difuso, incerto o saber de Mariana, assim devolvida ao mistério da terra e das gentes. 

Pedro Costa, que já dera muito boa conta de si no seu primeiro filme, O Sangue, de 1990, volta a surpreender-nos muito agradavelmente, de novo também ao nível da construção cinematográfica. 

Voltadas para dentro, para si mesmas, como Leão, as personagens negras e brancas de Casa de Lava, vivem uma insularidade escassamente comunicante com o exterior, de que, todavia, dependem (de onde uns chegam, para onde outros partem). 

Deste modo, assume visibilidade uma dupla referência: a do passado, a História a partir de estórias pessoais, desde o tempo da colonização Portuguesa (a memória do campo do Tarrafal), e a do Portugal distante, mito e miragem de um futuro melhor para os elementos da população local. 

Também neste aspecto Mariana serve de articulador narrativo, porque ela é, porventura juntamente com Leão, a personagem que sabe sobre Sacavém. 

O cineasta assume plenamente, em termos visuais, o fechamento e as adaptações, as mutações das personagens. Por isso transforma Casa de Lava num filme secreto e intimo sobre a memória e o tempo, a partir da ideia, sempre presente, de distância física, de terras do fim do mundo numa ilha, a do Fogo, sobre um vulcão. 

Esse trabalho sobre o tempo na narrativa encontra equivalente perfeitamente á altura no espaço sobre o espaço e o tempo em termos visuais. 

A geometria dos planos é, neste filme, sempre rigorosamente, definida, dos limites do quadro para as linhas horizontais, verticais e diagonais que atravessam o plano. Em profundidade as personagens movem-se como se sugadas por uma vertigem de espaço-tempo, que é também ela vulcânica e que os movimentos laterais no plano não anulam. 

O tempo de cada plano, que tinha sido das coisas mais surpreendentes de O Sangue, volta a surgir como tradução de uma duração interior para as personagens, que se transfere para o espectador. Os planos mais longos duram o que precisam de durar, e a transição de um plano para o outro, por contraste ou por semelhança, é feita por uma montagem estruturante que, por isso mesmo, assume a função de articulador fílmico central. 

Mas nesse espaço e nesse tempo fílmicos sente-se, para além do mais, o ser físico, carnal, como o ser interior, fantomático das personagens, o que confere ao filme uma vibração peculiar, singularmente emotiva. 

Se Pedro Costa se sai bem deste filme é também porque nele lida com muito acerto com os actores. Em especial o seu trabalho com Inês de Medeiros chega, por fulgurações sucessivas, a atingir o sublime, e, à medida que o filme se aproxima do seu termo, o rosto dela, sem deixar de ser o seu, como que reflecte ou revela rostos femininos dos que mais marcaram a História do Cinema (Anna Magnani, Ingrid Bergman, entre outras, nos filmes de Rosselini, nomeadamente – por demasiado literal, a citação chega a ser excessiva…). Mérito de Inês? Sem dúvida. Mas também, seguramente, mérito de Pedro. 

Com este Pedro e esta Inês, juntamente com outros e outras que andam por aí à solta, talvez seja mais que uma lufada de ar fresco que atravessa hoje o cinema Português. 

in «Cinema» nº 24, Agosto-Outubro de 1995

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

143ª sessão: dia 26 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta semana voltamos ao cinema de Pedro Costa, que tem estado connosco desde a estreia do cineclube e do qual já vimos O Nosso Homem, No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha (apresentado em vídeo pelo professor Carlos Melo Ferreira) e Cavalo Dinheiro. Sabendo do fascínio que Carlos Melo Ferreira sempre teve pela obra do cineasta português, dedicando-lhe um livro publicado ainda o ano passado, exibimos a sua segunda longa-metragem, Casa de Lava, a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

No início da entrevista dada ao jornal Público por alturas da estreia do filme, Pedro Costa diz que "a Mariana é a única coisa de ficção que ficou no filme, em todas as suas componentes, traços, movimentos, sítios por onde passava, frases - foi o único diálogo onde não se mexeu, para além do trabalho normal de rodagem. Tudo o resto foi trabalhado à medida das pessoas, os cabo-verdianos, que ia encontrando. A vaga memória que tenho do argumento é a de uma história romanesca, num sítio exótico, com variadíssimos "pastiches" do I Walked with a Zombie [Jacques Tourneur], do Lord Jim, dos filmes de aventura do Tourneur, dos livros do Conrad, dos filmes de Fritz Lang. De todo o lado vinha uma frase, um cheiro. Mas o mais interessante foi que a decisão de partir para o mais longe possível nos aproximou - a mim, ao Pedro Hestnes e à Inês - de nós próprios.

"Acho que o filme é feito desse movimento: é um filme, por esse afastamento, muito mais aberto ao mundo político, social, e à vida, e que me esconde mais do que O Sangue. A Inês vejo-a muito pegada a mim, é o meu lado feminino nos dois filmes. Sou eu em mulher. Mas os outros - os cabo-verdianos, e quando falo nos cabo-verdianos falo no Pedro Hestnes, na Edith [Scob] e no Isaach [de Bankolé] - escondem-me muito. Tinha a sensação de que O Sangue era um filme de exposição, feito sobre sensações e sentimentos, em que tentávamos a todo o custo expor-nos e ser sinceros - quando no fundo estávamos a ser enganados pelo cinema."

No seu antigo blog, Disco Duro (que tem novas entradas em 2018 e até 2019), Luís Miguel Oliveira escreveu que "quando Casa de Lava estreou em 1995, ninguém, nem mesmo os que imediatamente o reconheceram como um título capital, podia imaginar o rasto – o rastilho – que este filme deixaria na obra de Pedro Costa. Esse rastilho ainda não deixou de arder, como sabe quem tem acompanhado essa obra, e como pôde confirmar quem já tiver visto o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro. Mas em 1995 era inimaginável a consequência que Casa de Lava teria, ou a descendência: num certo sentido que não é preciso rebuscar muito, quase o que tudo o que Costa fez entre Ossos e Cavalo Dinheiro é um “filho” deste filme. 

"Rebuscando um bocadinho mais, aqueles planos do vulcão em erupção, o fogo na Ilha do Fogo, que abrem Casa de Lava (e que são extraídos a Erupção da Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro), têm hoje um duplo sentido: não anunciam apenas a natureza de um território específico, a ilha caboverdeana onde o essencial do filme decorre, anunciam também essa “lava” que Pedro Costa ainda não deixou de trabalhar. O espectador que nunca tenha visto Casa de Lava, mas conheça a obra posterior do realizador, não deixará de se espantar com a quantidade de coisas – por exemplo a carta dos “cem mil cigarros” – que aqui se prefiguram ou que depois serão liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes."

Já Chris Fujiwara, no grande empreendimento editado por Ricardo Matos Cabo e chamado Cem Mil Cigarros - Os Filmes de Pedro Costa, escreve que "Casa de Lava é uma história de mistério cujo mistério reside no rosto das personagens, nos seus gestos, objectos e histórias, entre os quais as ligações são obscuras e aparentemente insondáveis. "Há muita coisa que menina não sabe nem adivinha", diz-se a Mariana; ou então: "Tu não sabes nada!" Os diálogos negam constantemente o conhecimento, ou então aludem à dificuldade em compreender, dando a entender que não é preciso resolver o mistério do filme e que é melhor não o perceber demasiado depressa.

"O mistério das origens ganha uma importância extrema. Casa de Lava torna as origens num problema, levando-nos a perguntar, em relação às personagens, de onde virão e para onde irão - e deixando-nos sem resposta clara. "- O Leão é seu filho? / - A Alina tem mais de vinte"; "- Porque é que vieste? - Não devias ter vindo"; "- Ela é tua mãe, não é? / - Esquece-a." Mariana assume, ou usurpa, a função de mãe, fazendo de Leão o seu filho adoptivo. Pergunta-lhe: "De que é que se lembra?", e ele responde, recompensando-a com as palavras de um filho inspirado: "Do sangue, do Escuro, [...] das tuas mãos, do teu cheiro." Ela gostava de acreditar, como lhe diz, que ele "agora vai começar uma vida nova". Mas vai-se embora quando lhe falam de uma outra vida nova, a do rapaz que Leão perfilhou. (Mariana passa grande parte do filme a afastar-se de outras pessoas - um percurso estranho para uma enfermeira: está sempre a partir, mas é difícil dizer para onde se dirige.)"

Até Quinta!

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Sanma no aji (1962) de Yasujiro Ozu



por Yoshishige Yoshida

«Ozu é o tempo da vida real entre gerações, com sacrifícios familiares, em planos longos, estáticos ou dinâmicos, em movimento - "Viagem a Tóquio" mais importante que "Viagem em Itália" de Rossellini, com o peso familiar superior ao do milagre do casal.» 

Carlos Melo Ferreira, in «Some Like it Cool». 

DUAS MEMÓRIAS INESQUECÍVEIS 

Quando falo sobre o realizador de cinema Ozu Yasujiro, é natural para mim chamar-lhe de Ozu-san devido a duas memórias inesquecíveis que tenho dele. A primeira teve lugar há mais de trinta anos a Janeiro de 1963 num restaurante em Kamakura. O Clube de Realizadores dos Estúdios Shochiku Ofuna, a que eu e Ozu-san pertencíamos, realizou lá uma festa de Ano Novo. Lembro-me claramente dessa noite como se fosse ontem porque pensei nela com frequência. Ozu-san era o membro mais velho entre os quinze ou mais realizadores que estavam na festa e estava sentado no lugar "mais alto" do fundo da sala, mesmo no tokonoma (a alcova das salas de estilo japonês). Eu era o mais novo e estava sentado no lugar "mais baixo", mesmo à beira da saída. 

Quando a festa começou, Ozu-san apareceu e sentou-se ao meu lado, servindo saqué no meu copo sem dizer uma palavra. A partir daí e até à festa acabar, Ozu-san e eu bebemos saqué juntos sem trocar muitas palavras. Por causa disso, a festa de Ano Novo, que devia ter sido uma ocasião feliz, para mim foi mais como um funeral. 

No entanto, sei muito bem porque é que Ozu-san fez uma coisa tão estranha. No Outono anterior, eu tinha escrito uma crítica ao último filme de Ozu-san, Kohayagawake no aki (1961), para uma revista, afirmando que não parecia um filme de Ozu. Kohayagawake no aki tinha cenas destinadas a atender a um público mais jovem. Como eu próprio era jovem, fui sensível à intenção dele, e apontei isso. Em vez de discutir comigo, Ozu-san ofereceu-me saqué em silêncio. Era a sua resposta muito à Ozu. Ozu-san era esse tipo de pessoa. 

A certa altura da noite, quando Ozu-san estava a ficar um bocado bêbado, disse-me casualmente, "Afinal, os realizadores de cinema são como prostitutas debaixo da ponte, a esconder as caras e a chamar clientes." Isto era uma expressão típica de Ozu-san, plena de ludicidade e humor. Muito provavelmente, Ozu-san estava a dizer de forma metafórica que o cinema tem tudo que ver com comercialismo. Ao mesmo tempo, devia-me estar a perguntar se seria possível fazer filmes fora da influência do comércio. 

Claro que eu não sei qual foi a sua verdadeira intenção ao usar esta metáfora. Talvez não fosse suposto eu percebê-lo, porque Ozu-san falava sobre tudo sempre de forma brincalhona e não queria que as suas palavras fossem levadas a sério. 

A outra memória inesquecível que tenho de Ozu-san foi em Novembro do mesmo ano, quando o visitei num hospital universitário em Ochanomizu, Tóquio. A saúde de Ozu-san não estava muito bem, e desde essa Primavera que andava dentro e fora do hospital. Tinham-me dito que tinha cancro no final do Verão. 

Lembro-me de ser um dia frio e chuvoso de final de Outono. Quando visitei a ala de oncologia, o corpo outrora grandioso de Ozu-san parecia esquelético. No entanto a mente dele estava lúcida. Agradeceu-me pela visita e depois ficou em silêncio. Eu também estava sem palavras porque Ozu-san tinha mudado imenso. Mas quando eu estava prestes a sair, Ozu-san murmurou-me, "O cinema é drama e não acaso." Murmurou-mo duas vezes como se estivesse a falar sozinho. Essas foram as últimas palavras de Ozu-san, para mim. 

Ozu-san faleceu um mês depois a 12 de Dezembro, no seu sexagésimo aniversário. Passaram trinta anos, e eu tenho a mesma idade que Ozu-san quando morreu. Ozu-san nunca gostou de dizer aquilo que realmente pensava. Parecia acreditar que fazê-lo era imprudente. E provavelmente ficaria irritado se eu levasse as suas palavras demasiado à letra, mas o que ele me disse nesse hospital volta muitas vezes para me assombrar; "O cinema é drama e não acaso." Quando Ozu-san disse isto, eu fiquei atónito e confuso. Senti muita inveja dele porque ele sabia que estava a morrer mas ainda era brincalhão e gostava de expressões paradoxais. 

Ozu-san evitava elementos dramáticos nos seus filmes o máximo possível, apresentando os acontecimentos como se fossem acidentes simples, espontâneos. Os actores estavam estritamente proibidos de interpretações excessivamente dramáticas, e nunca eram autorizados a passar intencionalmente de conversas e comportamentos normais. Quando Ozu-san disse no seu leito de morte, "O cinema é drama e não acaso” – contradizendo a nossa acepção de que o seu mundo cinematográfico é tipicamente não dramático – qual era a sua verdadeira intenção? 

Suponho que Ozu-san quisesse dizer que os incidentes diários simplistas que ele representava podiam ser interpretados como os verdadeiros dramas, e, por contraste, as histórias retratadas em muitos outros filmes não eram nada senão acidentes fabricados e artificiais. No entanto, mesmo que percebamos isto, as últimas palavras de Ozu-san ainda não parecem naturais porque tinham dois conceitos vincadamente contrastantes como premissa. Ele fez claramente uma linha de demarcação a dividir uma afirmação e uma negação: "Cinema é drama" e "não acaso." Esta clareza e esta franqueza eram completamente diferentes da forma de falar normalmente suave, ambígua e extremamente brincalhona de Ozu-san. 

Na verdade, Ozu-san nunca se atreveria a defender a si próprio directamente ao lidar com críticas de que faltava drama ao seu cinema; em vez disso, teria simplesmente feito pouco do caso, ou ignorado. Será que, por uma vez na vida, Ozu-san exteriorizou os seus verdadeiros sentimentos diante da morte? 

Em todo o caso, as suas últimas palavras estão divididas de forma tão clara numa afirmação e numa negação que deve estar lá escondido outro sentido, e assim as suas palavras voltam até mim ocasionalmente e deixam-me confuso. 

Nos parágrafos acima, provavelmente usei expressões como "típico" ou "normal" demasiado livremente. Escrever continuamente "típico Ozu-san" ou "à Ozu" cria uma reiteração exagerada da mesma formação de palavras. No entanto, não consigo evitar usar expressões dessas porque as palavras de Ozu-san mudam constantemente de sentido dependendo de quem as ouve. A partir do momento em que ocorre um sentido particular a uma pessoa, alguém pensa imediatamente noutro. Sente-se tanta amplitude e profundidade nas suas palavras. Como resultado, sinto-me preso, incapaz de decidir o que é que significa. Portanto uso as palavras "típico de Ozu-san" com alguma relutância. É escusado dizer que não havia nada "à Ozu" nos filmes finais de Ozu-san. Eram um mundo onde o sentido flutua incessantemente, liberto de designações específicas. 

Dito isto, os leitores não vão achar estranho ver o cinema de Ozu-san descrito de maneira tão repetitiva e absurda. De facto, é por os descrevermos carinhosamente por "à Ozu" que apreciamos os jogos e a profundidade das suas imagens, que gostamos de ver os seus filmes. 

in «Ozu's Anti Cinema», Universidade do Michigan, 2003.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

142ª sessão: dia 19 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Para esta semana, resolvemos passear pelas casas e bares que o grande mestre Yasujiro Ozu nos mostrou com a sua graciosidade habitual em O Gosto do Saké, filme que o professor Carlos Melo Ferreira colocou bem alto no seu panteão pessoal do cineasta, ao lado de Viagem a Tóquio, e portanto a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Sobre esses dois filmes, escreveu Luís Miguel Oliveira serem "realizados com nove anos de intervalo - Viagem a Tóquio é de 1953 e O Gosto do Saké de 1962 -, há tanta coisa a uni-los como a separá-los. Viagem a Tóquio, realizado apenas oito anos após o final da Segunda Guerra Mundial, com fotografia a preto e branco, mostra-nos um Japão em reconstrução, “material” (quase todos os planos de “pontuação” sinalizam uma Tóquio em obras) mas também “social”, onde os filhos já não são nem sentem como os pais são e sentem. Em O Gosto do Saké, filmado nas maravilhosas cores do Agfacolor tal como interpretadas pelo genial operador Yuharu Atsuta (um dos vários “colaboradores permanentes” de Ozu, que também fotografou a Viagem), tudo indica que o “milagre” da recuperação económica já se completou, e Tóquio tem definitivamente a cara lavada, iluminada, à noite, por dezenas de néons brilhantes e coloridos. Esta transformação foi, a partir do pós-guerra, um tema dominante dos filmes de Ozu, mas nunca de uma maneira declarada, nunca de uma maneira trazida ostensivamente para o primeiro plano, antes como uma cortina perante a qual se recortam as histórias e as personagens. O que é uma das coisas que fazem a força de Ozu, e em particular do seu “período colorido”, os seis filmes finais de que O Gosto do Saké é o “clímax”, todos eles variações quase minimais sobre os mesmos temas e elementos, a tal ponto que tendem a confundir-se na memória de quem os viu, como se fossem um só longo filme. Nesse aspecto, Viagem a Tóquio talvez seja um filme mais facilmente distinguível, porque independentemente da perfeição (em Ozu, como no céu, tudo é perfeito...), em primeiro lugar dramatúrgica, que o cineasta alcançou, é um filme que isola, com a simplicidade de um risco firme feito a carvão (é a metáfora cromática ideal), uma situação essencial: a “falha geracional” entre aqueles (os pais) que viveram a juventude antes da guerra e aqueles (os filhos) que são os jovens adultos do pós-guerra. É mais isto do que a oposição campo/cidade, embora também ela seja reveladora - os pais vêm do campo, os filhos vivem na cidade, é o ambiente urbano consagrado como força motriz da modernidade e da ruptura com a tradição. E, depois, os pais sentem-se fora de água, desconfortáveis, e os filhos também com os pais em casa, não têm tempo, nem sobretudo ritmo para eles, e todo o filme se desenvolve sobre este desentendimento fundamental, sempre tratado com uma doçura inacreditável, um amor enorme por tudo e por toda a gente, que não impedem que se chegue (cheguem, as personagens) às conclusões mais cruéis, e que as verbalizem umas à outras, sem que isso alguma vez pareça exercício de crueldade, antes a descoberta de “verdades universais” que é forçoso aceitar, para mais quando (isto é o Japão) verificadas dentro dum omnipresente sentido da “forma” e do “formalismo” sociais. No fim, numa sequência de planos estarrecedora, é com o velho Chishu Ryu que a câmara de Ozu fica.

"E o velho Chishu Ryu, actor-chave de Ozu, volta em O Gosto de Saké. Um velho diferente, urbano, apreciador da bebida (bebe-se mais num só filme de Ozu do que em todo o Cassavetes), viúvo há mais tempo, com filhos em idade “casadoura”. E de maneira diferente da da Viagem, mas semelhante à de praticamente todos os filmes desses anos finais de Ozu (que, nascido em 1903, tinha mais ou menos a idade dos seus protagonistas), tudo decorre entre pais e filhos, entre as reuniões masculinas, cheias de cerveja e saké, onde se cantam canções e se evocam os velhos tempos, e as preocupações dos e com os filhos, que querem casar e não conseguem, ou não querem casar e também não conseguem. Mas o ponto de vista é, definitivamente, o dos mais velhos, e O Gosto do Saké, no que tem de mais bonito, é essa aprendizagem da “velhice” no que tem de mais amargo e simultaneamente mais doce - o “gosto do saké”, de certa maneira não apenas simbólica. O plano final - o derradeiro plano de Ozu - é outra vez uma coisa fabulosa, ficamos sem saber se abandonar a sala em lágrimas ou sair para a rua com um sorriso nos lábios. Em todo o caso, uma óptima sensação."

No nº 296 dos Cahiers du Cinéma (em 1979), Jean-Claude Biette começa o seu texto sobre o filme dizendo que "à maneira de cineastas (Hawks, McCarey, Rohmer, Olmi) cuja obra manifesta uma perfeita conformidade, ideológica e sentimental, em relação à sociedade em que vivem, Ozu não se nos revela por temas pessoais ou por histórias que trairiam uma visão do mundo original e distinta antes mesmo de serem investidas pelo cinema. Em vez de se diferenciar demasiado visivelmente dos comuns dos mortais que compõem essa sociedade dando-lhes a contemplar um espectáculo demasiado diferente daquilo que vivem, Ozu (ou um dos outros quatro) escolheu não confundir e fazer da vida quotidiana e comum o elemento permanente sobre o qual o seu cinema se funde. Trabalho difícil - já que a querer fugir dos excessos de uma trama ou de personagens excepcionais, ele corre o risco de cair na banalidade - que estes cineastas cumpriram ou cumprem com maior ou menor felicidade.

"Ozu conta-nos aqui a história de várias famílias cujas vidas se entrecruzam primeiro porque em cada uma delas o pai tem o hábito de encontrar os outros numa espécie de clube onde se restauram: todos evocam então os seus diversos sucessos amorosos, certas lembranças, o futuro dos filhos. O que se vê e o que não se vê, o que se diz e o que é supérfluo dizer, não obedece a exigências de argumento: o argumento, em O Gosto do Saké, não exige o que quer que seja (as relações só progridem com morosidade, e a vida, à maneira dessa pequena música que balança o filme, continua sem problemas), mas aos imperativos rítmicos, digamos, de uma certa harmonia que Ozu estabelece habilmente entre o tempo e o espaço, entre as impaciências individuais e a paciência imposta por tudo aquilo que nós, espectadores de cá, não conhecemos e que poderíamos chamar de ordem social e cultural japonesa."

No seu Dictionnaire, Lourcelles escreve que é o "último filme de Ozu (e o seu sexto a cores). A impressão do familiar no universo de Ozu, é tão forte que restabelece completamente a impressão do real. O real, aqui, é real porque é familiar. O tema de O Gosto do Saké foi ilustrado frequentemente por Ozu (especialmente na sua obra-prima Primavera Tardia e em O Fim do Outono). Os actores são regulares dos seus filmes. Em relação ao seu estilo, está definido há muito tempo para a eternidade: planos filmados ao nível do chão, ausência de movimentos de câmara, planos de objectos e de cenários vazios a pontuar ou a entoar a narrativa. Por estarem intimamente integrados na duração da cena, estes planos são exactamente o oposto de «naturezas mortas» (veja-se particularmente o plano do fumo a subir lentamente para o tecto do bar na cena em que Chishu Ryu se vai embebedar depois do casamento da filha). A familiaridade e o sentimento de eternidade que se experimentam em contacto com os filmes de Ozu vêm especialmente do facto de, nele, o presente não ter mais importância que o passado ou que o futuro. O passado existe de forma muito intensa nos pensamentos e nas lembranças - constantemente revividas - das personagens, nessas cenas antológicas de celebração e homenagem, como a do jantar organizado em honra de um velho professor caído. O futuro existe nos planos e nos projectos que as personagens fazem constantemente para assegurar a felicidade dos seus descendentes. Quanto ao presente, tão fugitivo, talvez não lhe sobre mais que o essencial: essa própria fugacidade, essa melancolia, esse sentimento de fracasso e sobretudo de vazio que Ozu transforma em plenitude para o espectador. A frustração transforma-se a pouco e pouco em serenidade. O desespero converte-se de forma imperceptível em resignação tranquila perante as leis inexoráveis da duração, do envelhecimento, da sucessão e da reposição das gerações. Neste último filme, todo o esforço de Ozu tende a dar ao seu universo pessoal, às suas personagens de predilecção, aos seus pensamentos e às suas impressões mais íntimas, o aspecto, se possível tranquilizador, da normalidade e da banalidade. Porque a melhor forma que encontrou, no termo da sua obra, para aceitar o sofrimento de viver foi voltar a considerá-lo e apresentá-lo como normal e como banal. A tristeza, a solidão e a morte só serão toleráveis assim que se nos tornarem familiares de forma mental e concreta. É mais ou menos este o sentido da sua última mensagem. 

"BIBLIO: argumento e diálogos publicados em volume pelas Publications orientalistes de France, 1986."

Até Quinta-Feira!

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Man of the West (1958) de Anthony Mann



por Carlos Melo Ferreira

«O aparecimento de uma nova geração, que juntamente com aquela que é proveniente do início do cinema sonoro, se torna famosa durante os anos 50, impõe-se com cineastas de prestígio, com nomes como George Stevens, William Wyler, John Huston, Fred Zinnemann, Billy Wilder e Douglas Sirk, entre os mais antigos, ou Joseph L. Mankiewicz, Vincent Minnelli, Stanley Donen, Anthony Mann, Nicholas Ray, Joseph Losey e Elia Kazan, entre os mais novos).» 

Carlos Melo Ferreira, in «Cinema Clássico Americano – Géneros e Génio em Howard Hawks», Edições 70, 2018. 

POÉTICA DO WESTERN 

A minha memória do cinema começa pelo western, e por isso devo-lhe pelo menos isto: escrever sobre o género que foi o meu favorito na sua época de maior fulgor. Estou aqui um tanto limitado pelos excelentes ensaios de Jacques Rancière "Poétique d'Anthony Mann" e "Poétique de Nicholas Ray"[1], que há muito tempo fizeram já o tratamento exaustivo de dois cineastas centrais dos anos 50 que vou de seguida abordar. Respeitando essas fronteiras, irei tentar perceber de que modo Anthony Mann e Nicholas Ray foram centrais numa redefinição do western na década em que os géneros, em geral, e o western, especial, atingiram no âmbito da Hollywood clássica o seu apogeu, a sua maior e final depuração. 

Oriundo da Série B dos anos do pós-guerra, Tony Mann vai dar o salto com a sua passagem para o western em Winchester 73 e Almas em Fúria/The Furies (1950), o primeiro o primeiro dos cinco westerns em que vai dirigir James Stewart, o segundo de inspiração shekespeariana. Tudo isso era fundamental já quando André Bazin escreveu a primeira poética do western[2], em textos exigentes e certeiros, como era seu apanágio. 

Ora nesses cinco westerns com Jimmy Stewart, entre 1950 e 1955 Mann reinventou o western clássico antes de ele ter atingido o seu zénite entre os clássicos, com A Desaparecida/The Searchers, de John Ford (1956) - antes de Os Cavaleiros/The Horse Soldiers (1959) e de O Sargento Negro/Sergeant Rutledge (1960) -, e Rio Bravo de Howard Hawks (1959) - depois de O Rio Vermelho/Red River (1948) e Céu Aberto/The Big Sky (1952). Quer isto dizer que, antes ainda de ter sido dita a última palavra pelos clássicos, já sobre o assunto ele estava a fazer novo e diferente, acolhendo-os e antecipando-os no seu fulgor crepuscular, assim rivalizando com eles.

Vou mesmo escolher os dois westerns finais, antes de Cimarron (1960), de Anthony Mann, porque penso que neles o cineasta se liberta da crispação fundamental de Jimmy Stewart para, com actores da sua estatura, enfrentar uma serenidade, em Sangue no Deserto/The Tin Star (1957), e uma revolta, em O Homem do Oeste/Man of the West (1958), o primeiro com Henry Fonda, o segundo com Gary Cooper.

Em Sangue no Deserto temos uma história de iniciação comparável à de A Desaparecida mas em concentrado, num filme centrado numa cidade de que só se sai por boas razões: para a instrução do jovem sheriff, para a última viagem do Doc e para a memorável captura na gruta. No final, antecipando Hawks mas na linha de Fritz Lang, o gabinete do sheriff com a sua prisão é cercado para o próprio jovem sheriff dar provas de que aprendeu a lição.

Devo confessar que sempre achei estranho este final. Pessoalmente, teria preferido a morte do jovem sheriff e que o caçador de prémios indigno o substituísse, mas Anthony Mann sabia então muito mais do que eu sei hoje, e este foi um filme que eu vi em estreia. Olhando a partir de hoje, percebo que este filme antecipa em preto e branco optimista um O Homem do Oeste a cores em que o cineasta faz Gary Cooper viajar até ao fim da noite num conflito shakespeariano para dele sair intacto da sua fúria. E Fonda tinha sido Wyatt Earp em A Paixão dos Fortes/My Darling Clementine (1946) e um émulo do General Custer em Forte Apache/Fort Apache (1948), ambos de John Ford, enquanto Cooper tinha sido o Sargento York/Sergeant York para Howard Hawks (1941) e o sheriff abandonado por todos em O Comboio Apitou Três Vezes/High Noon, de Fred Zinnemann (1952), um dos grandes westerns dos anos 50.

A mitologia do western passa, nos anos 50, por este duplo tour de force, em que a tranquilidade e a revolta modernamente se impõem em termos superiores.

Nicholas Ray é outra história, pois desde o início, mas sobretudo em Johnny Guitar (1954), introduz a complexidade dos sentimentos e das personagens no esquema clássico dos géneros, em especial do western, assim subvertido. Aí, como em Sangue no Deserto, está em causa o enforcamento segundo a lei de Lynch, mas a lei está praticamente ausente e os protagonistas tornam-se fugitivos daqueles que pretendem interpretá-la e aplicá-la por vingança.

As mulheres ganham um novo protagonismo, ao arrepio do western clássico, como em Almas em Fúria, sinalizando a chegada de uma nova era, em que vão passar a ter um novo papel. Há alguma coisa de atípico mas tipificado em termos originais, novos e modernos, neste filme, com os seus vigilantes vestidos de negro, que nem por sombras perpassa no universo de Anthony Mann, em que as personagens surgem ainda desenhadas segundo uma configuração clássica, depurada, susceptível de acolher o preto e branco, muito embora O Homem do Oeste dê conta de um sobressalto temático que é também estético e até plástico. Os dois outros westerns de Nick Ray, O Fugitivo/Run For Cover (1955) e A Justiça de Jesse James/The True Story of Jesse James (1957), vão manter essa marca original, com a cor a desempenhar um papel fulcral como no Guitar/Vienna film.

A clivagem entre ambos, pelo menos no western, passará pois por um Mann como o último dos clássicos e um Ray como o primeiro dos modernos. Por isso mesmo eu gosto de pensar sobre eles um impensável, que é um Johnny Guitar a preto e branco e um Sangue no Deserto a cores, que representariam a negação da natureza de cada um deles.

Claro que nos 50 há também Delmer Daves e O Comboio das 3 e 10/3:10 to Yuma (1957), baseado em história de Elmore Leonard (1925-2013), em que um rancheiro, Dan Evans/Van Heflin (saído de Shane, de George Stevens, 1954) tem de transportar um bandido preso, Ben Wade/Glenn Ford (que ascendera à fama na década anterior e seria o actor favorito do cineasta), para apanhar o comboio que o levará para a prisão, o que só consegue cumprir por si próprio e graças à colaboração final do próprio preso. E se este filme nos interessa em especial é porque ele subverte parcialmente o esquema clássico do western, seguido nomeadamente por John Sturges, pondo-o em causa para, a preto e branco, nos devolver à solidão do herói ameaçado e deixado só por todos, como em O Comboio Apitou Três Vezes, para enfrentar um bandido sedutor e o seu bando. No ano seguinte Daves faria Como Nasce um Bravo/Cowboy, de novo com Glenn Ford e com um muito jovem Jack Lemmon, e Os Homens das Terras Más/The Badlanders, para dois anos depois concluir os seus westerns, iniciados com A Flecha Quebrada/Broken Arrow (1950) e prosseguidos com A Última Ordem/Drum Beat (1954), Jubal e A Última Caravana/The Last Wagon (1956), com Raízes de Ouro/The Hanging Tree, o filme de Cooper a seguir a O Homem do Oeste.

Mas se há um fulcro do western nos anos 50, definidor em termos poéticos de um género, ele passa pelo eixo Mann-Ray, que do lado do primeiro em filigrana Budd Boetticher, o cineasta de que Bazin se ocupa em especial, vai levar a um extremo final de depuração em sete westerns com Randolph Scott entre 1956 e 1960 - depois deles, dele só mesmo um western moderno, um anti-western ou uma paródia do western.

Nos anos 60, já com Sam Peckinpah, Monte Hellman, Sergio Leone e outros italianos nos seus respectivos inícios, o western fecha com Terra Bruta/Two Rode Together (1961), O Homem Que Matou Liberty Valance/The Man Who Shot Liberty Valance (1962) e O Grande Combate/Cheyenne Autumn (1964), de Ford, El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970) de Hawks, A Carga da Brigada Azul/A Distant Trumpet (1964) de Raoul Walsh, muito bom mas já inferior aos seus grandes westerns dos anos 50: A Caminho da Forca/Along the Great Divide e As Aventuras do Capitão Wyatt/Distant Drums (1951), Sob o Signo do Mal/The Lawless Breed (1953), Duelo de Ambições/The Tall Men (1955), Um Rei e Quatro Rainhas/The King and Four Queens (1956). Mas haveria também que chamar a atenção para os fabulosos westerns Série B de Allan Dwan nos anos 50: Flor Bravia/Montana Belle (1952), Falsa Justiça/Silver Lode e A Rainha da Montanha/Cattle Queen of Montana (1954), Rivalidade/Tennessee's Partner (1956) e The Restless Breed (1957). E para os de Jacques Torneur: Stars in My Crown (1950), Wichita (1955), Terra Sangrenta/Great Day in the Morning (1956) - os de William Wellman (Assim São os Fortes/Across the Wide Missouri e Caravana de Mulheres/Westward the Women, 1951, Track of the Cat, 1954), Henry King (O Aventureiro Romântico/The Gunfighter, 1950, O Vingador sem Piedade/The Bravados, 1958), André De Toth, Sam Fuller, Joseph H. Lewis e muitos outros menores na Série B. Mas haveria sobretudo que notar Sob a Bandeira da Coragem/The Red Badge of Courage (1951) e O Passado Não Perdoa/The Unforgiven (1960), ambos de John Huston, Apache e Vera Cruz (1954), de Robert Aldrich, Homem Sem Rumo/Man Without a Star (1955), de King Vidor, O Rancho das Paixões/Rancho Notorious (1952), de Fritz Lang com Marlene Dietrich, Rio Sem Regresso/River of No Return (1954), de Otto Preminger com Marilyn Monroe. Sem esquecer que os maiores, Anthony Mann e Nicholas Ray, acabaram ingloriamente nos anos 60 a dirigir super-produções históricas, pelas quais talvez sejam hoje em dia mais conhecidos, enquanto Delmer Daves, que tinha começado a trabalhar no cinema no final dos anos 20, acabaria no melodrama.

Neste contexto, um cineasta-actor como Clint Eastwood, depois de ter participado da glosa paródica de Sergio Leone como actor, surge como realizador de western com uma pertinência póstuma, fora do tempo certo e muito depois dele. Mas mais: considerando-o (ao contexto), embora se concorde que o western é um género mais ético do que épico, podem considerar-se como precipitadas simplificações as afirmações de Gilles Deleuze sobre um western de pequena forma da Imagem-Acção[3].

A poética do western é a da epopeia, da saga da conquista do Oeste que no Século XIX permitiu o nascimento de uma nação contra os que se lhe opuseram, não só os índios, que só a partir dos anos 50 começam a ser encarados de outra maneira pela mitologia do género, o que foi muito importante, mas os que do interior a quiseram dominar, uma expansão territorial por terras selvagens de que próprio western terá largamente exagerando os factos, como o peremptório “print the legend” de O Homem Que Matou Liberty Valance veio dizer para fechar e As Portas do Céu/Heaven's Gate (1980), de Michael Cimino, postumamente pretendeu demonstrar, permitindo defender contra o anterior: "print the facts". Uma poética da acção e da construção. De uma luta sem desfalecimento para cumprir uma missão, atingir um objectivo, estabelecer ou restabelecer a lei, frequentemente travada de forma solitária. Mas também uma poética da natureza em que organicamente se resolvem em duelo os conflitos instalados para que triunfem a verdade, a justiça e a bondade.

O western foi, assim, o verdadeiro filme histórico americano sobre a própria América, de que O Rio Vermelho de Hawks foi a "Ilíada" e A Desaparecida de Ford a "Odisseia" (e, não por acaso, eles foram os maiores entre os melhores clássicos do cinema americano e ambos os filmes foram interpretados por John Wayne), acompanhados por muitos outros grandes filmes de outros grandes cineastas, clássicos e modernos, que completaram uma epopeia que, como tal, só no cinema atingiu a sua plena dimensão.

[1] Jacques Rancière: "Quelques choses à faire: poétique d'Anthony Mann" e "Le plan absent: poétique de Nicholas Ray", in "La fable cinémagraphique", Paris, Seuil, 2001, páginas 105 e 127, o primeiro originalmente publicado em "Trafic - Révue de Cinéma", nº 3, Verão de 1992 (Paris, P.O.L.).
[2] André Bazin: "Le western ou le cinéma américain par excellence" (1953), "Évolution du western" (1955) e "Un western exemplaire: «Sept hommes à abattre»" (1957), in "Qu'est-ce que le cinéma?", Paris, Les Éditions du Cerf, 1981 para a édition définitive, páginas 217, 229 e 241 (edição portuguesa "O «western» ou o cinema americano por excelência", "Evolução do western" e "Um western exemplar: Sete homens para matar", in "O que é o cinema?", Lisboa, Livros Horizonte, 1992, páginas 231, 243 e 255).
[3] Gilles Deleuze: "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 202-209 e 226-231.

in «Some Like it Cool», 29 de Setembro de 2013

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

141ª sessão: dia 12 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Nesta segunda semana de Setembro, voltamos ao género maior do western, depois de Stagecoach, Canyon Passage, O Rio Vermelho, Companheiros da Morte, The Man from Laramie, Ride Lonesome, A Distant Trumpet, Ulzana, o Perseguido, Heaven's Gate, Homem Morto e Rough Riders. Como não foi um género importante apenas para nós, deixamo-nos guiar (como no Rio Vermelho) por Carlos Melo Ferreira, fazendo de O Homem do Oeste a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Em entrevista a Christopher Wicking e Barry Pattison Anthony Mann fala dos seus arrependimentos (para nós incompreensíveis) em relação ao Homem do Oeste, dizendo que "foi escrito por Reginald Rose, que fez os Doze Homens em Fúria. E foi um bocado mais difícil, porque tinham comprado o guião dele e queriam mantê-lo, e eu na verdade não queria. (...) Era um argumento original. E eu tive de o tentar tirar da sua rigidez, que era maioritariamente conversa. Teria mudado completamente a rapariga, se ao menos tivesse insistido o suficiente. Mas não fui capaz de convencer os tipos que estavam a produzir. Acabei por convencer Cooper, mas por essa altura era tarde demais. (...) Ela seria a esposa dele. Teria sido muito mais comovente. A outra rapariga era estúpida, e eu odiava isso, e queria-o mudar, e eles não me deixavam. Imagine só se a esposa tivesse de fazer o que ela tem de fazer. Aí torna-se muito mais pungente; aí ele lutava até à morte. (...) se tivesse sido pela mulher que ele se estivesse a vingar, tinha sido aterrador! Tinha sido um grande filme. Quase foi, mas podia ter tido essa diferença. Havia este mal, e um homem a tentar destruir o seu próprio mal. E é por isso que se tivesse sido a mulher, era muito melhor. Mas era um homem que olhava para o passado dele e dizia: "Tenho de destruir o que tenho sido a todo o custo." Tenta fugir disso; consegue escapar, mas agora a coisa volta. É mais uma vez confrontado com o seu próprio mal. Sabe que foi esse tipo de pessoa - conseguia suportá-lo? Ou degeneraria outra vez?"

No conhecidíssimo texto que escreveu sobre o filme e sobre Mann no nº 92 dos Cahiers du Cinéma, «Super Mann», Jean-Luc Godard conta-nos que "um homem (Gary Cooper) está num pequeno comboio local quando é atacado por bandidos. Tenta regressar à civilização junto a dois companheiros de viagem fortuitos, um jogador profissional (Arthur O'Connell) e uma rapariga de sallon (Julie London). Acabam os três no esconderijo dos bandidos (entre os bandidos está o amante de livros tuberculoso de Johnny Guitar - Royal Dano), e de repente descobrimos que o homem o Oeste é nada menos que o sobrinho do líder, que costumava pertencer ao bando mas desistiu de tudo para levar uma existência mais cristã sob outros céus. Mas o velho meio louco (Lee J. Cobb) que lidera os fora-da-lei acredita que o sobrinho dele voltou mesmo. Segundo o nosso herói, a única forma de evitar o desastre para os seus companheiros é não o desiludir. Infelizmente aparece um primo, inesperadamente. Mostra ser muito menos crédulo do que o tio. Esta odisseia termina finalmente com um massacre terrível numa cidade deserta. Gary Cooper e Julie London escapam ilesos. Mas como não estão apaixonados (os beijos em O Homem do Oeste figuram de forma tão proeminente como em The Tin Star), decidem seguir cada um o seu caminho enquanto aparecem os créditos finais.

"O guião é de Reginald Rose, que também escreveu Doze Homens em Fúria. Portanto pode-se ver que O Homem do Oeste pertence, a priori, a esses "super-Westerns" de que falou André Bazin. Embora quando se pense em Shane ou High Noon, seja provável que isso, ainda a priori, seja um defeito. Especialmente à medida que, a partir de Men in War e The Tin Star, a arte de Anthony Mann parecia estar a evoluir na direcção de um esquematismo da mise en scène puramente teórico, directamente oposta à de Esporas de Aço, Terra Distante, The Last Frontier ou mesmo The Man from Laramie. A este respeito, ver God's Little Acre foi tão deprimente como catastrófico. Mas esta deterioração inequívoca, esta aparente secura no mais Virgiliano dos cineastas... se se olhar outra vez para The Man from Laramie, The Tin Star e O Homem do Oeste em sequência, pode bem ser que esta simplificação extrema seja uma tentativa, e a construção dramática sistematicamente mais linear uma procura: em cujo caso a tentativa e a procura seriam um passo em frente em si mesmas, como agora revela O Homem do Oeste. Portanto, este último filme seria em certo sentido a sua Elena, e The Man from Laramie a sua Carrosse d'or, The Tin Star o seu French-Cancan."

No Dicionário do Cinema, Lourcelles escreve que o filme é "o testamento de Anthony Mann. É também um dos seus mais belos westerns e um dos muito grandes filmes americanos, prova da glória do cinema hollywoodiano nas últimas horas da sua supremacia. Como a maior parte das obras-primas americanas, é um filme de autor a cem por cento, cuja originalidade, força de renovação e dureza do tema desconcertaram mesmo os aficionados do realizador, na estreia. A personagem de Gary Cooper vive uma experiência que prolonga com uma crueldade extrema as dos diversos heróis interpretados por James Stewart na série de cinco westerns que filmou sob a direcção de Anthony Mann. Como eles, Link Jones tem um passado carregado de segredos. Como eles, passou por um percurso que o levou a integrar-se numa comunidade organizada. Mas nos dias de hoje esses segredos reaparecem com uma força e uma violência trágicas que o vão obrigar a matar esse passado uma segunda vez. Ele fá-lo-á ao longo de uma verdadeira descida aos infernos que acontece em paisagens rochosas e desoladas que contrastam com as paisagens verdejantes que de forma geral apaixonam A. Mann. Num certo sentido, as paisagens mostradas aqui fecham o círculo das de Winchester 73, mas têm ainda mais alcance e mais ressonância. Vincadas como gravuras em metal, elas ajudam as personagens e em particular Dock Tobin, o segundo herói do filme, a adquirir esse relevo shakespeariano incansavelmente procurado por Anthony Mann. Como sempre com ele, o uso do Cinemascope é hábil e denso. Graças a uma disposição extremamente variada das personagens no plano e no cenário, isso resulta com frequência em que cada plano equivalha a vários planos cuja intensidade dramática se acrescenta até à inquietação. Mesmo nos planos fixos, a escolha do enquadramento mostra as diferentes personagens sob ângulos tão variados que existem, por assim dizer, verdadeiros cortes no interior do plano. As relações entre as personagens, a atmosfera do seu último encontro e mesmo o estilo da obra beiram o fantástico pela sua intensidade, mantendo-se perfeitamente realistas devido ao seu conteúdo. E isso pode ser considerado como uma novidade radical em relação aos cinco westerns com James Stewart. O ressurgimento do passado faz da tragédia de O Homem do Oeste um reencontro de fantasmas, situado em locais (Lassoo, o acampamento no meio dos rochedos) também eles fantasmagóricos. Entre estes fantasmas reina a violência mais selvagem, que Mann descreve sem a menor complacência, mas pelo contrário com uma repugnância e uma vontade de condenação ainda mais acentuadas que nos seus filmes anteriores. O quadro aterrador do clã Tobin a render-se sem freios à sua loucura, à sua avareza, aos seus instintos de morte, ao seu total desprezo pelos outros exprime a necessidade absoluta da « law and order », da construção de uma ordem social coerente e sólida que Mann sempre advogou e defendeu. Não descrita directamente na intriga, essa ordem social só está presente no filme através de algumas frases lacónicas do herói, quando evoca a vida nova que conseguiu criar para si muito longe dali. O sentimento da necessidade de uma tal ordem constitui o fundamento e a unidade dos westerns de Mann; ele encontra a sua expressão limite na ficção às vezes elíptica e atroz de O Homem do Oeste."

Até Quinta!

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Bronenosets Potemkin (1925) de Serguei Eisenstein



por Serguei Eisenstein

«Sem Orson Welles não se pode compreender o primeiro século do cinema nem o cinema enquanto arte maior, de que ele foi, com Sergei Eisenstein, o maior génio, a que apenas Fritz Lang, Friedrich Murnau, Alfred Hitchcock e Jean Renoir podem ser comparados. Influenciados por ele, Stanley Kubrick e Alain Resnais, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese foram os seus principais continuadores.» 

Carlos Melo Ferreira

“O COURAÇADO POTEMKINE”. Do ecrã para a vida. 

Todos os fenómenos têm uma manifestação casual, superficial. E subjacente a isso está um sentimento profundo que ditou a razão. Também foi assim com Potemkine. Eu e Agadzahanova-Shutko[1] concebemos um grande épico, "1905", na preparação para o vigésimo aniversário de 1905; o episódio do motim do couraçado “Potemkine” era para ter sido apenas um dos muitos episódios desse ano de luta revolucionária.

Os “eventos casuais” começaram. O trabalho preparatório da Comissão do Aniversário arrastou-se. Por fim, houveram complicações com as rodagens do filme como um todo. Chegou Agosto, e o aniversário era em Dezembro. Só havia uma coisa a fazer: escolher um episódio do épico inteiro que encapsulasse o sentido integral, o sentimento desse ano notável.

Outro acaso fugaz. Em Setembro, só se podem filmar exteriores em Odessa e Sevastopol. O motim do “Potemkine” passou-se em Odessa e Sevastopol. Mas depois veio algo predeterminado: o episódio do motim no “Potemkine”, um episódio a que Vladimir Ilyich tinha destacado atenção especial anteriormente, também era um dos episódios mais representativos do ano inteiro. É curioso lembrar agora que este episódio histórico tinha sido mais ou menos esquecido: onde e sempre que conversávamos sobre o motim na Frota do Mar Negro, ouvíamos imediatamente falar do Tenente Schmidt, e do “Ochakov”[2]. O motim do “Potemkine” tinha sido apagado da memória, de alguma forma. Era menos memorável. Menos falado. Portanto era ainda mais importante ressuscitá-lo outra vez, focar a atenção sobre ele, lembrar as pessoas deste episódio que encarnava tantos elementos instrutivos da técnica de insurreição revolucionária, típica do período de um “ensaio geral para Outubro”. 

Mas o episódio tinha mesmo a ressonância de quase todos os motivos característicos desse grande ano. O triunfo na escadaria de Odessa e a retaliação bestial encontram o seu eco a 9 de Janeiro. A recusa em disparar sobre os seus "irmãos"; o esquadrão a deixar passar o couraçado amotinado; o estado de espírito de solidariedade geral que se apoderou de toda a gente – tudo isto foi repetido em inúmeros episódios por todo o Império Russo durante esse ano, comunicando o tremor das suas fundações.

Falta um episódio ao filme – a última viagem do “Potemkine”, para Constança[3]. Este foi o episódio que chamou a atenção do mundo inteiro para o “Potemkine” em particular. Mas esse episódio decorreu para além dos limites do filme; decorreu no destino do próprio filme, nessa viagem através dos países capitalistas que nós achamos tão pouco amigáveis e que o filme viveu para ver.

Os criadores do filme desfrutaram da maior das satisfações que o trabalho numa tela revolucionária histórica pode conferir, quando os eventos no ecrã são transferidos para a vida. O motim heróico no couraçado holandês “Zeven Provinziën”, onde os marinheiros que participaram no motim mostraram que tinham todos visto Potemkine, o filme – é isso que eu quero lembrar agora[4].

Os couraçados a ferver com o mesmo ardor revolucionário, o mesmo ódio pelo poder explorador, a mesma malícia mortal para com aqueles que, ao armar-se a si próprios, não clamam pela paz, mas por mais chacina, por uma nova guerra. O maior mal, cujo nome é Fascismo. E eu quero mesmo acreditar que, dada a ordem do Fascismo para invadir a terra-mãe socialista dos trabalhadores do mundo, os seus couraçados e super-couraçados de ferro responderão com uma recusa idêntica em disparar; a resposta deles não será o fogo das armas mas o fogo do motim, como reagiram os grandes heróis da luta revolucionária – nomeadamente o “Príncipe Potemkine de Táurida”, há trinta anos, e a gloriosa embarcação holandesa “Zeven Provinziën”, mesmo à frente dos nossos olhos.

[1] Nina F. Agadzhanova-Shutko (1889-1974) escreveu o guião para O Couraçado Potemkine. Foi originalmente concebido como um dos episódios de um ciclo de filmes que lidava com toda uma gama de acontecimentos do “Ano de 1905”, um dos filmes encomendados a Goskino pela Comissão do Aniversário estabelecida para supervisionar a celebração do vigésimo aniversário do chamado “ano revolucionário” de 1905. No final, Potemkine foi a única parte que se completou e lançou deste ciclo. (nota de Richard Taylor)
[2] O tenente Peter P. Schmidr (1867-1906) foi um dos líderes do motim de Sevastopol em 1905. Tinha ajudado anteriormente a formar a Sociedade de Ajuda Mútua dos Marinheiros Mercantes de Odessa, uma das primeiras organizações laborais na frota russa. A 20 de Outubro de 1905 foi preso pelas autoridades por falar num encontro político em Sevastopol, no qual foi imediatamente eleito membro vitalício dos representantes do Soviete dos Trabalhadores de Sevastopol. Foi libertado a 3 de Novembro e, quatro dias mais tarde, permitido a reformar-se com o grau de Capitão de Segunda Classe. A 14 de Novembro embarcou no cruzador "Ochakov" e levantou a bandeira vermelha; no dia seguinte voltou a ser preso. Foi condenado à morte no seu julgamento de Fevereiro de 1906 e executado a 6 de Março com outros líderes do motim. (R.T)
[3] Incapaz de se reabastecer de combustível e mantimentos, a tripulação do “Príncipe Potemkine de Táurida” navegou para o porto de Constança, na Roménia, para onde foram a terra a 25 de Junho de 1905. (R.T.)
[4] O motim no navio de guerra holandês “De Zeven Provinciën” aconteceu em 1933; ver J. C. H. Blom, De muiterij op De Zeven Provinciën [O Motim no “Zeven Provinciën”] (2ª edição, Ultrecht, 1983); e G. J. A. Raven e N. A. M. Rodger (editores), Navies and Armies. The Anglo-Dutch Relationship in War and Peace, 1688-1988 (Edinburgo, 1990), pp. 98, 101, 109. (R.T.)

in «Sergei Eisenstein - Selected Works. Volume III - Writings, 1934-1947» (editado por Richard Taylor)
publicado originalmente in «Komsomolskaya gazeta», 27 de Junho de 1935
Tradução: João Palhares

terça-feira, 3 de setembro de 2019

140ª sessão: dia 5 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Em Setembro vamos ser guiados pela história do cinema pelo professor Carlos Melo Ferreira, falecido em Julho deste ano. Como foi muitíssimo importante para o nosso cineclube, onde já esteve para apresentar O Rio Vermelho de Howard Hawks em 2016, por exemplo, dedicamos-lhe este ciclo de quatro filmes, começando já esta Quinta-Feira com a exibição de O Couraçado Potemkine de Serguei Eisenstein, na Casa do Professor.

Num artigo em que aponta os erros que cometeu em O Prado de Bejine, filme inacabado e de que conhecemos só trinta minutos, Eisenstein toma como exemplo o seu Couraçado, dizendo que "os meus empreendimentos estilísticos e as minhas inclinações atraem-me fortemente para o geral, o generalizado, para a generalização. Mas é a generalização e  o 'geral' que a doutrina Marxista nos ensinou? Não. Porque no meu trabalho, a generalização absorve o particular. Em vez de se detectar pelo que é particular em concreto, a generalização dissipa-se em abstracção fragmentada. Esse não foi o caso do Couraçado Potemkine. A força desse filme residia no facto de através deste acontecimento único e particular eu conseguir transmitir uma ideia generalizada de 1905 como um 'ensaio' para Outubro. Este episódio em particular podia absorver o que era típico dessa fase da luta revolucionária. E o que foi seleccionado para este episódio era típico, e a sua interpretação era generalizada, característica. Isso foi em grande medida porque Potemkine foi concebido primeiro como um episódio de um grande épico sobre 1905, só mais tarde se tornando um trabalho independente, mas que absorvia todo o acumular de emoções e ressonâncias que se tinham planeado para o filme maior."

Em artigo para a Film Comment em 1991, Nestor Almendros, director de fotografia de François Truffaut, Éric Rohmer, Jean Eustache, Monte Hellman ou Rossellini, escreveu que "o trabalho mais respeitado do realizador*, Potemkine (1925), foi considerado um filme revolucionário não só por causa do seu assunto—uma revolta num navio—mas pelo seu tratamento, pelo fogo de artifício da sua técnica de montagem, pelo profundo sentimento de realismo na fotografia e na interpretação, e porque na sua estrutura, como se observou muitas vezes, se afastava do drama "burguês" convencional— o eterno caso de amor entre um homem e uma mulher. Os grandes filmes de guerra desses tempos, como A Grande Parada de King Vidor, e os westerns inovadores, como O Cavalo de Ferro de John Ford, não podiam passar sem a história sentimental de amor. A sua ausência em Potemkine foi atribuída apenas à concentração prístina de Sergei Mihailovich Eisenstein nas forças sociais que governam a sociedade segundo Marx. No entanto há provas para sustentar outra hipótese: a ausência de um caso de amor convencional no filme podia bem resultar do facto de ter havido muito pouco espaço para mulheres no mundo do grande mestre de Riga. Não só Potemkine, como os seus outros filmes—A Greve, Outubro, A Linha Geral, em grande medida até os seus filmes sonoros posteriores, Alexandre Nevski e Ivan, o Terrível—reflectem isto.

* Tomei Potemkine como o centro deste estudo porque é um dos meus filmes preferidos de todos os tempos, como de muitas pessoas. Já em 1987, John Kobal entrevistou 84 peritos de 22 países para compilar uma lista dos 100 maiores filmes. Potemkine—número um em votações mais antigas—ficou num sólido terceiro lugar, sendo apenas superado por O Mundo a Seus Pés e A Regra do Jogo. Se a votação fosse feita hoje, depois do desastre universal recente do comunismo, Potemkine seria provavelmente empurrado ainda mais para baixo na lista. Ainda assim, Eisenstein continua a ser um dos meus realizadores preferidos."

No único Dicionário que nos guia, lê-se que é o "segundo filme de Eisenstein. Para os historiadores e para a maior parte dos cinéfilos, é o filme mais célebre do mundo, sempre citado e geralmente em primeiro lugar nas listas internacionais dos melhores filmes da história do cinema. Até 1952 (data em que foi levantada a sua interdição oficial em França, e o filme foi igualmente interdito noutros países da Europa), só se podia ver em cineclubes e na cinemateca. Esta porta fechada preserva as reputações como o gelo. Tal como Zéro de conduite, filme «maldito» por excelência, O Couraçado Potemkine faz parte dos vinte ou trinta primeiros filmes que todo o cinéfilo vê antes que saiba mesmo que vai ser cinéfilo. A interdição e a maldição mudam assim de sentido: filme maldito = filme que toda a gente viu antes de ver os outros; filme maldito = filme que toda a gente adora e respeita antes de conhecer os outros. Esta «tragédia em cinco actos», segundo os próprios termos de Einsenstein, era originalmente uma encomenda destinada a comemorar o vigésimo aniversário da revolução relatando um bom número de acontecimentos do ano de 1905. O episódio do motim do Potemkine vai ser mantido apenas como base do argumento. (De resto, ao nível do argumento, do plano e da sequência, todo o filme obedece a uma estética da parte pelo todo.) Pode-se ver o conjunto da obra de Eiseinstein como uma tentativa de união, muito gradualmente condenada ao fracasso, entre a ideologia (comunista) e o formalismo. Em A Greve, o primeiro, o mais jovem e o mais fervilhante dos filmes de Eisenstein, a aliança é total. Dir-se-ia que uma lua de mel. A ausência de personagens individualizadas (uma das bases das teorias dramáticas de Eisenstein) provoca um jorro de energia que se harmoniza, de uma maneira quase instintiva, com a ideologia. Isso engendra tomadas de posição cuja aplicação prática se revela ao mesmo tempo estimulante no plano criativo e gratificante para essa mesma ideologia. Embora já muito intelectualizado, O Couraçado Potemkine marca um ponto de equilíbrio nesta aliança. Em cada uma das cinco partes (mais próximas, sem ofensa a Eisenstein, aos movimentos de uma obra musical do que aos actos de uma tragédia) há um elemento que se individualiza e cria o dinamismo em torno do qual se organiza a unidade visual do episódio. Na I, é a tripulação descontente, opondo-se aos oficiais como um homem só. Na II, é a fracção minoritária dos amotinados e particularmente Vakoulintchouk, «o primeiro a amotinar-se e o primeiro a pagá-lo com a sua vida». Na III, os restos mortais de Vakoulintchouk atraem a multidão até si em procissão. Na IV, a multidão, corpo múltiplo, é o substituto dos amotinados e vive o seu martírio em vez deles. Na V, o Potemkine, entidade agora indestrutível, leva sozinho à adesão de todo o esquadrão. Também em cada parte, a montagem isola objectos cuja função individualizante (o monóculo do oficial arrogante, depois massacrado) foi extensivamente comentada. Depois de Potemkine, a ideologia em Eisenstein vai ser progressivamente devorada pelo formalismo, à medida que a figura de um herói individual se vai elevar para dominar a intriga e o material do filme. Para quem veja hoje O Couraçado Potemkine com um novo olhar, se isso ainda for possível, será sem dúvida a parte III que parecerá a mais impressionante, com os seus planos de barcos ancorados nas brumas, as suas longas filas de peregrinos (a palavra vem à mente por si só) chamados pela presença irradiante do morto. Esta parte, lenta e solene, mas como que animada por um movimento perpétuo, dá a ver a revolução como uma mística da fraternidade. É a encarnação mais expressiva do credo inicial de Eiseinstein. 

"N.B. Pode-se avançar a hipótese de Eduard Tisse, que tinha acabado de rodar como director de fotografia Evreyskow schaste de Alexis Chunowsky (crónica da vida judaica na Rússica durante os anos 1880, a partir de S. Aleichem), parte do qual se passa na escadaria de Odessa, ter sugerido que Eiseinstein escolhesse essa localização para filmar a sequência mais célebre do seu filme. Em 1930, os alemães apresentaram uma versão sonorizada e com diálogos do filme. Em 1943, o filme americano Seeds of Freedom acrescenta aos planos (sonorizados e com diálogos) do filme de Eisenstein sequências contemporâneas dirigidas por Hans Burger onde aparecem nomeadamente Henry Hull (no papel de um chefe de guerrilha que luta contra os Nazis e conta aos jovens recrutas os acontecimentos de 1905) e Aline MacMahon (cidadã de Odessa). Albert Maltz escreveu os diálogos, e o conjunto da produção é colocado sob a direcção de William Sekely. Em 1950, circulou uma versão com música de N. Krioukov. (Era mais curta que a versão de 1926 porque havia planos que se tinham censurado ou perdido.) Foi a versão que descobrimos nos cineclubes. Em 1976, houve uma versão mais completa (e a mais próxima da versão de 1926) acompanhada por música de Shostakóvitch. Foi esta versão que passou na televisão em 1984. 

"BIBLIO. : argumento in «L'Avant-Scène» n° 11 (continuidade narrativa). Na colecção «Classic Film Scripts» nº 5, Londres, Lorrimer. Na colecção «Chedevri Sovetskogo Kino» Moscovo, Iskousstvo, 1969 (decupagem de 1 472 planos, intertítulos incluídos). No livro de Jay Leyda: «Einsenstein: Three films » Nova Iorque, 1974 (com Outubro e Alexandre Nevski)."

Até Quinta-Feira!