por João Bénard da Costa
Mabília, chamava-se ela. Nome de criada antiga e criada antiga foi ela. Dessas, doutras eras, doutras vidas, doutros romances, doutros filmes. Aquelas de quem só nos lembramos já velhas, não conhecendo nada e percebendo tudo, sábias de ignorantes ou ignorantes de sábias.
Uma tarde de verão, em que, como em todas as tardes de verão, acompanhou os meninos à praia, deixou cair na areia uma arcada de ouro que era o mais precioso dos bens dela. Deu por isso quando chegou a casa. Não se apoquentou nada. Àquela hora já ninguém ia à praia. No dia seguinte, de manhã, iria buscá-la. Sabia perfeitamente onde lhe podia ter caído. Pacientemente, os patrões tentaram desenganá-la, explicando-lhe o fenómeno das marés. Sorriu, absolutamente tranquila. Então o mar haveria de ser algum ladrão para roubar ouro às criaturas? Riram-se da santa ingenuidade dela. Ela não riu nem chorou. Dissessem o que dissessem. A arcada lá estaria.
No dia seguinte, ao chegar à praia, foi direita ao sítio onde tinham estado na véspera. Curvou-se e apanhou a arcada. Ninguém queria acreditar. «Eu não dizia?» foi o único comentário. E nunca percebeu os espantos que se fizeram à roda do caso.
Quando a Rita me contou esta história, lembrei-me da tarde, que nunca mais hei-de esquecer, em que, num Março de Paris, um Março de 1961, conheci Jacques Demy, através de Lola. «Rit qui veut, pleure qui peut» era a epígrafe do filme, dedicado à memória de Max Ophuls. Era a história de uma pega – não, não consigo chamar-lhe puta – que uma noite, em Nantes, tinha engraçado especialmente com um cliente americano, marinheiro de passagem. Ele prometera-lhe que um dia voltaria rico para casar com ela. Passaram os anos, a criança de quem ficou grávida nessa noite já estava crescidota. Lola teve alguns bons partidos, a acabar (com ele começava o filme) num tal Roland Cassard (Marc Mitchel), muito, muito bom rapaz. Mas a todos – como a todas as colegas – contava que estava à espera do regresso do americano. Para toda a gente, a história era da carochinha. Mas para «moi, Lola, celle qui rit à tout propos», histórias da carochinha eram as dos outros. E um belo dia, como tinha ido, o americano voltou. Todo vestido de branco, num grande carro branco, com um grande chapéu texano branco. Para casar com Lola e tomar conta da filha. As outras meninas choravam. Só Lola, como Mabília, com nada se espantou. Nunca duvidara. Ao som da 7ª Sinfonia de Beethoven, nós também não. Desde o princípio do filme, tínhamos visto o carro branco, o americano branco e sabíamos que era ele.
Entre putas e marinheiros, Lola era um filme de anjos e, metaforicamente, um filme dançado. «Moi j'étais pour elle.» Ela era Anouk Aimée, no papel da sua vida. O mundo encantado de Jacques Demy – tão encantado como o mundo de Mabília – começou aí e acabou vinte e sete anos depois no fabuloso Trois Places pour le 26 (1988), dois anos antes de Demy morrer de sida aos 58 anos. Não me espantei nada que ressuscitasse duas vezes – Jacquot de Nantes (1991) e Les Demoiselles Ont Eu 25 ans (1993) – nos filmes realizados pela mulher, Agnès Varda. Tão belos como.
Tão belos como La Baie des Anges (1963), onde, em vez de Nantes, havia Nice, em vez de Anouk Aimée, Jeanne Moreau, e onde o casino ia à glória por por força do amor entre Jacqueline e Jean (Claude Mann).
Tão belos como os filmes, não só encantados como cantados (en-cantados, dizia-se nos anos 60), que foram Les Parapluies de Cherbourg (1964), Les Demoiselles de Rochefort (1967) ou – já lá iam, já lá iam os anos 60 – Une Chambre en Ville (1982).
Sempre com Michel Legrand à sua beira (Legrand compôs a música para todos os filmes de Demy à excepção do «inglês» The Pied Piper de 1972), Demy desafiou-o, em 1963, para um filme em que os personagens cantassem em vez de falar. «Não acredito na ópera, porque não se percebe o que é dito. Tentemos encontrar o equivalente da ópera no cinema, mas em que cada palavra seja clara, compreensível.» O musical americano? Não tanto, porque se personagens não desatavam a cantar a páginas tantas, cantavam sempre mesmo quando Guy (Nino Castelnuovo), empregado numa bomba de gasolina, tinha de perguntar aos fregueses se eles queriam «super ou ordinaire». Em verso ou em prosa, em discussões domésticas ou em arrebatamentos amorosos, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, num caso, até (Tante Élise) na morte. Personagens com os pés bem assentes na terra, burguesinhos ou burguesinhas («escale cherbougeoise») com preocupações narrativas muito concretas e referências históricas precisas (a guerra da Argélia). Personagens protegidas pelos chapéus de chuva, esses mesmos, os da loja de Mme. Emery (Anne Vernon) em Cherbourg, a mãe de Geneviève, o papel que transformou a carreira de Catherine Deneuve.
No fundo (espanta-me que à época não se tenha reparado muito nisso) Les Parapluies de Cherbourg é uma espécie de Splendor in the Grass[1], de sexo menos aparente e com tensões dramáticas menos explosivas. Mas Geneviève e Guy amaram-se de um amor tão novo e tão carnal como os heróis de Kazan e também não foram capazes de resistir às famílias, às separações e às ausências. O tempo deles passou sem que eles se apercebessem da passagem. Casaram-se trocados, com o «boy next door» ou com a «girl next door», os que souberam durar mais e persistir mais. E quando, no fim, se reencontram, ela de casaco de peles, ele na estação de gasolina, há a mesma tristeza inenarrável do último encontro de Natalie Wood e Warren Beatty. Passou o tempo do «esplendor na relva» (aqui «esplendor no mar») e nunca mais, nunca mais voltará. As magias ou permitem todos os milagres (Lola) ou transformam os enfeitiçados em estátuas de sal. Este filme encantado é o filme do grande desencantamento, conto de fadas para quem deixou de acreditar em fadas. Geneviève a cantar que houve um tempo em que era capaz até de dar a vida por Guy e a perguntar-se por que é que não morreu. Morrer, morreu – nesse casamento filmado como um enterro – só que morreu como a maior parte de nós um dia morre. A vida deixa-nos, mas sobrevivemos. Passamos a con-viver.
O mais misterioso neste filme em que o encantamento funciona no sentido contrário ao de Lola (ou, depois, ao de Les Demoiselles de Rochefort, presidido por Gene Kelly para as irmãs Catherine Deneuve e Françoise D'Orléac) é que o canto parece existir para sublinhar a duração das personagens, ou, melhor dito, o excesso de duração das personagens que lhes roubou o instante em que pareceram voar, como no plano em que Demy filma Geneviève e Guy em cima do charriot, aquando do primeiro passeio de ambos.
Quando o filme se estreou em Portugal, entre acesos ataques e valentes defesas, o António-Pedro Vasconcelos, o Gérard Castello-Lopes, o João Paes, o Nuno de Bragança e eu passámos uma noite a discuti-lo em casa do João Paes, com gravador ao lado, para um longo debate que saiu no nº 22 de O Tempo e o Modo (eram possíveis coisas dessas nesse tempo). A certa altura, o Gérard Castello-Lopes, que embirrou bastante com o filme, disse que, de cada vez que o diálogo cantado procurava fugir ao convencional para se tornar «natural», lhe parecia estar a ampliar-se «aquele momento, horroroso entre todos, em que nas comédias musicais sentimos que as personagens “vão cantar” ou em que o locutor da televisão já disse “boa noite” e a imagem ainda não se cortou.»
Sem o querer – e como lhe notei na altura – estava a tocar no cerne da razão de ser do canto neste filme tão triste que é Les Parapluies de Cherbourg. É exactamente porque as personagens se prolongam para lá das suas imagens e sentimentos que o canto se substitui ao diálogo. Se falassem, a duração era muito mais reduzida e, como tal, muito menos sentida. Com a duração à sobreposse a que o canto obriga e exige, Demy traduziu precisamente o horror da sobrevivência para além do que é milagroso na vida e reforçou a convenção dos comportamentos que se esvaziaram de intensidade. Deu-nos a sensação do limbo, de pessoas desfeitas. Mudou o canto em desencanto, a vida em morte e o fulgor do instante em exaustiva duração.
Como os temas musicais de Geneviève e Guy se perdem no final, nos temas das personagens que acabam por os aprisionar, as imagens e as vozes deles também são imparavelmente desgastadas, como se a coreografia inicial (a prodigiosa e festiva abertura do filme com as linhas de chuva) se imobilizasse pouco a pouco num espaço e num tempo que já não consentem qualquer retorno.
Um tempo, um tempo há, em que a co-naturalidade prodigiosa da Mabília e de Lola se perdem e nunca mais se encontram arcadas nem voltam, em manhãs de nevoeiro, amores perfeitos de uma só noite. Les Parapluies de Cherbourg é o filme desse tempo. No princípio, Geneviève diz a Guy: «Tu sens l'essence» e, depois, acrescenta, em referência à vida futura deles: «Oh quel bonheur, tu sentiras l'essence toute la journée.» No fim, na última cena nas bombas de gasolina, a palavra Essence está cortada ao meio. Felicidade e essência foram coisas de um tempo, um tempo muito breve. Mas não acabaremos nunca de o dizer, de o cantar ou de o fixar. E essa é a nossa condenação.
[1] Ver Os Filmes da Minha Vida / Os Meus Filmes da Vida, 1º Volume, pp. 79-83.
in «Os Filmes da Minha Vida», 2º Volume, Assírio & Alvim, Lisboa, Maio de 2007, pp. 219-224.