por Jorge Silva Melo
“Tudo o que sei, tudo o que podia e tudo o que sonhava está em Play Time”, dizia Jacques Tati a “A Capital” em Março de 1968. Tudo, pode dizer-se agora. E, claro, a própria morte de Tati.
Na manhã de 16 de Março de 1968, na companhia do Eduardo Paiva Raposo, do Fernando Guerreiro e da Maria Antónia Palia, ouvia-o eu declarar: “Os jornalistas foram bastante duros comigo e eu sei porquê. Porque, com o dinheiro que gastei em Play Time, toda a gente pensava que se podiam ter feito mais filmes.”
Depois, foi a história que se sabe: o público não foi, o filme caiu. Tati que, após o êxito de O Meu Tio, poderia ter prosseguido uma carreira de poesia à francesa, um pouco de Marcel Marceau, um pouco de Jacques Prévert, conheceu a desgraça. Ainda faria mais dois filmes, mas em condições e com resultados precários. E havia um projecto que lhe era agora proposto in extremis por Jack Lang. E que a morte matou.
Eu conheci Jacques Tati nesse Março. Tinha, dias antes, saído da cadeia de Caxias, onde fora parar mais por falta de ligeireza nas pernas para apoiar Ho Chi Min do que por constituir perigo político que se visse contra um Governo que combatia noutro hemisfério, em nome de sete séculos.
Foi logo a seguir a sair da cadeia que vi Play Time e que percebi que fora preso exactamente porque, na estupidez dos meus dezanove anos, eu achava possível um mundo de filmes assim. Não estou a mentir agora. Escrevi-o n’ O Tempo e o Modo que saiu em Abril de 1968, com aquele inconfundível estilo de miúdo há muitos anos míope e que já carregava o seu Barthes, Campo Grande abaixo:
“Se soubermos que, em Play Time, o direito à observação é privilégio daqueles que como outsiders são definidos — Hulot e Barbara — e que ele é o jogo ou a livre actividade que se atinge colectivamente em momentos plenos [...] temos que nele, por dois lados, se movimenta o mesmo conceito, essa forma de viver livre que é, segundo Godard, regarder autour de soi e que essa actividade se processa e define simultaneamente dos dois lados da tela. [...] Nós próprios somos também integrados no tempo do jogo. [...] A nossa actividade de espectador alarga-o e transforma-o no filme-total. Assim se coloca o problema da oportunidade desta opção — e aqui se observaria como filmar assim é exigir dos espectadores aquilo que o jogo social anotado em Play Time lhes destrói: o direito de olhar. Fórmula em que se inscrevem outros tantos direitos: o da informação, o da escolha, o do julgamento. Outros tantos direitos que Play Time nos confere ainda. ”
(Apesar do estilo de garoto convencido que já vivia entre frequências de Linguística, perceberam, não perceberam?)
Em resumo: exercendo o seu absoluto direito à liberdade, Tati propunha-nos a liberdade, filmando pessoas que olhavam para aqui e para ali, e nós ora podíamos ir olhando para a direita ora para a esquerda, ora para esta ora para aquela personagem, feitos que éramos espelhos transportados ao longo de um filme.
Tati propunha-nos a liberdade, mas só o podia fazer exercendo-a ele próprio, arriscando-a ele próprio. E assim fez este filme impossível; 70 milímetros, esse formato de epopeias que a cada esquina nos mandava ver o Coliseu de Roma, um orçamento até então inultrapassado, uma cidade inteira construída em estúdio, arranha-céus, auto-estradas, uma história deambulatória, uma planificação ultra-elaborada que combatia a montagem de frente e que assim se batia com Griffith e a origem do cinema, como só Brecht se quis bater com Aristóteles e me contam que Marx com Hegel.
Mas os espectadores não foram ver. E o poder económico, político, cultural, impediu-me finalmente de viver num mundo em que houvesse mais filmes de Jacques Tati. Os senhores produtores, os senhores exibidores, os senhores ministros e os senhores jornalistas acharam que já bastava, que o melhor era Jacques Tati acabar por ali, que já tinha gasto dinheiro de mais. E assim o censuraram. E me censuraram.
Mas não foram só eles. E é precisamente porque não foram só eles, porque a ditadura não tem só um lado, porque foi “em nome de”, que eu pedi ao Vicente Jorge Silva que me publicasse este artigo. E que a carreira de Jacques Tati foi censurada (o meu prazer de espectador foi censurado) em nome dos espectadores que não foram ver Play Time. E é a esses que eu queria acusar, e sem passar de hoje. Porque vos tenho raiva. A todos os que se resignam ao cinema que existe, a este teatro, a esta literatura do toma-lá-cem-paus-dá-me-tempo-livre. Porque são os mesmos que deixaram que Play Time não chegasse a estar três semanas no Monumental. E em nome de quem o exibidor ia cortando bocadinhos todos os dias a partir do terceiro dia de projecção, a ver se aquela obra de génio lá conseguia ir vendendo gato por lebre, que é o que me dizem sempre que é do que vocês gostam. Ou não é? Então, por que é que não foram?
Por que é que não vão ao que é novo? Ao que é tentativa? Ao que é falhado? Ao que oferece risco? Por que é que se resignam ao velho, se o novo vos bate tanta vez à porta? Tanta vez e com que esforço de Sísifo! Com que esforço para ser digno de vocês! É por que não querem olhar, não é?
E vocês, os críticos, que depois de terem navegado pelos escombros das ideologias, sempre entre a Cila e a Caríbdis de ora-Freud-ora-Barthes-ora-Marx, sabem o que andam a fazer, neste vosso frenesim de identificação com o gosto do grande público? E por que é que se resignam? Ou julgam que se pode servir a dois cinemas? Ou têm é medo de ficar sós em salas geladas? Não estão ainda a censurar Play Time?
Repito: tenho-vos raiva.
Tati chamava-me mon jeune ami. E por isso quis escrever isto assim, de um jacto, na altura em que mon vieil ami morre. Porque é isto a morte.
Foi Mozart, claro, quem soube qual era o som humano da palavra libertá. No Don Giovanni. E eu estou convencido disto: foram vocês, os resignados do capitalismo, ou, pior ainda, foi em vosso nome que assassinaram Mozart.
in «Monsieur Tati, não nos deixam olhar, pois não?», Expresso, 13 de Novembro de 1982.