quarta-feira, 24 de abril de 2019

Les parapluies de Cherbourg (1964) de Jacques Demy



por João Bénard da Costa

Mabília, chamava-se ela. Nome de criada antiga e criada antiga foi ela. Dessas, doutras eras, doutras vidas, doutros romances, doutros filmes. Aquelas de quem só nos lembramos já velhas, não conhecendo nada e percebendo tudo, sábias de ignorantes ou ignorantes de sábias. 

Uma tarde de verão, em que, como em todas as tardes de verão, acompanhou os meninos à praia, deixou cair na areia uma arcada de ouro que era o mais precioso dos bens dela. Deu por isso quando chegou a casa. Não se apoquentou nada. Àquela hora já ninguém ia à praia. No dia seguinte, de manhã, iria buscá-la. Sabia perfeitamente onde lhe podia ter caído. Pacientemente, os patrões tentaram desenganá-la, explicando-lhe o fenómeno das marés. Sorriu, absolutamente tranquila. Então o mar haveria de ser algum ladrão para roubar ouro às criaturas? Riram-se da santa ingenuidade dela. Ela não riu nem chorou. Dissessem o que dissessem. A arcada lá estaria. 

No dia seguinte, ao chegar à praia, foi direita ao sítio onde tinham estado na véspera. Curvou-se e apanhou a arcada. Ninguém queria acreditar. «Eu não dizia?» foi o único comentário. E nunca percebeu os espantos que se fizeram à roda do caso. 

Quando a Rita me contou esta história, lembrei-me da tarde, que nunca mais hei-de esquecer, em que, num Março de Paris, um Março de 1961, conheci Jacques Demy, através de Lola. «Rit qui veut, pleure qui peut» era a epígrafe do filme, dedicado à memória de Max Ophuls. Era a história de uma pega – não, não consigo chamar-lhe puta – que uma noite, em Nantes, tinha engraçado especialmente com um cliente americano, marinheiro de passagem. Ele prometera-lhe que um dia voltaria rico para casar com ela. Passaram os anos, a criança de quem ficou grávida nessa noite já estava crescidota. Lola teve alguns bons partidos, a acabar (com ele começava o filme) num tal Roland Cassard (Marc Mitchel), muito, muito bom rapaz. Mas a todos – como a todas as colegas – contava que estava à espera do regresso do americano. Para toda a gente, a história era da carochinha. Mas para «moi, Lola, celle qui rit à tout propos», histórias da carochinha eram as dos outros. E um belo dia, como tinha ido, o americano voltou. Todo vestido de branco, num grande carro branco, com um grande chapéu texano branco. Para casar com Lola e tomar conta da filha. As outras meninas choravam. Só Lola, como Mabília, com nada se espantou. Nunca duvidara. Ao som da 7ª Sinfonia de Beethoven, nós também não. Desde o princípio do filme, tínhamos visto o carro branco, o americano branco e sabíamos que era ele

Entre putas e marinheiros, Lola era um filme de anjos e, metaforicamente, um filme dançado. «Moi j'étais pour elle.» Ela era Anouk Aimée, no papel da sua vida. O mundo encantado de Jacques Demy – tão encantado como o mundo de Mabília – começou aí e acabou vinte e sete anos depois no fabuloso Trois Places pour le 26 (1988), dois anos antes de Demy morrer de sida aos 58 anos. Não me espantei nada que ressuscitasse duas vezes – Jacquot de Nantes (1991) e Les Demoiselles Ont Eu 25 ans (1993) – nos filmes realizados pela mulher, Agnès Varda. Tão belos como. 

Tão belos como La Baie des Anges (1963), onde, em vez de Nantes, havia Nice, em vez de Anouk Aimée, Jeanne Moreau, e onde o casino ia à glória por por força do amor entre Jacqueline e Jean (Claude Mann). 

Tão belos como os filmes, não só encantados como cantados (en-cantados, dizia-se nos anos 60), que foram Les Parapluies de Cherbourg (1964), Les Demoiselles de Rochefort (1967) ou – já lá iam, já lá iam os anos 60 – Une Chambre en Ville (1982). 

Sempre com Michel Legrand à sua beira (Legrand compôs a música para todos os filmes de Demy à excepção do «inglês» The Pied Piper de 1972), Demy desafiou-o, em 1963, para um filme em que os personagens cantassem em vez de falar. «Não acredito na ópera, porque não se percebe o que é dito. Tentemos encontrar o equivalente da ópera no cinema, mas em que cada palavra seja clara, compreensível.» O musical americano? Não tanto, porque se personagens não desatavam a cantar a páginas tantas, cantavam sempre mesmo quando Guy (Nino Castelnuovo), empregado numa bomba de gasolina, tinha de perguntar aos fregueses se eles queriam «super ou ordinaire». Em verso ou em prosa, em discussões domésticas ou em arrebatamentos amorosos, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, num caso, até (Tante Élise) na morte. Personagens com os pés bem assentes na terra, burguesinhos ou burguesinhas («escale cherbougeoise») com preocupações narrativas muito concretas e referências históricas precisas (a guerra da Argélia). Personagens protegidas pelos chapéus de chuva, esses mesmos, os da loja de Mme. Emery (Anne Vernon) em Cherbourg, a mãe de Geneviève, o papel que transformou a carreira de Catherine Deneuve. 

No fundo (espanta-me que à época não se tenha reparado muito nisso) Les Parapluies de Cherbourg é uma espécie de Splendor in the Grass[1], de sexo menos aparente e com tensões dramáticas menos explosivas. Mas Geneviève e Guy amaram-se de um amor tão novo e tão carnal como os heróis de Kazan e também não foram capazes de resistir às famílias, às separações e às ausências. O tempo deles passou sem que eles se apercebessem da passagem. Casaram-se trocados, com o «boy next door» ou com a «girl next door», os que souberam durar mais e persistir mais. E quando, no fim, se reencontram, ela de casaco de peles, ele na estação de gasolina, há a mesma tristeza inenarrável do último encontro de Natalie Wood e Warren Beatty. Passou o tempo do «esplendor na relva» (aqui «esplendor no mar») e nunca mais, nunca mais voltará. As magias ou permitem todos os milagres (Lola) ou transformam os enfeitiçados em estátuas de sal. Este filme encantado é o filme do grande desencantamento, conto de fadas para quem deixou de acreditar em fadas. Geneviève a cantar que houve um tempo em que era capaz até de dar a vida por Guy e a perguntar-se por que é que não morreu. Morrer, morreu – nesse casamento filmado como um enterro – só que morreu como a maior parte de nós um dia morre. A vida deixa-nos, mas sobrevivemos. Passamos a con-viver. 

O mais misterioso neste filme em que o encantamento funciona no sentido contrário ao de Lola (ou, depois, ao de Les Demoiselles de Rochefort, presidido por Gene Kelly para as irmãs Catherine Deneuve e Françoise D'Orléac) é que o canto parece existir para sublinhar a duração das personagens, ou, melhor dito, o excesso de duração das personagens que lhes roubou o instante em que pareceram voar, como no plano em que Demy filma Geneviève e Guy em cima do charriot, aquando do primeiro passeio de ambos. 

Quando o filme se estreou em Portugal, entre acesos ataques e valentes defesas, o António-Pedro Vasconcelos, o Gérard Castello-Lopes, o João Paes, o Nuno de Bragança e eu passámos uma noite a discuti-lo em casa do João Paes, com gravador ao lado, para um longo debate que saiu no nº 22 de O Tempo e o Modo (eram possíveis coisas dessas nesse tempo). A certa altura, o Gérard Castello-Lopes, que embirrou bastante com o filme, disse que, de cada vez que o diálogo cantado procurava fugir ao convencional para se tornar «natural», lhe parecia estar a ampliar-se «aquele momento, horroroso entre todos, em que nas comédias musicais sentimos que as personagens “vão cantar” ou em que o locutor da televisão já disse “boa noite” e a imagem ainda não se cortou.» 

Sem o querer – e como lhe notei na altura – estava a tocar no cerne da razão de ser do canto neste filme tão triste que é Les Parapluies de Cherbourg. É exactamente porque as personagens se prolongam para lá das suas imagens e sentimentos que o canto se substitui ao diálogo. Se falassem, a duração era muito mais reduzida e, como tal, muito menos sentida. Com a duração à sobreposse a que o canto obriga e exige, Demy traduziu precisamente o horror da sobrevivência para além do que é milagroso na vida e reforçou a convenção dos comportamentos que se esvaziaram de intensidade. Deu-nos a sensação do limbo, de pessoas desfeitas. Mudou o canto em desencanto, a vida em morte e o fulgor do instante em exaustiva duração. 

Como os temas musicais de Geneviève e Guy se perdem no final, nos temas das personagens que acabam por os aprisionar, as imagens e as vozes deles também são imparavelmente desgastadas, como se a coreografia inicial (a prodigiosa e festiva abertura do filme com as linhas de chuva) se imobilizasse pouco a pouco num espaço e num tempo que já não consentem qualquer retorno. 

Um tempo, um tempo há, em que a co-naturalidade prodigiosa da Mabília e de Lola se perdem e nunca mais se encontram arcadas nem voltam, em manhãs de nevoeiro, amores perfeitos de uma só noite. Les Parapluies de Cherbourg é o filme desse tempo. No princípio, Geneviève diz a Guy: «Tu sens l'essence» e, depois, acrescenta, em referência à vida futura deles: «Oh quel bonheur, tu sentiras l'essence toute la journée.» No fim, na última cena nas bombas de gasolina, a palavra Essence está cortada ao meio. Felicidade e essência foram coisas de um tempo, um tempo muito breve. Mas não acabaremos nunca de o dizer, de o cantar ou de o fixar. E essa é a nossa condenação.

[1] Ver Os Filmes da Minha Vida / Os Meus Filmes da Vida, 1º Volume, pp. 79-83.

in «Os Filmes da Minha Vida», 2º Volume, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007, pp. 219-224.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

128ª sessão: dia 18 de Abril (Quinta-Feira), às 21h30


Jacques Demy criou um mundo à parte, como já vimos o ano passado nas Donzelas de Rochefort, povoado de personagens em movimento perpétuo e que se vão encontrando e desencontrando de filme para filme. Os Chapéus de Chuva de Cherburgo talvez seja o seu filme mais icónico e um dos filmes preferidos de Bénard da Costa. É a nossa próxima sessão.

Jorge Silva Melo, que nos apresentou Some Came Running em 2016, escreveu sobre o cinema de Demy para o Público, em 2017, dizendo que "tudo passou, a festa acabou, é sempre de uma quarta-feira de cinzas que Jacques Demy olha para trás. Um cinema encantado, poderosamente realista. Um cinema que entristece.

"Atrás de cada vidraça, uma personagem. Em cada prédio, um destino. Este o titânico projecto de Balzac que, na sua Comédie Humaine, foi povoando cada rua, beco, cada bairro de Paris (e não só), com aquela multiforme humanidade que inventou, para desvendar a metrópole que nascia. E é o projecto romanesco de Jacques Demy, que faz passar pelas suas cidades do Loire, Nantes em primeiro lugar (Lola), Cherburgo ou Rochefort depois, pelas mesmas ruas, mesmos portos, pelas mesmas arcadas que há ainda em Nantes, esplendor da cidade comerciante, pelas mesmas pontes, mesmos portos, carrosséis, uma catrefada de gente, marinheiros em licença, operários, professoras de ballet, bailarinos, raparigas de entretém, empregaditas de loja, patroas, feirantes, gasolineiros, meninas que ainda vão ao colégio.

"E de tal forma povoou que, em 1972, de Renault 4, ainda lá fomos uns quatro, de Lisboa muito cedo até à praça de Rochefort, à Passage Pommeraye de Nantes, ao porto de Cherburgo. E que triste fiquei quando, na marginal de Nantes, naquele prédio de gaveto onde as raparigas cantavam, de maillot rendado e para os marinheiros de uma noite, não havia cabaré nenhum, tinha sido só um letreiro que o seu genial cenógrafo, Bernard Evein, lá colocou. E era pois, era Eldorado o nome do cabaré que nunca existiu. O lugar inventado ali mesmo na rua, mas na outra banda da vida? Era de lá que saiam, pelas primeiras luzes da manhã cinzenta e branca (Raoul Coutard, o director de fotografia), com uma gabardina por cima do maillot, as raparigas que entretinham os homens e tinham um filho para criar umas ruas adiante, quarto alugado."

Michel Legrand, que escreveu a banda-sonora e nos deixou no início deste ano, escreveu sobre o processo de composição do filme para o Télérama, contando que «o Jacques tinha escrito "L'Infidélité ou Les Parapluies de Cherbourg". “Não achas que podíamos fazer um musical com canções?” Eu começo a trabalhar. Dez dias depois, vê-se se a coisa funciona. E bom, o que não funcionava, era a passagem do cantado ao falado. Eu proponho que se desista. “Não", diz o Jacques. "E se o fizéssemos todo cantado?” Vou para um lugar retirado e escrevo: “Jacques, vem ouvir isto depressa!” Era uma música séria, “operática” e complicada. “Não é isso, diz Jacques. É preciso que seja muito simples para que o público possa decifrar a partitura à primeira audição.”

«Pusemo-nos ao trabalho: criar o sublime com três notas, dar ao público a ilusão de que sabe de cor o que está a ouvir pela primeira vez... O Jacques trazia-me uma cena. Líamos. Eu tentava.

«O Jacques era paciente: foi preciso muito tempo até sair uma nota aceitável. Ele aconselhava-me: “Mais alto, mais rápido – Tu não te chateias quando ando à procura durante duas horas? – Oh não!” Jacques adorava a música. Eu inventava outras notas. Ele escrevia outras palavras. Eu dizia-lhe: “Preciso de mais duas sílabas”, ou então “menos duas sílabas”. O Jacques cinzelava as palavras todas sobre a melodia.»

No suplemento final do Dictionnaire du Cinéma, Jacques Lourcelles escreve que "a vida separa Geneviève e Guy, chamado a cumprir o serviço militar na Argélia. Geneviève está grávida de Guy. Casar-se-ão cada um para seu lado e Geneviève vai criar a filha de Guy com o marido dela. A arte convalescente de Jacques Demy, com este filme, encontrou o caminho para o grande público. Encontro altamente paradoxal, já que tem lugar num filme musical e sabe-se do ódio – a palavra não é forte demais – do público francês pelos filmes em que as personagens cantam. Todos os cinéfilos têm nos ouvidos as zombarias, as piadas, etc, que saudavam inevitavelmente o começo das canções nas grandes comédias musicais americanas, na altura do seu lançamento. Como explicar, então, este pequeno milagre? Os méritos do filme – modestos, de resto – não chegam para o fazer. Foi sem dúvida por Demy ter ido até ao fim do seu empreendimento, superando um obstáculo aparentemente intransponível e que se calhar nem receou. Quis filmar uma espécie de ópera em que as personagens cantavam sem insterrupções, evitando assim as passagens do falado ao cantado que tanto eriçavam os espectadores. Quanto ao resto, trata-se de um melodrama muito bem colorido."

Até Quinta-Feira!

domingo, 14 de abril de 2019

Pickpocket (1959) de Robert Bresson



por João Bénard da Costa

Três anos depois de Fugiu um Condenado à Morte, Bresson estreou a sua quinta longa-metragem, de novo com argumento original, de sua autoria. À câmara, de novo, Burel e também, de novo, música chamada clássica: desta vez Lully. Actores (ou modelos) todos não profissionais, como desde o filme precedente, sempre passaria a suceder. 

Alguns críticos pretendem ver no argumento de Bresson reminiscências de Dostoievsky e, particularmente, do Crime e Castigo. Não faltam, mesmo, algumas identificações entre Michel e Raskolnikoff. Sem as negar, Bresson afirmou contudo ter-se inspirado mais na obra que igualmente serviu de base ao romancista russo: Der Einzige und sein Eigentum (O Único e a sua Propriedade) do pensador anarquista alemão Max Stirner. Filiação curiosa, pois que abre para uma ordem de reflexões que raramente tem sido abordada a propósito do cineasta, cuja temática, atentamente considerada, não estará longe de certo anarquismo (mesmo que o de Bresson se situe politicamente à direita). 

Ao falar de Stirner, numa entrevista concedida a Samuels e publicada no livro Encountering Directors, Bresson cita frases do livro deste: «O que é que legitimamente me é permitido fazer? Tudo aquilo de que sou capaz» ou «Os meus direitos, tanto quanto sei, vão tão longe quanto pode ir o meu braço» para encontrar paralelos entre essa moral e a do seu pickpocket. Mas pode-se legitimamente sustentar que é uma moral que não é só deste personagem bressoniano. Todos eles se colocam acima da lei, numa acepção que pode ter também eco em certos textos canónicos, nomeadamente na afirmação pauliniana do primado do espírito (A lei mata, mas o espírito vivifica). 

Esta frase podia, aliás, servir de epígrafe a Pickpocket. Na sua aparente moral de super-homem, Michel reclama-se de uma outra ordem de valores, a que Jacques, o seu amigo, é incapaz de aceder e que só parece ser exactamente compreendida pelo seu verdadeiro rival: o inspector de polícia. A história do filme é a do duelo travado entre Michel e aquele, que se alguma coisa, é certo, terá que ver com o Crime e Castigo, releva mais da oposição-aproximação entre a força irracional da lei (a polícia) e a força irracional dum destino humano. Oposição na medida em que as forças são necessariamente divergentes (como o mostra o permanente jogo do gato e rato que se processa entre Michel e o inspector); aproximação porque esse jogo se desenvolve para uns e outros sob o mesmo signo de acaso e destino (Michel consegue salvar-se – como? - da primeira vez que é apanhado, no início do filme, e deixa-se apanhar – apesar de tudo o que o devia pôr de sobreaviso – no final do mesmo). Michel percorre um caminho, os polícias barram-no. 

Essa noção de caminho (de novo com o correlativo peso da graça) é inseparável deste filme, onde, de novo, se entrecruzam os temas da liberdade e da prisão. É entre as grades, que Michel descobre o sentido, na célebre réplica final: «O Jeanne, pour aller jusqu'à toi quel drôle de chemin il m'a fallu prendre», proferida com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, e culminando um trajecto que teve que passar por tudo aquilo por que passou. Porque também, Jeanne “para ir até Michel” teve que abandonar a ordem (ligação-traição com Jacques) e a comunicação entre os dois processa-se na cumplicidade estabelecida por ambos nessa outra ordem de valores. Por isso, a música de Lully (como a de Mozart, em Un condamné à mort s'est échappé) intervém nos momentos de êxito do carteirista e nos encontros com Jeanne. Nesses vários momentos, a iluminação (traduzida pela banda-sonora) dá-se como sinal para a plenitude final. Momentos que farão dizer a Michel (sequência da missa pela mãe): «Acreditei em Deus durante três minutos» (e na citada entrevista, Bresson comentava que «poucas pessoas podem dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo»). 

Como quase todos os filmes de Bresson, também Pickpocket teve outro título: “Incerteza” era a designação original da obra. Sem querer forçar a provável intenção desse nome, pode-se dizer que nenhum filme de Bresson, é, como este, tão aberto e incerto em possibilidades de interpretação (de uma incerteza que cada nova visão só reforça) e, ao mesmo tempo, nenhum será talvez mais rigoroso e de uma construção tão complexa (veja-se, por exemplo, a extraordinária sequência da gare de Lyon). Por isso, Pickpocket é a obra favorita dos mais fervorosos bressonianos, que nela vêem a mais ousada das tentativas do autor para desmontar o real através das suas aparências ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade. O que um admirador deste filme tentou traduzir dizendo que Pickpocket era o filme mais “branco” da história do cinema. 

De Pickpocket tanto se pode falar em termos de “tratado de moral” (e avançar em domínios aflorados, como o das relações entre o roubo e a homossexualidade, a propósito da relação Michel-Jacques ou Michel com os outros carteiristas, o tema da mãe, cuja ligação com o filho passa também pelo roubo mas principalmente pela morte) como em termos estritamente “materiais”, na medida em que se pode sustentar, igualmente, que é um filme sobre mãos, olhares, sem outra “metafísica” que não essa. A ausência de expressão (das personagens, suas vozes, sua fragmentação) tanto é uma expressão de ausência, como a expressão de uma presença idêntica à que se encontra em outros filmes de Bresson (a do que não tem nome e, portanto, não pode ter imagem). Este é um filme que joga com os seus próprios vazios, ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque essencial se esgota na pura materialidade. 

Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». Afirmação que só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra. 

in «João Bénard da Costa – Escritos sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 513-515.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

127ª sessão: dia 11 de Abril (Quinta-Feira), às 21h30


Depois da exibição do belíssimo Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut em Maio do ano passado, voltamos a Robert Bresson e ao cinematógrafo, ao seu método livre e à emoção dos gestos dos seus "modelos" e do encadeamento inaudito dos seus planos. Esta semana veremos a mais famosa das suas obras, Pickpocket, na Casa do Professor.

No livro essencial Les Grands Cinéastes Que Je Propose, Henri Agel escreve que "entre os autores de filmes dignos desse nome, talvez nenhum tenha meditado de forma mais séria sobre a sétima arte do que Robert Bresson. E é precisamente isso que faz a sua glória e a sua irredutível solidão. Pode ser que, ainda durante muito tempo, uns vejam nele um dos muito poucos - talvez o único junto a Dreyer - que tenham escrito verdadeiramente em termos de cinema, enquanto que outros lhe recusem o título de cineasta talentoso que autorizam a Rossellini ou a Renoir. Bresson pensa a sua arte em vez de a sentir: é sem dúvida isso o que torna tão difícil uma avaliação justa do seu papel. Aos olhos dele, a escrita cinematográfica ainda está na sua infância. Poucos cineastas compreenderam a verdade fundamental: «O cinema não é a fotografia de qualquer coisa, é qualquer coisa em si mesmo.»"

Em entrevista a Jean Douchet, nos anos idos de cinquenta e para a revista Arts, Bresson disse que queria fazer de Pickpocket "um filme de mãos, de olhares e de objectos, recusar tudo o que é teatro. O teatro mata o cinema e o cinema mata o teatro. Num filme, é o homem que é preciso. O actor, mesmo e sobretudo cheio de talento, dá-nos uma imagem demasiado simples e portanto falsa de um ser humano. Não é o que os meus intérpretes me mostram que é importante. É tudo o que me escondem. Un regard pris à l'improvise peut être sublime.

"O actor projecta-se. O movimento é de dentro para fora. Num filme, é ao contrário. É preciso que tudo esteja bem no interior, que nada escape. Às vezes digo aos meus intérpretes: «Quando falarem, falem para vocês próprios.»

"«Todo o movimento nos descobre», disse Montaigne. Para mim, os gestos e as palavras não são o essencial de um filme. O essencial é a coisa, ou as coisas, que eles provocam."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles diz-nos: "Muito vagamente inspirado em «Crime e Castigo», aqui está o ápice da obra de Bresson, um filme límpido e misterioso, evidente e secreto, uma jóia do cinema francês. Não só o seu conteúdo, como o seu tema parecem deixados à livre interpretação do espectador. Para nós, o roubo é aqui a metáfora de todas as actividades realizadas fora e contra a sociedade, de todas as formas de energia que, não servindo a sociedade, a negam. (Pickpocket também podia muito bem ser, por exemplo, um filme sobre o engate homossexual ou sobre a paixão pelo jogo.) Não encontrando justificação a não ser em si mesmas, estas actividades têm um forte coeficiente lúdico. Se se acrescentarem, na descrição aqui dada por Bresson, uma paixão, uma virtuosidade, uma clandestinidade e um sentimento de perigo que são fontes de prazer tanto para quem as realiza como para quem as vê. Pickpocket podia ter pedido emprestado o seu título ao filme de Ophuls baseado em Maupassant. Outra característica destas actividades: elas acontecem para aquele que as realiza, e mesmo quando precisam de parceiros, numa solidão total e que talvez equacione Michel a um herói de westerns, vertiginosamente exaltado por ficar sozinho ao longo da imensidão dos territórios que percorre. Livre interpretação do espectador também no que diz respeito ao desenlace (o que quer dizer tudo que tem lugar depois do regresso de Inglaterra, a que Bresson quis conceder uma espécie de irrealismo, ou de eternidade, mostrando Michel com a mesma roupa anterior à partida). Podemos considerar esse desenlace como uma concretização espiritual do percurso vivido por Michel (concretização que nega tudo o que ele tinha sido anteriormente). Ou, pelo contrário, como uma convenção, parecida com aquela que encerra certos romances licenciosos em que as personagens, depois dos seus excessos, regressam ou fingem regressar à ordem. Aqui, Michel muda radicalmente, morre para o que tinha sido. Isto é um engodo ou a descoberta da sua verdade? No fundo, pouco importa, porque é neste momento que cai o pano e a obra é concluída. Purificando-o, Bresson reutiliza o modo de narração do Diário dum Pároco de Aldeia: um diário lido e escrito (às vezes apenas lido) pelo herói e que fragmenta a acção em pequenas unidades encerradas em si mesmas, que compõem uma temporalidade específica, muito distante do tempo «real» onde vivem a sociedade e o resto da humanidade. Essa temporalidade também reflecte o tempo tal como o vemos quando estamos em solidão total, próxima do misticismo ou da loucura. O diário do pároco de aldeia dirigia-se a Deus, o de Michel dirige-se ao espectador, obrigado por este artifício supremo a penetrar na sua intimidade e a tornar-se um pouco nele. Sumptuosa e jubilatória, a música de Lulli não é posta sobre o filme, emana dele como emana a de Vivaldi da Carrosse d'or. O filme de Bresson tem de resto um rigor, uma ironia e graciosidades herdadas do Grande Século, uma mistura de despojamento e preciosidade completamente contrários à sensibilidade moderna (pelo menos àquela que prevalece em França há trinta anos). 

"N.B. Seria apropriado que este filme secreto contivesse um segredo. Murmurou-se durante muito tempo que os diálogos tinham sido escritos ou largamente revistos por Cocteau (Cocteau já autor dos de As Damas do Bosque de Bolonha). Não veio prova alguma confirmar (ou invalidar) esse rumor. 

"BIBLIO: Pierre Gabaston: «Pickpocket», Éditions Yellow Now, Crisnée, Bélgica, 1990. Este volume, muito pobre, contém duas breves entrevistas de Pierre Pelegri e de Marika Green («Bresson», diz ela, «que não quer de forma alguma estados de alma dos actores, nunca vai dizer que filme quer fazer. Guardo a lembrança de tomadas muito numerosas para cada cena. É preciso repetir o mesmo texto para expulsar toda a psicologia do personagem. Ele persiste em fazer sair e em extirpar qualquer tentativa de interpretação pessoal para recuperar aquilo que chama de natural.»)"

Até Quinta!

segunda-feira, 8 de abril de 2019

French Cancan (1954) de Jean Renoir



por João Bénard da Costa

Na filmografia de Renoir, French Can-Can segue-se a La Carrozza D'Oro e antecede Elena et les Hommes. Foi o primeiro filme que Renoir fez em França depois do seu regresso à pátria, donde estivera ausente (na América e na Índia) onze anos, de 1940 a 1951. Após as obras amargas realizadas nos Estados Unidos, que definitivamente o afastaram do realismo que o atraíra no fim dos anos 30, após esse filme, de certo modo singular na sua carreira, que foi The River (1951), Renoir iniciou com La Carrozza as suas grandes meditações finais sobre o espectáculo (“a comédia e a vida”) e sobre a arte como “grande ilusão”. French Can-Can é um marco fundamental nessa direcção, sendo também, “o primeiro dos seus grandes 'divertimentos' finais”. A acção do filme situa-se em 1888 e inspira-se na vida de Ziegler, o fundador do Moulin Rouge, o homem que lançou o can-can. Renoir reencontrou Jean Gabin, o actor de Les Bas-Fonds (36), La Grande Illusion (37) e La Bête Humaine (38). E – ele próprio disse - “amo French Can-Can porque me deu a ocasião de voltar a trabalhar com Gabin. Foi, para mim, um regresso ao passado (…) Agradeço ao cinema por me ter proporcionado esse reencontro”. 

Aparentemente, esta afirmação é estranha, pois que French Can-Can parece estar nos antípodas dos filmes citados, três das obras que mais contribuíram para a imagem de Renoir realista e empenhado que, durante tanto tempo, se confundiu com a própria imagem de Renoir. Mas, voltando sobretudo ao seu filme mais famoso - “cette sacrée Grande Illusion”, como Renoir também disse – a obra que vamos ver, sem nada ter que ver com ela, no plano da leitura imediata, retorna explicitamente um dos momentos mais célebres desse filme. É a tão citada sequência da “Marselhesa” que em La Grande Illusion (cantada pelos prisioneiros franceses, durante uma representação teatral, quando sabem de uma vitória militar das suas tropas) marcava um momento alto de “emoção patriótica”, e regressa em French Can-Can (durante a visita do ministro) como momento de circunstância, marcando a grande bagarre entre Maria Félix e Françoise Arnoul que se transforma em pancadaria geral. 

Não foi certamente por acaso que Renoir retomou uma sua sequência tão célebre para a destruir por dentro e lhe dar um tão diverso significado. O lado “humain, trop humain” que caracterizara o filme de 37 – e que não pouco devia à presença e à interpretação de Jean Gabin – é desmontado em French Can-Can, com o mesmo actor, dando sobretudo em espectáculo uma outra ilusão: a que consiste, como é dito no diálogo do filme, em acreditar que só o espectáculo permita aceder à grande vie e se substitua e confunda com ela. Essa é a ”ilusão” (de natureza diferente, mas de essência aproximável) que justifica o personagem de Gabin neste filme, para o qual tudo (amor, mulheres, amizade) mais não eram do que modos de criar essa ilusão de vida, que só no espectáculo complementar se perfaz. A famosa fala de Gabin, na inauguração do Moulin Rouge, quando explica a Françoise Arnoul o que são para ele as mulheres, o amor e o espectáculo (e que convence Nini a “entrar em cena”), será, vista a essa luz, um dos momentos mais confessionais do cinema de Renoir, opondo essa ilusão total (que, lato sensu, é a do criador) à ilusão que o príncipe procurara na sua noite de amor com Nini. O príncipe quisera a “ilusão do amor” para ter uma recordação com que ficar. Falha, assim, a relação com Nini, como antes falhara a sua própria morte. Só lhe resta “desaparecer de cena” deixando nela os atributos (“o décor”) da ilusão do poder que lhe andara associada. E é no mais visível desses atributos – a cadeira – trono – que Gabin se senta para escutar (sem ver) o sucesso da sua “girândola final”. Os grandes planos de Gabin nos bastidores, inseridos na genial sequência do “can-can” (enquanto o empresário esboça com o pé o movimento da dança) são o assombroso contraponto da “ficção ideal” que se desenrola no palco. Simultaneamente, o criador está de fora e de dentro dessa ficção. Já não precisa de ser voyeur (como o fora, pouco antes, quando espreitara com Nini, mas de oposto lado, a sua nova descoberta, Esther Georges), pode “reger”, invisivelmente, essa ordenação que é, para ele, a única que conta. 

Assim, a visão de Renoir, neste filme, é sempre a de alguém que se encontra nos bastidores (sequência inicial, com o plano subjectivo sobre Maria Félix), sabendo que esse é o único lugar que possibilita a visão mais próxima e mais serena. Por isso, também este filme, que dá uma tão assombrosa sensação de movimento, é um filme em que a câmara pouco se move (quase todos os planos da sequência final são fixos e o movimento é o dos actores). O ponto donde se vê é quase sempre único, abarcando na sua globalidade os décors teatrais, de cartão visível (Montmartre, as colinas, a conversa entre Nini e o príncipe junto à árvore, etc.) e impondo o carácter fictício de todas as mises-en-scène (as pequenas-grandes paixões dos intérpretes, quer elas se refiram ao amor e ao ciúme, quer se refiram ao poder) face à única que finalmente reina: a mise-en-scène do próprio filme, a do espectáculo que tudo é. Sobre as aparências do real, só a realidade da aparência subsiste. 

in «Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 153-155.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

126ª sessão: dia 4 de Abril (Quinta-Feira), às 21h30


É a primeira vez que exibimos um filme do "Patron", na acepção do documentário em três partes que Jacques Rivette dedicou ao maior cineasta francês, Jean Renoir. Já o tínhamos visto com Henri Langlois no filme de Éric Rohmer sobre os irmãos Lumière, Louis Lumière, que exibimos o ano passado em Março, bem como no documentário de Bertrand Tavernier sobre o cinema do seu país, mas vai ser a primeira vez que programamos um filme por si realizado. French Cancan é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em 1961, para a série de televisão Jean Renoir vous parle de son art (transcrito mais tarde em Jean Renoir: entretiens e propos e traduzido para português por Júlio Bezerra para o catálogo da mostra A Vida Lá Fora: O Cinema de Jean Renoir), o realizador disse que "French Cancan é, acima de tudo, a história de Nini. Nini é uma pequena lavadeira, anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Não há nada mais atraente do que uma lavadeira que anda pela rua com a cesta dela debaixo do braço. Está a ver, elas já não existem, mas quando eu era pequeno, havia muitas e eu observava-as. Claro que também é a história de um indivíduo brilhante que inventou o que hoje é chamado de music-hall. Devemos o espectáculo a esse tipo, bem como as discotecas, tudo o que existe agora para distrair as pessoas que estão entediadas. Mas a Nini é muito importante. A Nini é a irmã de Lulu. A Lulu é a minha esposa de La chienne (1931), é a irmã de Celestine. Celestine é a minha empregada de O Diário de Uma Criada de Quarto (The Diary of a Chambermaid, 1946). Pode até ser mesmo a irmã de Magnani, de Camilla de A Comédia e a Vida (Le carrosse d’or, 1952). Nini caminha pela rua com a cesta dela debaixo do braço, o grande empresário aborda-a e vai-lhe ensinar não só a melhor forma de ganhar dinheiro, mas também como ser brilhante, a beleza da arte. É algo extremamente importante. Eu acredito no trabalho. Acho que devemos basear as nossas vidas no trabalho, e acho que French Cancan talvez seja acima de tudo uma homenagem à arte, e que arte, não é? Eu escolhi a dança! Além disso, se tivesse tentado não acreditar nesta profissão enquanto filmava French Cancan, teria sido convencido a voltar atrás pelas raparigas que trabalhavam comigo. Foi absolutamente fantástico! Vivíamos numa atmosfera incrível! A coragem, a boa vontade, a bondade dessas dançarinas, que se esforçam e sofrem muito, por vezes até mesmo magoando-se – é algo muitas vezes doloroso fazer uma espargata, não é nada engraçado. Apresento-vos French Cancan e peço-vos que pensem sobre o trabalho que desempenham e o amem. Porque há sempre maneiras de amar o nosso trabalho. Em primeiro lugar, porque não há distinções ou classificações no que diz respeito às profissões. Podemos dizer que toda a gente é um artista na vida, o padeiro que consegue fazer um bom pão é tão importante como o Picasso. O que é importante é ser o melhor padeiro possível, e, se se for um pintor, que também se seja o melhor, que se pinte como um génio. E, finalmente, é dessa maneira que nos expressamos, até porque, essencialmente, essa é a grande questão. O problema é que quando nos explicamos demais – como devo estar a fazer neste momento – estamos a cometer um erro. Mas, por fim, vai-me desculpar. Se tentamos explicar demais as coisas, acabamos por não dizer nada, na verdade. Se nos tentamos explicar parcimoniosamente, aperfeiçoando um objeto, se nos expressamos por meio de algo que queremos fazer ou dizer, então há uma pequena chance de, modestamente, nos conseguirmos expressar a nós próprios."

Em Os Filmes da Minha Vida (no capítulo "Un Festival Jean Renoir"), François Truffaut escreveu que "French Cancan (1955) marcou o regresso de Renoir aos estúdios franceses. Não vou contar o enredo mas fiquem apenas a saber que é sobre um episódio da vida de um certo Danglard que fundou o Moulin Rouge e criou o cancan francês. Danglard dedica a sua vida ao music-hall, descobre jovens talentos, dançarinas ou cantoras e «faz» vedetas. Mal ele se torna amante deles por um tempo e eis que elas se revelam exclusivas, possessivas, ciumentas, caprichosas e insuportáveis. Mas Danglard não se deixa prender, está casado com o music-hall e só o sucesso dos seus espectáculos é que conta.

"Esse amor exclusivo pelo ofício, e incuti-lo às jovens artistas que descobre e revela, é a sua razão para viver.

"Reconheceremos a relação deste tema com o de Carrosse d'Or: a vocação do espectáculo triunfante das peripécias sentimentais. French Cancan é uma homenagem ao music-hall como Le Carrosse d'Or o era à commedia dell'arte, mas acho que tenho de confessar a minha preferência por Le Carrosse d'Or; as fraquezas de French Cancan, por serem exteriores a Jean Renoir, não são menos prejudiciais porque afectam o elenco em primeiro lugar. Se Giani Esposito, Philippe Clay, Pierre Olaf, Jacques Jouanneau, Max Dalban, Valentine Tessier e Anik Morine estão excelentes, pelo contrário, Jean Gabin e Maria Félix não parecem dar o «máximo» de si mesmos.

"Mas é preciso notar igualmente os elementos mais positivos da empreitada: French Cancan marcou uma data na história da cor no cinema. Jean Renoir não quis fazer um filme pictórico e a esse respeito French Cancan apresenta-se como um anti-Moulin Rouge, em que John Huston tinha procedido a misturas de cores obtidas pelo emprego de filtros de gelatina; aqui só há cores puras. Em French Cancan cada plano é uma gravura popular, uma «imagem de Épinal» em movimento. Ah! os belos negros, os belos castanhos, os belos beges!"

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreveu que "depois de quinze anos de peregrinações, Renoir volta a rodar em França. «Para mim», declarou ele (in «Cahiers du cinéma» nº 78), «French Cancan correspondia a un grande desejo de fazer um filme num espírito muito francês, e de poder existir um contacto fácil e cómodo, uma ponte aprazível entre mim próprio e o público francês.» Ele herda um projecto destinado a Yves Allégret que re-escreve totalmente e sozinho. Neste filme «fácil» e sem ambição aparente, inspirado na vida do verdadeiro fundador do Moulin Rouge, estão contudo presentes uma grande parte da sua filosofia e da sua paleta. Renoir pinta mais uma vez um clã, um mundo bem homogéneo no seu pitoresco e na sua diversidade, e que, sem constituir uma sociedade secreta por inteiro, tem no entanto as suas regras e o seu território próprios, como as diferentes classes sociais evocadas em A Grande Ilusão. Nos dois pólos da sociedade, o príncipe e o padeiro vão queimar os dedos, aprendendo às próprias custas e para sua grande tristeza que não têm lugar («Na selva, os animais agrupam-se por famílias, por clãs, não se misturam sob pena de morte. Pus as minhas patas onde não devia» dirá o príncipe depois do seu suicídio). O clã aqui descrito não é o do Teatro com T maiúsculo como em Le carrosse d'or; é o do espectáculo nas suas formas mais populares e mais modestas: o music-hall, o café-concerto, o cabaret, e tudo aquilo que algumas décadas mais tarde se chamará de «variedades». Ainda mais do que pelos actores, Renoir interessa-se aqui pelo organizador do espectáculo, pelo encenador, pela eminência parda da festa. Isto mostra o quão próximo dele está este filme. As cores, sensuais, vivas e variadas a preceito, recriam numa homenagem ao Impressionismo um mundo já antigo, ressuscitado pela lembrança. A afectação está ausente porque a crueldade está sempre ao lado da nostalgia, colando-se a ela como sua sombra. A direcção de actores consegue esse milagre constante e característico do estilo do autor de dar vida a personagens nas quais nunca esquecemos o fantoche, mal escondido por trás das alegrias e das tristezas que o animam - é a parte do moralista em Renoir. Finalmente o movimento, o movimento sacrossanto, por mais frenético que seja, vem como em John Ford de uma acumulação erudita de planos fixos. A câmara tem o pudor de se mexer o menos possível, e sempre com sabedoria, e sempre de forma sub-reptícia. Nos últimos filmes de Renoir, o movimento pertence mais aos corpos e aos sentimentos do que à técnica."

Até Quinta-Feira!

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Casque d'or (1951) de Jacques Becker



por João Bénard da Costa

Casque d'or, como todas as grandes obras, é um filme que quanto mais se vê mais se quer rever. E, ao contrário de muitos filmes que não resistiram à passagem do tempo Casque d'or guarda intactas as suas virtudes: hoje, como em 1952, é um dos mais belos filmes de música, é um dos mais belos filmes de luz

Filmes de música. Muito se tem insistido depois de Truffaut (que lhe chamou o Poulenc do cinema francês), na analogia entre a música de câmara e o cinema de Becker. No melhor texto sobre o filme publicado em português (de Alberto Vaz da Silva) falava-se «de uma maneira de fazer cinema que prescinde de metais e se contenta com arcos e uns raros instrumentos de sopro». Casque d'or é a suprema ilustração dessa maneira. 

Se a música (até aos últimos dez minutos do filme) tem uma presença muito discreta, e está, como os diálogos, reduzida ao essencial, há sempre um tratamento da banda sonora que permite a melhor definição do ambiente. Passando para lá das primeiras danças de Marie, com Roland e com Manda (esta última recapitulada, em ângulo e acompanhamento diferente no postfácio de Casque d'or) vale a pena ouvir bem o que se passa na sequência do duelo (o latir dos cães, misturando-se ao silêncio) na da primeira visita de Signoret a Reggiani (vozes de crianças como pano de fundo do primeiro beijo), na do encontro à beira do rio (pássaros) ou na sequência em que Leca vem anunciar a prisão de Raymond (os sinos). Esses sons – discretos e distantes – dizem-nos tanto quando a imagem – (o pátio negro, de parede muito branca, do duelo; a profundidade de campo do terreiro vazio do beijo da Signoret: o campo-contra-campo em grandes planos do despertar de Manda por Marie; a lenta panorâmica a “fechar espaço” que se sucede ao anúncio da prisão, com Marie fechando o xaile) sobre o que vai acontecer às personagens, sobre o fatal percurso que sobre elas se abate. 

Mas a música não tem apenas que ver com a banda sonora. É a espantosa construção narrativa deste filme que releva do que se chamou “música de câmara” com cada “instrumento” (personagem) a desenhar os motivos que os distinguem, opõem e combinam até ao “crescendo” final, culminando na longa nota silenciosa que é o rosto da Signoret perante a execução. 

Nesta altura do filme – os citados dez minutos finais – já a música (agora em sentido literal) ocupa o primeiro plano. É a canção Le Temps des Cerises que começa in nas vozes desafinadas dos cegos (plano insólito) para fazer raccord em off com a explosão do tema musical que vai dominar as últimas sequências (mortes de Leca e Manda). A letra da canção (as palavras não se ouvem) fala da «plaie ouverte» e do «souvenir que je garde au coeur». («Et dame fortune / en m'étant offerte /ne pourra jamais / calmer ma douleur»). 

Filme de luz. A acção situa-se no temps des cerises e todo o filme é uma prodigiosa variação sobre a luz desse tempo, na linha da grande pintura impressionista francesa, de Manet a Monet, passando por Renoir. Luz que nos é “atirada” desde a sequência inicial do passeio de barco e culmina no já citado encontro de Marie e Manda junto ao rio. Toda essa luminosidade (que preside igualmente à vingança de Manda) prepara a madrugada final, com a passagem da luz do candeeiro à luz da aurora e a um tom que evoca alguns quadros de El Greco. 

Essa luz é sempre preferencialmente recebida e espalhada por Signoret – Casque d'or. Sem qualquer preocupação realista, Becker “inunda” a actriz, fazendo-a sempre surgir rodeada de sol e ouro, mesmo quando nenhum ponto luminoso (sequência em casa de Leca quando do primeiro encontro de ambos) justifica esse halo que rodeia Marie. Halo que atinge a expressão máxima no contra-campo em que Manda a vê quando acorda, e que já foi considerado o mais belo grande plano da história do cinema. Mas halo que se prolonga em diversos cambiantes, como na sequência da igreja (em que toda a luz desce sobre Signoret) e não envolve só os cabelos e a cara desta, mas se comunica ao pescoço, à estola, ao colar, aos brincos e aos sapatos que irão desempenhar na acção um tão importante papel. 

Tudo são “emanações” de Signoret, neste filme da sua máxima criação no cinema. Talvez nunca, depois das criações de Marlene com Von Sternberg, uma actriz tenha sido “fetichizada” a este ponto. 

Mas Casque d'or, imponderável na combinação de muitos registos, não se perfaz nos “acordes” sobre Simone Signoret nem na história do seu amor com Manda. Em filigrana, «tão belo como», para citar uma vez mais o texto de Alberto Vaz da Silva, está a história de Manda e Raymond (com as também excepcionais criações de Reggiani e Bussières). A sequência na polícia, milagre de concisão e elipse, é o ponto culminante dessa aventura paralela que tem a sua expressão máxima no breve movimento de cabeça de Raymond quando percebe tudo e na luz – uma vez mais – que enche os olhos de Manda. Reconstituindo impecavelmente uma época – Paris 1900 – servido pelos excepcionais décors de d'Eaubonne, Becker soube trazer até nós uma luz e um eco. A exuberância de formas – e de carnes – com que povoou o seu filme dão-nos a memória dum tempo e dum amor muito breve («mais il est bien court le temps des cerises»). E, regressando ao momento da dança, depois do terrível plongé da execução e do desfazer do ouro nos cabelos de Signoret, Becker fixa essa memória fantomática para prolongar e perpetuar a ilusão dela. 

in «João Bénard da Costa – Escritos Sobre Cinema», Tomo 1, 1º Volume, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2018, pp. 141-143.