quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

It Must Be Heaven (2019) de Elia Suleiman



por António Cruz Mendes

Vi O Paraíso, Provavelmente, pela 1º vez, numa sessão que contou com a presença de Elia Suleiman. Quando, depois da projecção, ele apareceu para a esperada sessão de perguntas e respostas, vimo-lo exactamente com o mesmo aspecto com que aparece no filme. A mesma roupa, o mesmo chapéu… Parecia que tinha acabado de sair da tela para conversar connosco! Todos os manuais são taxativos sobre esta matéria: não podemos julgar uma personagem de um romance ou de um filme como se de uma pessoa real se tratasse, é uma ficção que só existe no contexto da obra onde aparece. O que importa, antes de tudo, é saber como é que ela foi construída. 

Elia Suleiman parece que fez questão em desmentir este axioma. Aliás, para que não restassem dúvidas, o realizador palestiniano que vê o seu projecto recusado na entrevista que decorre em Paris é tratado por “Suleiman” e por “Elia” na que se realiza em Nova Iorque. Portanto, Charlie Chaplin não é Charlot, Jacques Tati não é o Sr. Hulot, mas é mesmo Elia Suleiman, ele próprio, a personagem central do filme que Elia Suleiman realizou. 

Resta saber se se trata, de facto, de uma “personagem”. A sua intervenção no decurso da acção é nula. A sua postura típica – de pé, braços cruzados atrás das costas, olhando em frente – é mais a de um espectador do que de alguém que participa nos acontecimentos que nos são dados a ver. Praticamente, não fala. Durante todo o filme, só uma vez lhe ouvimos a voz, quando informa o motorista de táxi de que é palestiniano. “Palestiniano” – na verdade, isso resume-o como personagem deste filme. Aquilo que O Paraíso, Provavelmente quer ser é o resultado do olhar de um palestiniano sobre o mundo. Afinal, talvez, Elia Suleiman, a personagem, seja um pouco mais (e um pouco menos) do que Elia Suleiman, a pessoa que se apresentou no palco do Nimas para conversar sobre a sua obra e sobre a Palestina. 
 
O palestiniano, segundo Suleiman, é um pária. Um estrangeiro na sua própria terra e um estranho em qualquer parte do mundo. Quando ele se apresenta como palestiniano ao motorista de táxi, este trava a fundo como se lhe tivessem dito que transportava um extra-terrestre. E até em Paris, o seu filme é recusado por ser pouco “palestiniano”. O filme de um palestiniano nem palestiniano é. 

E, portanto, como pária que é, o olhar de Suleiman sobre aquilo que se passa à sua volta só pode ser o de uma profunda estranheza. Tudo aquilo que vê em Nazaré, em Paris, em Nova Iorque, parece obedecer a uma lógica que o transcende. O seu olhar, por vezes impassível, por vezes perplexo, deslumbrado ou divertido – é sempre um olhar “do exterior” da coisa observada, de alguém que se encontra fora do contexto que poderia dar a essa coisa algum sentido. Esse distanciamento tem um efeito cómico porque, transmitindo-se ao espectador, revela-nos o absurdo de uma certa “normalidade”. Por isso, é tão fácil compará-lo à comicidade que resulta do confronto do Sr. Hulot com as invenções e as convenções dos “tempos modernos”. 

O Paraíso, Provavelmente é, assim, simultaneamente, um filme trágico e um filme cómico. Um filme onde uma série de gags irresistivelmente engraçados se sucedem sobre um fundo onde se reflecte a condição trágica de um povo. 

E, então, a Palestina, que nos surge sob a forma de uma rapariga-anjo, perseguida no Central Park pela polícia, protectora dos bons costumes, ou no comício onde os aplausos dos espectadores não permitem que os heróis-oradores se façam ouvir? Apesar de tudo, a Palestina resiste e recomenda-se. O limoeiro que ele plantou, regado pelo vizinho que repetidamente se intromete no seu quintal, já está mais crescido; a aguadeira fez progressos no seu processo de ir buscar água à fonte; e os jovens dançam e divertem-se numa discoteca. As cartas dizem que “haverá Palestina”, ainda que isso não seja para os nossos dias. 

O filme é dedicado a ela e termina com uma tímida mensagem de esperança.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Yadon ilaheyya (2002) de Elia Suleiman



por Alexandra Barros

Nalguns países, Intervenção Divina tem associado o subtítulo Uma Crónica de Amor e Dor. É entre estes dois pólos que E.S., a personagem principal, vive o seu dia-a-dia. E.S., interpretado pelo próprio realizador do filme, Elia Suleiman, é (como este) um árabe que habita nos territórios de Jerusalém sob ocupação israelita. O pai vive em Nazaré[1] e é hospitalizado após sofrer um ataque cardíaco causado pela depressão económica e psicológica decorrente da ocupação. Do outro lado da fronteira, em Ramallah[2], vive a namorada de E.S.. Impossibilitada de atravessar a fronteira, que está aberta só para quem vive no “lado certo”, é E.S. quem a atravessa. Estaciona junto ao checkpoint e é aí que os dois se juntam. Entre as visitas ao pai hospitalizado e os encontros com a namorada, percorremos uma teia de histórias de palestinianos cujo quotidiano é marcado pelas consequências da invasão política e militar. 

Intervenção Divina tem poucos diálogos, mas Suleiman deixa os temas musicais falar (I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, numa versão de Natacha Atlas, é particularmente eloquente). O tom geral é de humor negro e essencialmente visual. Frequentemente comparado a Jacques Tati ou Buster Keaton, Suleiman mantém-se (quase) impassível em (quase) todas as circunstâncias. De olhar melancólico e intenso, não diz uma única palavra durante todo o filme. 

Os movimentos coreografados sempre deliciaram Suleiman, de acordo com uma entrevista que deu ao The New York Times, e algumas cenas do filme são pura coreografia. Os encontros entre E.S. e a namorada, por exemplo, com os seus pas de deux executados literalmente a duas mãos, são das mais belas cenas de expressão muda de desejo amoroso do [3] cinema. Nessa entrevista Suleiman disse também desejar comunicar através do humor porque “dessa forma, sentimo-nos menos sós.” “Não faço filmes por razões politicamente correctas, mas para encontrar mais espaço para o amor.” 

Há mais umas quantas cenas memoráveis em Intervenção Divina: um Pai Natal aterrorizado por um bando de rapazes que o persegue por uma encosta de Nazaré acima; um balão subversivo, com a cara sorridente de Yasser Arafat estampada, a atravessar pelo ar fronteiras fechadas em terra; um confronto surreal, com balas paradas à la Matrix, entre uma ninja palestiniana e um grupo armado israelita; um semáforo que desencadeia uma tensa medição de forças. 

A violência latente e o absurdo percorrem esta(s) história(s) de um povo sob ocupação. Há quem espere todos os dias por um autocarro que nunca vem; há insultos murmurados por baixo de acenos sorridentes e aparentemente amistosos; há caroços de fruta que rebentam tanques militares como granadas; há lixo lançado para o quintal do vizinho e re-lançado de volta para o primeiro... 
- Vizinho, porque é que atira o lixo para o meu quintal? Não tem vergonha? 
- O lixo que atiro para o seu quintal é o mesmo que atirou para o meu jardim. 
- Não deixa de ser uma vergonha. Os vizinhos deviam respeitar-se. Deveria falar comigo sobre isso. 
Com estas três linhas, Suleiman traça um esboço do eterno conflito israelo-palestiniano: um sem-fim de apenas perdas. 

O filme foi muito bem recebido em todo o mundo e tentou candidatar-se aos Óscares. No entanto, a Academia rejeitou a candidatura com um argumento que parece escrito para o próprio filme: os filmes têm que ser nomeados pelo país de origem e a Palestina não é oficialmente um país. 

Desta loucura trágica e infindável só parece ser possível sair de uma forma: intervenção divina.

[1] Cidade israelita, com um grande número de habitantes árabes.
[2] Cidade palestiniana.
[3] meu

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Joy Baba Felunath (1979) de Satyajit Ray



por Joaquim Simões

É natural, então, que no conjunto da vasta obra poética e sublime de Ray, esta seja uma entrada necessariamente mais leviana, uma intriga sherlockiana de contornos cómicos e que adquire um caráter e humor singulares através da sua mistura única com a cultura e religião hindu. Mas precisamente pela sua convenção de género, O Deus Elefante é também uma oportunidade para Ray, o cineasta, aplicar a sua mestria do cinema como arte da narrativa, desenrolando a clássica trama policial com um perfeito equilíbrio de humor e suspense tingidos pela aura mística das paisagens do rio Ganges, cenário reminiscente do segundo filme da inesquecível trilogia de Apu, Aparajito
 
Um homem de negócios rico visita um antigo amigo, querendo-se informar acerca de uma estatueta valiosa do deus Ganesh que sabe estar na posse do pai deste. As sombras na cara do homem apresentam-no como o inconfundível vilão antes sequer das suas intenções serem reveladas: obter a estatueta, a bem ou a mal. Quando Umanath se recusa a vender-lha apesar da proposta aliciante que saldaria as suas pesadas dívidas, o corrupto Maganlal fica descontente: normalmente não se digna a pagar pelas coisas que quer - pega simplesmente nelas. Na noite seguinte a estatueta é roubada do cofre do pai de Umanath. 
 
Felu, Topesh e Ganguly, amigo e escritor de policiais, chegam a Benares, uma cidade na margem do Ganges, para uma estadia de férias durante a semana em que se celebra a Durga Puja, um festival Hindu em honra da deusa Durga. O trio instala-se num hotel onde partilha quarto com Gunamoy Bagchi, campeão mundial de culturismo e personagem que contribui com alguns dos momentos mais engraçados do filme. O simpático gerente do hotel leva o trio a uma cerimónia religiosa em torno de uma celebridade recente, um homem sagrado que adquiriu essa reputação ao ter nadado, diz o gerente, desde Prayag a Kashi - uma extensão de água maior do que o canal da mancha. Durante a cerimónia o homem sagrado recebe oferendas dos homens mais prósperos da cidade, incluindo, é claro, o poderoso Maganlal. Após a cerimónia o trio é introduzido a Umanath Ghosal e este, ao saber da profissão e reputação de Felu Mitter, encarrega-o de resolver o mistério do roubo da estatueta preciosa. Acabam-se as curtas férias e começa o trabalho de detetive; segue-se a inevitável sequência de entrevistas aos habitantes da mansão Ghosal, onde todos são suspeitos. O patriarca Ghosal, um velho teimoso e altamente culto em literatura policial conhece os truques todos das histórias de detetives e não se deixa impressionar pela reputação de Felu - o próprio resolveria o caso se fosse mais novo, diz o velho provocatório, numa cena que termina com Felu a folhear um folioscópio que se encontra pousado em cima da mesa, um gesto que na sequência da conversa adquire o caráter de uma pequena e irónica metáfora para o cinema como também apenas um truque. 

A história desenvolve-se dentro das convenções do género policial: as suspeitas, as pistas incompletas, o momento de sobrolho franzido em que Felu liga as pistas com o seu poder cerebral e a dedução genial que derrama nova luz sobre o mistério, elevando-nos a um novo estado de conhecimento que por sua vez gera novas suspeitas e novos mistérios; a introdução de perigo e ameaças quando Felu se aproxima da solução; uma perseguição pelas ruas labirínticas de Benares, culminando num assassínio trágico (mas não demasiado): todos os ingredientes de um thriller clássico estão presentes. Mas não é neles, claro, que reside a força do filme. É, sim, na forma como este não se leva demasiado a sério, no espaço que deixa para as referências a policiais e bandas desenhadas que inspiraram a história, e no humor ingénuo que surge através dos personagens caricatos que nos acompanham durante o filme, não podendo deixar de referir novamente Gunamoy Bagchi, o culturista que partilha estadia com o trio e que fascina Ganguly com a obra de escultura que é o seu corpo, assim como o seu conhecimento da complexa musculatura humana, onde cada músculo tem o seu próprio nome - curiosidade que deleita o escritor. 

Assim nos despedimos, por ora, de uma figura que marcou profundamente e para sempre a história do cinema, um artista de múltiplos talentos (basta contar o número de vezes que o seu nome se repete no início desta folha), e um homem que, não obstante a subtileza dos seus grandes filmes, manteve sempre o gosto pelas histórias de heróis e vilões que nos cativam em crianças e a partir das quais nasce o primeiro amor pelo cinema.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Charulata (1964) de Satyajit Ray



por António Cruz Mendes

De todos os filmes realizados por Satyajit Ray, Charulata era o seu preferido. O único, diz-nos ele, do qual não alteraria nada se tivesse que o filmar outra vez. Estamos, de facto, perante um exemplo do mais puro cinema, de uma narrativa contada, não tanto pelas palavras que se dizem, mas pelas imagens que nos são dadas a ver. Imagens dos protagonistas, com certeza, mas também as das coisas e dos ambientes onde eles se movem. Um bastidor de bordar, uns binóculos, as máquinas de uma tipografia, um jardim abandonado, um baloiço, um caderno, as ondas do mar, o vento… Tudo isso nos conta uma história de sonhos reprimidos, de amores impossíveis. 

Numa das primeiras sequências do filme, vemos Charulata a deambular pela sua agradável mansão. São cerca de 10 minutos onde, salvo uma furtiva e silenciosa passagem de Bhupati, só ela está em cena. Não se ouve qualquer diálogo, mas basta-nos seguir os seus passos, observar as coisas para onde se dirige o seu olhar, aquelas que toca com a ponta dos dedos, para ficarmos a conhecer as circunstâncias da sua vida. O mundo exterior, vê-o ela através das frestas das persianas que protegem do sol os seus aposentos. Charulata vive numa gaiola dourada. 

Bhupati ama-a sinceramente, mas está totalmente absorvido pela publicação do jornal que edita e pelas causas políticas que defende. Charulata parece condenada a uma vida confortável, mas solitária. Os dias passam-se, monótonos e ociosos, entre os bordados, os livros, o piano… Porém, quando uma grande ventania varre as varandas da casa, a gaiola com pássaros oscila perigosamente – e Amal, alegre e espalhafatoso, entra em cena. 
 
Estamos à entrada do último quartel do século XIX e a Índia faz parte do Império britânico. Amal faz gala do seu desprezo pelos aspectos materiais da existência. O seu projecto de vida é descansar, escrever e… descansar. O seu mundo é o da poesia de Shakespeare, de Shelley, de Byron. Tem 23 anos e vive despreocupadamente. “Trabalho” é uma palavra amaldiçoada e o casamento uma perspectiva desagradável e felizmente longínqua. 

Numa sociedade em mudança, mas ainda presa a velhos costumes e tradições, Charulata, com Amal, descobre um mundo com novos horizontes. Os outros residentes na casa são familiares sem recursos, protegidos por Bhupati. Umpada, irmão de Charulata, é o contabilista do jornal “A Sentinela” e Manda, a sua mulher, é, para Charulata, uma companhia enfadonha. Mas, Amal, pelo contrário, é alegre e divertido. Canta, escreve, declama. Charulata encontrou alguém a quem pode falar dos seus gostos literários e entre os dois vai-se forjando uma relação de cumplicidade. As imagens da cena do baloiço oferecem-nos um momento de libertação e, no final, Amal decide escrever e Charulata oferece-lhe um caderno com a condição de que aquilo que aí for escrito não seja publicado. Será apenas deles os dois. 

Tal como a solidão, o amor não se exprime em palavras. Charulata é um filme de silêncios. Quem fala são as imagens. Enquanto Amal se debruça sobre o caderno e começa a escrever, Charulata perscruta a natureza com os seus binóculos. O acaso leva-a a descobrir uma mãe que dá o colo a um filho pequeno. Os binóculos desviam-se e focam-se no rosto de Amal. O plano seguinte é o do rosto de Charulata e uma sombra toma conta do seu olhar. A sequência termina num anti-climax quando ela fica a saber que foi o seu marido que pediu a Amal que a incentivasse a escrever. 

O não-dito percorre todo o filme. Não são precisas palavras para expressar os sentimentos da Charu quando assiste, mergulhada na sombra, ao diálogo entre o seu marido e Amal a propósito de um casamento que o levaria à terra de Shakespeare e a um sonhado Mediterrâneo. Aliás, elas contradizem-nos quando regressa à luz, irradiando felicidade, quando essa conversa termina com um “não”. Ou aqueles que perpassam Amal quando vê a amargura de Bhupati diante da traição de Umpada e que decidem a sua partida. 

Na sequência da praia, o ritmo das ondas que beijam o areal onde Bhupati e Charulata fazem planos par o futuro parecem anunciar uma possível futura, serena, felicidade. Mas, de novo, o vento traz notícias de Amal e a leitura da carta onde ele se despede do casal de amigos destrói os últimos diques que continham uma paixão durante tanto tempo reprimida. 

Bhupati ama de facto Charu e ela respeita-o e admira-o. As últimas imagens dizem-nos que a reconciliação é a única saída possível. Mas, a imagem que se congela no momento em que as suas mãos quase se tocam, revela-nos as fronteiras onde, para sempre, há-de ficar confinado o seu casamento.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nayak (1966) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. [...] Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. [...] Sinto-me viver vidas alheias [...] uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.” Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.

Todos somos múltiplos. Quando é que somos quem realmente somos, quando é que somos quem gostaríamos de ser, quando é que somos o que temos que ser? O Herói deste filme construiu uma persona pública para conseguir o que mais ambicionava, fama e dinheiro, mas os custos dessa máscara vêm a revelar-se muito pesados. 

O Herói é Arindam Mukherjee, uma estrela do cinema indiano, que viaja num comboio para Nova Deli, onde irá receber um prémio prestigiado. Aí conhece uma jornalista, Aditi Sengupta, que apesar de não ter interesse nem em Arindam nem nos seus filmes, lhe pede uma entrevista, com a qual ganhará leitoras para a sua revista. Inicialmente Arindam recusa mostrar a “carne e o sangue” como lhe sugere Aditi, para não desfazer a imagem grandiosa que o público tem dele. Mas os medos, inseguranças e arrependimentos inconfessados já chegaram à garganta. Como não corre o risco de desiludir Aditi (que não o admira), acaba por falar com ela sem encenações ou filtros. 

Arindam começa por contar o sonho que acabou de ter durante um breve período em que adormeceu. No sonho, Arindam vagueia por entre colinas de cumes arredondados onde esvoaçam folhas ao sabor do vento. Arindam está feliz, as colinas são pilhas de dinheiro e as folhas são notas. Contudo, um após outro, toques de telefone sufocam o bucolismo inicial e a fortuna descomunal acaba por engolir Arindam. É uma cena surreal memorável, com a magia peculiar dos efeitos-especiais analógicos, mais focados na “poesia visual” e simbolismo que nos excessos mirabolantes dos efeitos CGI atuais. 

A tentativa de perceber o sonho é o início de uma viagem com sabor a Morangos Silvestres[1], paralela à do comboio. Uma viagem ao passado, ao longo da qual Arindam revela os seus conflitos interiores, dores de consciência e aquilo de que abdicou para ser rico e célebre. As primeiras angústias surgiram no filme onde se iniciou. Face à autoridade do respeitado actor principal, representou de acordo com as orientações que recebeu dele, mesmo sabendo que teria feito melhor se tivesse adoptado um registo mais natural. Daí para a frente continuou a submeter-se às exigências da indústria cinematográfica e sacrificou convicções, amizades e o respeito de quem lhe era querido, para não pôr a sua carreira em risco. Vive rodeado da entourage que o serve. Nunca só, mas sempre só. Sabe que será abandonado quando deixar de poder oferecer o melhor chá Darjeeling à sua equipa. O público adora-o como a um Krishna dos tempos modernos, mas o público é inconstante e imprevisível. Quando deixar de agradar, será substituído por novos deuses. 

Arindam não é, no entanto, o único que actua mesmo fora do palco e, apesar da vasta experiência no ofício da representação, é enganado pela “actuação” de uma aspirante a sua “heroína”. Entretanto, outros passageiros representam também os seus papéis. No mesmo compartimento de Arindam viaja um casal com uma filha. O pai, Haren Bose, é um empresário bem sucedido com quem um executivo de publicidade, Pritish Sarkar, que viaja no mesmo comboio, ambiciona fazer negócio. Para isso, tenta convencer a sua mulher, Molly, a fazer o que for necessário para agradar ao potencial cliente. Ela fica desgostosa com a proposta, mas sob pressão propõe uma troca de favores ao marido. Representará o papel de seduzida perante os avanços de Bose, se Pritish permitir que ela seja actriz de cinema. Esta história secundária evoca O Desprezo de Godard, filme que aliás se cruza com O Herói nas críticas que ambos fazem ao cinema orientado para objectivos puramente comerciais. 

São vários os companheiros de viagem de Arindam que criticam e expressam o seu desapreço pelo cinema indiano: Aditi, Aghore Chatterjee (um jornalista do The Statesman[2]), Haren Bose e o próprio Arindam. Censuram a indústria cinematográfica pela orientação para o lucro e o gosto popular, e pelos filmes demasiado fantasiosos e que nada dizem sobre o mundo real. Shankar, o mentor de Arindam no tempo em que este se dedicava ao teatro, aparece num flashback a criticar o cinema de forma geral, onde os actores não têm espaço para a sua arte, são apenas marionetes nas mãos do realizador e dos responsáveis pela filmagem, pelo som, pela montagem, ... 

Aditi, todavia, acaba por perceber que o cinema de entretenimento tem o seu valor. Pelo menos momentaneamente, proporciona felicidade aos espectadores. Compreendeu também que Arindam se esforça para proporcionar essa felicidade aos seus fãs e que desempenhar o papel de “estrela” exige uma grande disponibilidade para as muitas solicitações dos que o idolatram. 

Com tudo o que ficou pelo caminho, a única experiência de calor humano que resta a Arindam é a devoção dos admiradores. Aditi rasga os apontamentos escritos no decorrer da entrevista. Os heróis, por vezes, também precisam de ser salvos.

[1] de Ingmar Bergman.
[2] Um importante jornal indiano, escrito em língua inglesa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Kapurush (1965) de Satyajit Ray



por André Miranda

Em 1923, quando Satyajit Ray tinha apenas dois anos, o seu pai, Sukumar Ray, escritor reconhecido pela poesia absurda infantil, morre. Confrontada com uma morte tão precoce, Suprabha Ray, muda-se com o filho para a casa de um irmão, sustentando-se com um parco rendimento obtido com um emprego para o qual todos os dias se deslocava de autocarro, desde o Sul até ao Norte de Calcutá. Foi Suprabha quem convenceu Ray, após este se ter formado em economia pela Universidade de Calcutá, a estudar pintura em Visva-Bharati. Aqui Satyajit Ray, até ali mais exposto à cultura ocidental, conhece a arte oriental, assim como é orientado por famosos pintores indianos. Sobre um deles, Benode Behari, faria mais tarde um documentário. 

Para além da mãe, também a esposa, Bijoya Ray, foi uma importante influência na carreira artística de Satyajit Ray. Contra a vontade da família e das normas da sociedade os dois casaram-se secretamente em 1949. Um ano depois, após a aprovação da mãe de Satyajit, voltam a casar, desta vez seguindo todas as tradições bengali. Bijoya, que teve uma fugaz carreira como atriz, era a primeira a ler o guião dos filmes de Satyajit, contribuindo com ideias e sugestões. 

Não é, pois, de estranhar que tanto no filme de hoje, como n’A Grande Cidade, exibido na semana passada, as personagens femininas tenham uma força e dimensão pouco habituais, quando consideramos a época em que os filmes foram feitos e a força do patriarcado na sociedade indiana. 

Somos incapazes de definir Karuna, a personagem feminina; se a sua confiança é mera estratégia de infligir dor naquele que a desiludiu, ou se é uma aceitação do destino que lhe coube e com o qual se sente confortável. O que sabemos é que, das três personagens, é ela quem não demonstra nenhuma fraqueza. O marido afoga-se em álcool pela noite fora, consumido pela solidão da vasta propriedade, até que a música pare e apenas se ouçam os latidos dos cães. O outro homem, antigo interesse romântico de Karuna, vive preso no arrependimento, de olhar constantemente agoniado e os gestos tolhidos pela indecisão. 

Baseado num conto do escritor bengalês, Premendra Mitra, trata-se de um filme curto, mas nem por isso menos capaz de revelar a subtileza das emoções humanas. A câmara de Ray move-se sem nunca chamar à atenção, atenta aos gestos e olhares, ao que existe para além das palavras. A história é contada de forma dinâmica, recorrendo a flashbacks para revelar o passado. Se rearranjássemos as cenas pela sua ordem temporal ser-nos-ia possível observar como os espaços ficam cada vez mais amplos e como as personagens se afastam e se movem em direções opostas. Lançado em 1965, O Cobarde nunca deixará de ser atual.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Mahanagar (1963) de Satyajit Ray



por Alexandra Barros

Novembro será inteiramente dedicado a Satyajit Ray, reconhecido mestre do cinema indiano e da História do Cinema. Acerca dele, outro mestre, o japonês Akira Kurosawa afirmou: “Não ter visto os filmes de Ray é ter vivido no mundo sem nunca ter visto a lua e o sol.” 

Satyajit Ray realizou 36 filmes, incluindo ficção, documentários e curtas-metragens. Pather Panchali, o seu primeiro filme (e primeiro da Trilogia de Apu), ganhou dezenas de prémios internacionais. O seu trabalho continuou a ser reconhecido ao longo da vida e foi premiado em diversos Festivais de Cinema prestigiados (Berlim, Cannes, Veneza, ...). Em 1992, pouco tempo antes de morrer, foi distinguido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com um Óscar Honorário, “em reconhecimento ao seu raro domínio da arte da imagem em movimento e à sua profunda perspectiva humanista”. 

Charulata, A Grande Cidade, O Herói e A Trilogia de Apu aparecem recorrentemente nas listas dos melhores de Satyajit Ray, compiladas pelos muitos cinéfilos que o acarinham. Salvo a Trilogia, todos fazem parte do ciclo que lhe dedicamos. Ray era também cineclubista e um cinéfilo apaixonado. 

A Grande Cidade acompanha um drama familiar, enquadrado num olhar sobre a Índia pós-colonial. É uma época de transição, em que as mudanças sociais inevitáveis chocam com os costumes tradicionais, dando origem a conflitos e dores pessoais, como os retratados no filme. 

Subrata e Arati vivem em Calcutá e são responsáveis por um núcleo familiar formado por um filho pequeno, os pais de Subrata e a sua irmã mais nova. Subrata trabalha num banco, mas o seu salário dificilmente chega para todas as despesas familiares. Para ajudar a superar as dificuldades económicas, Arati arranja um emprego. Quando o banco de Subrata vai à falência, ele perde o emprego e Arati passa a sustentar sozinha a família. Apesar de essa ser a única solução imediata para a subsistência familiar, e de Arati estar feliz por poder ajudar a família, ninguém aceita bem a situação. Os preconceitos sociais e os ressentimentos pessoais do marido, sogro e filho de Arati minam particularmente a harmonia anterior. Para Arati há agora dois mundos, aparentemente irreconciliáveis. A cidade, o seu trabalho, batom, óculos de sol, por um lado; a casa e a família, por outro. É no interior da sua casa, no interior das casas que visita (clientes e Edith, a sua colega e amiga anglo-indiana) ou nas que são visitadas pelos outros membros da família, que quase toda a acção do filme decorre. A cuidada composição destes espaços cénicos serve a identificação e caracterização dos diversos “mundos” que coexistem na sociedade indiana (classes sociais, grupos étnicos, passado colonial). 

A emancipação feminina, tema ainda universalmente relevante, não é a única questão social focada que continua atual. Subtilmente entrelaçadas na narrativa principal temos outras preocupações: o lugar dos mais velhos e reformados na sociedade, o drama das falências dos bancos, os preconceitos raciais, a herança colonial, a estrutura das classes sociais. Em A Grande Cidade temos assim um exemplo perfeito do que Satyajit Ray disse pretender capturar nos seus filmes: tanto o que é único na experiência indiana quanto o que é universal. 

A universalidade e intemporalidade da matéria dos filmes de Satyajit Ray será uma das razões pela qual eles “falam” a tantas pessoas. Embora o seu cinema seja intrinsecamente indiano, é também de todo o lado!

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra



por João Palhares

Havia um rio chamado Lete, na mitologia grega. Ficava no submundo junto ao palácio de Hades, sob um cipreste. Dele bebiam os mortos para se esquecerem da vida terrena. Os romanos chamavam-lhe Lethes, ou flumen oblivionis, e localizaram-no geograficamente durante a conquista da Península Ibérica. Numa expedição liderada por Décimo Júnio Bruto em 137 a.C., os soldados, receando perder a memória, disseram ao comandante que não atravessariam o rio, o que levou o centurião romano a percorrê-lo até à outra margem para provar aos seus homens que as águas não tinham poderes místicos ou demoníacos, gritando os nomes de cada um deles do outro lado do rio para também eles o atravessarem. Esse rio era o Rio Lima, escondido numa névoa que ocultou também uma aldeia, um povo e um país.

Colheitas, desfolhadas e cerimónias com a idade do mundo, a vida e a morte, o trabalho e a diversão, o dia e a noite, as mulheres e os homens, a lua e o sol, o campo e as fábricas, a música e as canções que os acompanham, restos de milho a planar como halos sobre as meninas que trabalham, decanas a rirem-se de forma indulgente dos jovens quando dançam e bebem por já terem passado por tudo aquilo, entregas de sopa em termos no meio da praça, olhares de amor não dissimulados de uma mulher quando o homem, depois de se queixar da vida e dos filhos, lhe elogia a comida que cozinhou.
 
Manuela Serra, depois de estudar na Bélgica no Institut des Arts et Diffusion (IAD), de trabalhar na montagem de Deus, Pátria e Autoridade (1974) e fundar com os seus colaboradores e cúmplices de trabalho de então a Cooperativa Virver (onde foi produzido Bom Povo Português, em 1980), partiu para Lanheses ainda nos anos setenta, antes que os ventos do progresso levassem as memórias desses ritos ancestrais, deixando-as impressas no filme que resultou da sua vontade, da sua paciência e do seu labor, O Movimento das Coisas, terminado em 1985 mas estreado comercialmente em Portugal apenas este ano. 
 
Em entrevista a Ilda Teresa de Castro[1], em 2000, a realizadora confessou que "viajei sozinha de carro à procura da minha aldeia. No Alentejo não sentia empatia com as pessoas e senti algum preconceito por ser uma mulher sozinha. No Norte senti-me mais confortável enquanto mulher sozinha nas minhas visitas solitárias aos espaços comunitários. No Minho há uma alegria que falta em Trás-os-Montes e nas Beiras. Apetecia-me aquela alegria do colorido do Outono no Minho. Por coincidência, eu queria uma aldeia com rio e aquela, Lanheses, tinha um. Uma antropóloga que conheci falara-me dessa aldeia. Isso também me favoreceu, porque ela tinha estado por lá a fazer uma investigação e, portanto, as pessoas estavam um pouco mais receptivas à presença destas mulheres curiosas, que ali vinham." 
 
Com banda sonora de José Mário Branco, o filme nunca é apenas um registo de actividades e costumes antigos, abraçando cada aldeão e cada família, cada vida e cada gesto com uma imensa generosidade. Tempo para mostrar uma criança a tentar fazer a sua parte nas colheitas, para ver num rosto de uma mulher sonhos e ambições que vão para lá do Minho, para sintetizar num jantar e com muito humor os confrontos geracionais que se intrometeram entre tantas famílias portuguesas nesses anos de transição. Três dias em Lanheses, que já foram tantas Sextas-Feiras, Sábados e Domingos das nossas vidas passadas. 

Quando o nevoeiro mítico pousa sobre a aldeia com os sintetizadores de Mário Branco como música de fundo, com fábricas e tempos novos a assolar a paisagem, percebemos que vão ser muitas e terríveis as mudanças a atingir essa pequena povoação do norte de Portugal. Até já aconteceu. Mas como o centurião romano desses tempos idos que também são evocados pelo filme nas travessias plenas de névoas pelo Lima, nada esqueceremos graças a Manuela Serra. Atravessou o nevoeiro da memória e chamou toda a gente pelo nome. Arriscou tudo e mostrou-nos o movimento das coisas.

[1] Castro, I. T. de. (2012). À Volta d'O Movimento das Coisas - conversa com Manuela Serra. artciencia.Com, Revista De Arte, Ciência E Comunicação, (15).

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

212ª sessão: dia 27 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


Foi este ano que estreou finalmente um filme talvez apenas conhecido pelo público regular da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema e dos Encontros Cinematográficos do Fundão (cuja edição deste ano começa já na Sexta-Feira). O único e belíssimo filme de Manuela Serra, O Movimento das Coisas, é a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation.

No Jornal dos Encontros de 2011, o realizador Manuel Mozos introduz a obra "citando João Bénard da Costa sobre o filme O Movimento das Coisas: das múltiplas singularidades do cinema português, este filme e o seu destino são um dos casos mais singulares, aplicaria este pressuposto a Manuela Serra, a sua realizadora. 

"Nascida em Lisboa a 31 de Maio de 1948, estudou psicologia, curso que abandonou para, em Bruxelas – cidade a que chegou em 1971 – ingressar no Institut des Arts et Difusion (IAD), onde estudou cinema durante um ano e meio. Com o 25 de Abril de 1974, decidiu regressar a Portugal, abandonando o curso e, a convite de Rui Simões, que também frequentara o IAD, trabalhou como assistente de realização, e na montagem de Deus, Pátria, Autoridade (1975), por este realizado. 

"Entre 1975 e 1976, fundou, juntamente com Antónia Seabra e os ex-colegas do IAD – Rui Simões, João Brehm, Dominique Rolin, Gérard Collet e Richard Verthé – a Cooperativa de Cinema VIRVER. Participou nos trabalhos desenvolvidos pela Cooperativa, nos mais variados sectores: argumento, assistência de realização, produção, montagem, bem como animações culturais. No filme Bom Povo Português (1980), de Rui Simões, para além de ter sido assistente de realização, e ter participado no argumento, na produção e na montagem, teve também um breve desempenho como atriz, numa das raras sequências encenadas desse filme. 

"Em 1979 partiu para a rodagem da sua primeira e única obra enquanto realizadora: O Movimento das Coisas."

Em entrevista ao mesmo Manuel Mozos e para o mesmo jornal, a realizadora Manuela Serra admitiu que "Lanheses foi a minha aldeia eleita. Depois de Alentejo, Beira e Minho, verifiquei que no Norte as pessoas eram mais abertas, respeitavam-me quando entrava sozinha num café ou restaurante, ao falar da ideia do filme manifestavam recetividade e interesse. O Minho é mais alegre que a Beira e no Alentejo olhavam-me com desconfiança. Encontrei em Lanheses uma harmonia entre o rio, o largo, a igreja, o entrecruzamento da população, uma arquitectura ainda preservada, e também uma simpática pensão com abertura para aceitar uma equipa de filmagem um pouco excêntrica. Ficção, documentário, acho que fiz um bom casamento. Dando exemplos talvez seja mais fácil. Quando fiz a Isabel olhar para trás ao descer da camioneta (no largo) no regresso da fábrica, foi ficção pura, não foi pedir-lhe que representasse o seu próprio papel, foi para servir a minha ideia, olhar para trás, que sublinhei com o paralítico. Também a velhota que, sentada à mesa, bebe uma malga de vinho e olha a câmara é ficção. Quando se colocou a câmara fixa em tripé no largo e se esperou que acontecesse, uma mulher de trocha à cabeça, uma carroça que vem do campo e atravessa o largo, grupos de homens à conversa aqui é documentário, não houve planificação, só montagem."

Para o Ípsilon, por alturas da estreia tardia do filme, o José Oliveira escreveu que "O Movimento das Coisas, concretizado entre 1978 e 1985, nunca chegou a estrear comercialmente em Portugal. Manuela Serra, a realizadora, faz parte de um grupo muito estrito no mundo do cinema, ao lado de nomes como Charles Laughton, Barbara Loden, Peter Lorre ou Marlon Brando, entre outros muito raros, por demais corajosos. Ou seja, assinou só um filme, mas tocou em tudo o que importa no Cinema como na Vida, matéria e espírito – «um filme que vale por muitas vidas e múltiplos filmes» disse recentemente uma jovem admiradora a Manuela Serra na sessão de apresentação da cópia restaurada na Cinemateca Portuguesa. A história é conhecida por alguns: depois do 25 de Abril e na febre de liberdade e de cooperativas que pudessem alcançar e manejar tal sede, Manuela Serra, sempre valente, meteu-se num automóvel e, depois de tentar o Sul, os Centros e outras latitudes, foi parar ao Norte a conselho de uma sua conhecida antropóloga chamada Carol, encontrando o seu Paraíso numa pequena terra encravada entre Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo. 

"Lanheses, assim se chama esse Paraíso Perdido em relação ao caos do nosso dia-a-dia que aprendemos a abraçar como habitual, encerra ainda hoje uma beleza original que parece conservada desde os inícios da criação, e Manuela obteve-a imediatamente e em estado de graça por uma limpidez de aproximação e de olhar que todos os segredos e essências lhe retribuiu. Lanheses aparece na tela como lugar de beleza desmesurada, carregada de tempo sem tempo, espaço para todos os encantamentos e harmonias, numa abstração sem idade. Toda a inocência, as brumas e as águas densas e claras, os sentimentos e sentidos belos que inundam o filme, não são criação e forçamento da maquinaria, imaginação ou da técnica do cinema, mas estão lá, de raiz, emergindo em abundância numa única e fulgurante comunhão entre o que se filma e como se filma, quem representa e quem apreende, natureza e intenção. Para quem, como eu, nasceu e cresceu nessa zona, a experiência é de absoluta fidelidade e novidade, as coisas vistas e escutadas de muito perto ou de muito longe, olhadas como eu as conheço e como nunca as vi, tão nítidas ou finalmente libertas das ideias feitas ou do fenómeno das coisas. Lembro-me de a minha mãe cantar a música popular A Chibinha na cozinha ou a cortar feno, mas quando ela aparece no filme tudo se volve união estelar, transfiguração e catarse."

Até Quarta!

India: Matri Bhumi (1959) de Roberto Rossellini



por André Miranda

O filme a que hoje vamos assistir, que em português se chama simplesmente Índia, tem como título original India: Mathri Bhumi. Estas últimas duas palavras, Mathri Bumi, traduzem-se em português como Mãe Terra. Bhumi também é a deusa hindu da Terra, por vezes representada sobre as costas de quatro elefantes que significam as quatro direcções do mundo. 
 
A ideia do documentário surgiu de um convite feito pelo primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, a Roberto Rossellini, para que este gravasse um documentário sobre o país. O objetivo era o de mostrar a modernização e o florescimento da nação que há dez anos se havia libertado do jugo colonialista britânico. O pedido foi feito em 1957 e o filme apenas foi terminado e exibido em 1959. Pelo meio, Rosselini envolveu-se com a argumentista do seu filme, Sonali Senroy DasGupta, casada e vinte e cinco anos mais nova do que o realizador. O caso foi um escândalo na sociedade indiana. Mais tarde, Rosselini e Sonali casaram-se em Itália e permaneceram juntos até à morte do realizador italiano. 
 
Índia começa com imagens de Bombaim, a atual Mumbai, uma metrópole atarefada e moderna, símbolo de um novo país em construção. O narrador assume um tom propagandístico, quase ingénuo. Mas depressa ingressamos numa outra Índia, uma Índia vasta, rural, repleta de tradições. Surge um cinema híbrido, em que ao documentário se junta a ficção, a voz da narração muda, as personagens dos quatro contos assumem o destino das imagens e contam a sua história. 
 
A barragem construída pelo engenho humano, domina as monções e afoga o antigo templo. Uma Índia, que na visão de Rossellini, caminha no sentido do progresso, abandonando a tradição e substituindo a comunhão pelo conflito com a natureza.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

211ª sessão: dia 26 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Índia, de 1959,  surge no rescaldo de uma grande crise na vida pessoal e criativa de Roberto Rossellini. Foi o primeiro filme depois de um vazio de cinco anos e pode ser visto como um segundo nascimento na obra do italiano. É a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

No ano de estreia do filme, Jean-Luc Godard escreveu nos Cahiers du Cinéma que "enquanto não chega um estudo mais pormenorizado, algumas palavras de passagem: India é um filme de técnico apresentado em Cannes, juntamente com Hiroshima, mon Amour. Os outros, Nazarin e Les 400 Coups, eram filmes de aventureiros da película. India é o contrário de Orfeu Negro, no sentido em que o filme de Rossellini continuaria a ser belo, mesmo que tivesse sido rodado em Joinville. Mas isso não tem qualquer importância porque, como diz já não sei que livro da sabedoria, a verdade está em tudo, mesmo, parcialmente, no erro. Acho este "parcialmente" sublime. Explica tudo. Explica que o plano sobre o tigre seja em 16 mm ampliado e o contracampo sobre o velho em 35 mm. India segue a direcção oposta de todo o cinema habitual: a imagem nada mais é que o complemento da ideia que a provoca. India é um filme de uma lógica absoluta, mais socrático que Sócrates. Todas as imagens são belas, não por serem belas em si, como um plano de Que Viva Mexico, mas porque reflectem o esplendor do que é verdadeiro e porque Rossellini parte da verdade. Já lá chegou, a esse ponto a que outros só chegarão dentro de vinte anos, eventualmente. India engloba o cinema mundial, tal como as teorias de Riemann e Planck englobam a geometria e a física clássica. Num próximo número, demonstrarei por que razão India equivale à criação do mundo."

Explicando as suas novas ideias em entrevista a Fereydoun Hoveyda e Jacques Rivette, Roberto Rossellini declarou que "não quero deixar de dizer quais são as minhas preocupações de ordem moral. A arte abstracta passou a ser a arte oficial. Consigo compreender um artista abstracto, mas não consigo compreender que a arte abstracta se transforme em arte oficial, porque é, verdadeiramente, a arte menos inteligível. Fenómenos como este nunca se reproduzem sem razão. E qual é a razão? É para que se procure esquecer o homem o mais possível. Na sociedade moderna e no mundo inteiro, excepto, provavelmente, na Ásia, o homem passou a ser a engrenagem de uma máquina imensa, gigantesca.

"Transformou-se num escravo. E toda a história do homem é feita de passagens da escravatura à liberdade. Sempre existiu um determinado momento em que a escravatura foi preponderante; depois, a liberdade voltava a impor-se: muito raramente, ou durante períodos muito breves, porque, mal se alcançava a liberdade, imediatamente se reinstalava a escravatura. No mundo moderno, criou-se uma nova escravatura. E o que é essa escravatura? É a escravatura das ideias. E isso acontece através de todos os meios, desde o romance policial, à rádio, ao cinema, etc.. Graças ao facto, também, de que as técnicas se desenvolveram extraordinariamente e que os conhecimentos profundos que estão ao nosso alcance num domínio restrito, para serem eficazes do ponto de vista social, impedem o homem de adquirir outros conhecimentos. Já não sei quem dizia: "Vivemos no século da invasão vertical dos Bárbaros". Quer isto dizer: um extremo aprofundar do conhecimento em determinada direcção e uma imensa ignorância em todas as outras.

"Sempre ouvi dizer, desde que faço cinema, que é preciso fazer filmes para um público com a mentalidade média de uma criança de doze anos. É um facto que o cinema (falo do cinema em geral), tal como a rádio, a televisão ou todos os espectáculos dedicados às massas, dá origem a uma espécie de estupidificação dos adultos e, em contrapartida, acelera enormemente o desenvolvimento das crianças. Daí vem essa falta de equilíbrio que constatamos no mundo moderno: da impossibilidade que há de nos compreendermos."

Já João Bénard da Costa, para o catálogo «Roberto Rossellini e o Cinema Revelador», publicado pela Cinemateca Portuguesa em 2007, pediu-nos para retermos "estas ideias: penetrar no interior das coisas; importância das ideias sobre a importância das imagens; dizer e explicar e não apenas mostrar; numa palavra, - palavra que ele disse - pedagogia e não arte.

"Eis reunidas, a meu ver, todas as chaves para India, primeiro passo para dar a conhecer à humanidade "um sexto do género humano", primeiro passo para a luta contra o que chamou "a invasão vertical dos Bárbaros".

"Como tantos outros, Rossellini fez da sua viagem à Índia uma demanda espiritual, busca das origens, busca da mãe. Desesperando encontrar uma solução no Ocidente, julgou entrevê-la no Oriente, ou, pelo menos, na Índia como parte dele. Se assumiu o didactismo - ou se pôde parecer didáctico - foi porque queria ensinar a todos essa lição. India é o prefácio à educação integral que ele veio a preconizar, no fim da vida, num livro de 1976."

Até amanhã!

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Apresentação de "Terra", por Matheus Cartaxo

Terra (2018) de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres



por Alexandra Barros

Há um monte de terra: castanho-avermelhado, ocre, sangue-de-boi, canela, terracota, almagre, tamarindo. Há outro monte de terra com as mesmas cores. Há dois montes, portanto. Têm buracos e têm portas. São as casas dos fornos. Os buracos são chaminés. O fumo que sai é muito branco e nunca pára. Quando as portas são abertas, também sai fumo branco. Sai apressado, em nuvens branquíssimas e espessas e infinitas. Muito. 

Há um homem que coloca madeira e fogo dentro dos montes de terra. Os montes de terra e o tempo fazem o seu trabalho. 

Há um carrinho de mão da cor da pêra-rocha, um rio sempre a mudar de cor, uma floresta verde e cinza, um charco cor de ferrugem, troncos carbonizados, pedacinhos de carvão negro amontoados na erva verde-primavera, pilhas de madeira de azinheira, um tractor vermelho-pálido, sobreiros, pinheiros mansos, campos verdes e amarelos, um lago onde os homens se lavam. 

Há um teatro de sombras, sem ninguém a controlar marionetes. Há a sombra do homem que controla o fogo. Há a sombra do fumo desse fogo. 

Os montes de terra e o tempo fazem o seu trabalho. Os homens retiram do interior dos montes de terra o carvão que estes fizeram. 

Há luz matinal, sombras que tapam o dia e destapam a noite, caçadores que falam com pássaros, o som de ovelhas, chocalhos e trovoada, bandos de aves que voam em V. 

O lusco-fusco. 

É tudo muito bonito.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

210ª sessão: dia 20 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


À terceira é de vez. Depois de duas tentativas frustradas pela evolução da pandemia, podemos anunciar Terra de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres como a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation. Contaremos com a presença dos realizadores para uma pequena conversa sobre o seu filme no final da exibição.

Por ocasião da Mostra Perspectivas do Cinema Português, em que além de Terra também foi exibido Wolfram, Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins salientaram que "para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada. 
 
"A extração do minério em Wolfram é marcada por uma violência que faz os planos vibrarem, se chocarem, e que tem a sua contraparte em Terra (2018), de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres. À beira de um lago, trabalhadores fabricam carvão em fornos artesanais, num demorado processo filmado como um ritual quase panteísta em que a presença do mundo e a metamorfose de seus elementos são celebradas. A luz natural, os estalos da brasa e o sopro do vento preenchem os longos planos e a banda sonora, como também acontece, de forma menos concentrada, mais desprendida, nos dois outros filmes da dupla, Cordão verde (2009) e O sabor do leite creme (2012)."

Em entrevista a Daisuke Akasaka, em 2019, no âmbito dos Encontros Cinematográficos do Fundão, e quando este pergunta qual foi o ponto de partida do filme, Hiroatsu Suzuki respondeu que "quando eu vivi em Okinawa, vi o processo completo da feitura do carvão nas montanhas. Lá, normalmente, os fornos de carvão são perto da floresta, perto da lenha. Mas quando vi os dois fornos do Nuno perto do lago, eu senti que aquele lugar era único. Sempre tive um grande fascínio por fornos de todo o tipo: fornos de cerâmica, fornos de cal, fornos de pão… Tive a experiência de trabalhar num forno de cerâmica coberto de terra; ajudei a manter o fogo continuamente, durante mais do que uma semana, e, depois, a fechá-lo para arrefecer. Quando assisti à abertura do forno e se retiraram as peças lá de dentro… Parecia mesmo que se estava a retirar um tesouro do forno! Foi algo de mágico, alquímico, toda aquela transformação da terra em peças lindas. As peças nasceram do forno, e em mim nasceu também qualquer coisa de muito especial… 

"Desde os tempos de Okinawa que me interesso pela arquitectura que utiliza materiais naturais, como terra e cal. No Alentejo, há ainda muitas casas em taipa — uma técnica tradicional de construção com terra comprimida entre caixilhos de madeira (taipais). Visitei muitas casas em taipa. Toca-me ver na paisagem alentejana as ruínas dessas casas que com o tempo se desfazem e desaparecem, regressando de novo à terra. Os fornos de carvão estão cobertos com terra, terra do local, e isso também me despertou muito interesse."

Respondendo à mesma pergunta, Rossana Torres disse que "nesta zona, predominam os montados de azinheira, uma espécie de árvore que leva muitos anos a crescer, e que pode tornar-se muito grande. As azinheiras são óptimas para dar sombra nos verões quentes do Sul. Normalmente são podadas, e os ramos cortados fazem boa lenha e bom carvão. Ultimamente, com o despovoamento e o abandono das terras, muitas delas têm ficado doentes, acabando por morrer. 

O Nuno vive numa pequena aldeia perto de Mértola, podando azinheiras e cortando as que estão mortas. Aproveita toda a madeira, quer para lenha e carvão, quer para criar peças de mobiliário. Aprendeu a técnica de fazer carvão com um vizinho que, por sua vez, aprendeu com outras pessoas mais velhas. Trata-se de uma prática artesanal, hoje em dia quase extinta, que utiliza a terra para cobrir os troncos de madeira, mantendo alguns orifícios para controlar o fogo. Como é um trabalho que requer muito esforço, principalmente no empilhamento da madeira dentro do forno e na recolha do carvão, nessas alturas, o Nuno combina com amigos e familiares, e trabalham todos juntos."

Até logo!

Dodeskaden (1970) de Akira Kurosawa



por Alexandra Barros

Kurosawa fez Dodeskaden durante um período de crise na sua vida pessoal. Sem conseguir trabalhar com os estúdios cinematográficos, formou uma companhia de produção com três amigos - o Clube dos Quatro Mosqueteiros - a qual produziu este filme. A rodagem foi rápida e económica, contrariamente ao que lhe era habitual. Utilizou a cor pela primeira vez e afastou-se do estilo e temas habituais. Não há heróis, nem histórias inspiradoras, nem mensagens morais. Também não há uma narrativa central. O filme é composto por um conjunto de episódios sobre os habitantes de um bairro de lata. 

Todos os dias um “comboio” percorre o bairro. O condutor do "comboio" é Rokuchan, um rapaz cuja imaginação o coloca ao volante de um veículo fictício. O filme começa e acaba na casa de Rokuchan e nas suas paredes forradas a desenhos infantis e muito coloridos de comboios. A casa espelha o seu mundo de fantasia tal como as casas cinzentas e degradadas dos vizinhos espelham as suas vidas. Rokuchan percorre, durante o filme, um circuito fechado. Em circuito fechado estão também os vizinhos: Masuo e Hatsu, dois amigos, em estado permanente de embriaguez, e as suas mulheres, sujeitas às atribulações dos maridos alcoolizados; Ryotaro, um pai devotado a diversos filhos, nascidos de relações extra-conjugais da sua mulher, novamente grávida; um sem-abrigo e o filho, mendigos e habitantes da carcaça velha de um carro, alimentando-se com os restos recolhidos pelo rapaz em restaurantes, enquanto o pai “projecta” uma mansão luxuosa; Katsuko, uma jovem forçada a trabalhar até à exaustão, por um tio alcoólico com quem vive; Hei, um homem abalado pela traição da ex-mulher, Ochô, que cedeu a um impulso, apesar de nem sequer gostar especialmente do homem que a seduziu; .... 

Embora estas personagens vivam em condições penosas, que as conduzem por vezes a acontecimentos trágicos, o filme não se instala nesse registo dado que é pontuado por episódios cómicos ou ternurentos. Estação 1: Masuo e Hatsu, incapazes de reconhecer as suas casas quando a elas regressam embriagados, trocam casas e mulheres entre si, sem que isso cause qualquer transtorno a nenhum deles/as. Estação 2: A dor de Hei lançou-o para um limbo. Fechou-se a este mundo, vagueando nele como um morto-vivo. Ochô lamenta o que aconteceu e procura o perdão de Hei. Também ela sofre por causa do seu acto irreflectido. Hei, no entanto, é como o tronco de uma árvore morta. O tronco parece, mas já não é, uma árvore. No entanto, ainda é considerado um belo homem pelas mulheres do bairro que se divertem com as tentativas de aproximação de uma delas. Estação 3: Katsuko é violada pelo tio num leito de flores vermelhas artificiais, as mesmas que é obrigada a fazer, para o sustentar. Num episódio anterior tinha desfalecido sobre um tapete de flores azuis, que fazia enquanto o tio dormia descansadamente. Katsuko, transtornada pelo abuso e maus-tratos que sofre em silêncio, acaba por esfaquear o seu único amigo, Okabe. Recuperado do ataque, Okabe recusa-se a acusá-la, sabe que não houve maldade no acto. A amizade sai fortalecida deste incidente, depois de Katsuko confessar quão importante Okabe é para ela. Num filme em que as cores têm significado, e em que a maior parte das roupas se limita a tons de cinzento, Okabe apresenta-se sempre de branco. Katsuko também usa roupa clara, incluindo um casaco rosa pálido. 

A amizade de Okabe alivia o sofrimento de Katsuko, mas para os habitantes do bairro, distanciados física e socialmente do Japão que floresce economicamente, é maioritariamente a alienação - através do álcool, sonhos, imaginação, ... - que proporciona esse alívio. Contudo, esses espaços de fuga também podem vir a revelar-se impiedosos, quando quem os habita neles fica enredado. Estação 4: O pai sem-abrigo evade-se da realidade imaginando construir uma casa de sonho para o seu filho e para si. Porém, quando fica aprisionado no sonho, convencido que tudo vai ficar bem, acaba por deixar morrer o filho, devido a uma intoxicação alimentar em que não quis acreditar. O nível cultural deste par é nitidamente distinto do dos outros habitantes do bairro. São possivelmente os únicos que tiveram uma vida fora deste meio, num passado bastante diferente do actual, que transparece na linguagem, reflexões e sensibilidade estética das conversas do pai com o filho. Esta diferença é sublinhada pelo facto de serem os únicos cujo nome nunca é referido. O pai é considerado pretensioso e Tanba, um ancião sábio, é o único no bairro que com ele interage, tentando chamá-lo à razão. 

Estação 5: Tanba é bondoso, mesmo com quem tenta agredi-lo, e utiliza uma estratégia peculiar para lidar com a violência e o desespero dos vizinhos: torna-se cúmplice em actos condenáveis para conseguir sabotá-los. Ao oferecer-se para colaborar em tais actos, confunde os seus “parceiros”, conseguindo que estes reavaliem os propósitos iniciais. 

Neste filme, a imaginação, a sageza, a amizade e a bondade, utilizadas como estratégias (in)conscientes para atenuar o sofrimento, surgem como reflexo da capacidade humana para perseverar mesmo nas mais duras condições. Devido às circunstâncias pessoais de Kurosawa durante este período da sua vida, várias leituras têm apontado para um jogo de espelhos entre Dodeskaden e a sua vida privada, leituras essas ancoradas nos temas da imaginação, instabilidade mental, criatividade, loucura, sofrimento e superação. Certo é que, neste filme, Kurosawa se reinventou para poder continuar a fazer o que dava significado à sua vida: transformar histórias em filmes, fazer cinema!

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

209ª sessão: dia 19 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na terceira semana do "Génesis", visitamos os bairros de lata do Japão, com as lutas e os sonhos de todos os dias, o embate do ser humano com a sociedade no seu estado mais premente e essencial. Dodeskaden, vigésimo sexto filme de Akira Kurosawa, é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

No último capítulo de The films of Akira Kurosawa, Donald Richie escreve que "Kurosawa disse que lhe era impossível definir o próprio estilo, que não sabe em que é que consiste, que nunca lhe ocorre pensar nele. Embora perfeitamente disposto a falar sobre lentes, ou interpretação, ou o melhor tipo de gruas para a câmara, ele recusa-se a discutir significados ou estética. Uma vez perguntei-lhe sobre o que uma certa cena era mesmo. Ele sorriu e disse: "Bom, se conseguisse responder a isso, não teria sido necessário filmar a cena, pois não?" 

"A razão para a relutância dele em falar sobre significados e sobre estética talvez seja o facto de não serem reais, de não terem uma realidade visível. A estética presume um sistema, e o estilo presume uma expressão e uma reflexão do próprio homem. Nenhum deles tem qualquer interesse quando comparados com a realidade do novo filme a ser feito, o novo guião a ser escrito. Um homem preocupado com o seu próprio estilo é um homem inseguro, e Kurosawa é contido. Cada filme é uma expressão directa de si mesmo, é verdade, mas, longe de querer traçar paralelos ou procurar comparações entre os seus filmes, ele tem uma aversão relativamente a ver-se a si próprio como era. Tal como insiste que os seus heróis descuram o passado deles e vivem permanentemente no presente, também ele próprio não tem interesse no que quer que lhe tenha acontecido. "Um realizador gosta sempre mais do filme actual. Se não for assim, não o consegue realizar," disse ele uma vez, e como o presente é de tanta importância, a atitude dele em relação a feitos passados tem sido omissa e realista ao mesmo tempo."

Em entrevista à Criterion em 2009, Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, referindo-se aos actores do filme, disse que "(...) muitos dos actores nunca tinham entrado antes num filme de Kurosawa. Um deles, Junzaburo Ban, estava habituado a fazer comédia. Ficou com o papel difícil de Shima. Ban tinha dificuldades em memorizar diálogos longos, mas havia uma cena de nove minutos que tinha de ser filmada num só take. É a cena em que Shima convida pessoas a sua casa para beber saqué. Os convidados queixam-se que a mulher de Shima se está a comportar de forma arrogante, e as coisas descambam a partir daí. É uma boa cena, mas o Ban estava tão nervoso que eles tiveram de fazer novos takes continuamente. A cada momento, um assistente de produção tinha que substituir o rolo de película. O velho Kurosawa teria perdido a paciência e começaria a gritar, mas em vez disso, e de todas as vezes, disse apenas gentilmente, “Muito bem, vamos tentar outra vez.” Quando chegaram finalmente ao fim dos nove minutos, Kurosawa foi ter com Ban e disse, “Bom trabalho.” Ban afundou-se no chão como se toda a sua força lhe tivesse sido sugada, e apertou a mão ao realizador com lágrimas nos olhos. 

"Outro exemplo: Kamatari Fujiwara interpretou um velho que diz que quer morrer, que não quer viver mais um dia, e Atsushi Watanabe interpretou um velho perspicaz que lhe oferece um digestivo, dizendo-lhe que é veneno. Tiveram os dois uma grande cena de oito minutos, repleta de diálogos formidáveis, mas Fujiwara era famoso pela sua incapacidade em memorizar as falas; parecia simplesmente não se conseguir lembrar delas. Por fim Kurosawa ficou farto e mandou-me dar-lhe indicações. Isso estava óptimo enquanto ensaiávamos, mas se o fizesse durante um take, a minha voz também seria gravada. Ainda assim, sem as indicações, o Fujiwara enganava-se sempre nas falas, portanto no final eu tive que as fornecer numa voz alta que foi gravada junto com as dos actores’. Lembro-me que depois disso eles tiveram uma dificuladade dos diabos em apagar a minha voz da fita."

Já Jacques Lourcelles, no seu Dictionnaire, escreve que "este microcosmo da angústia humana é também um microcosmo da condição humana, moldada por Kurosawa com uma compaixão infinita e uns tesouros de humor. Esse humor tem qualquer coisa de hugoliano e prende-se particularmente com o imaginário de certas personagens, a bondade radiosa de outras, como que sobrenatural nesta fossa. Um ritmo lento, repetitivo e comovente entrelaça as histórias umas às outras e encerra as personagens tanto nos seus sonhos como na realidade. Para elas é uma e a mesma prisão de que não se conseguirão erradicar. A maior parte nem sequer quer. Imaginário e real, miséria atroz e tolice, hiper-realismo e lirismo fantástico (especialmente nos cenários e no emprego da cor, que Kurosawa utiliza aqui tardiamente pela primeira vez) são enredados pelo autor com uma ousadia tranquila com a qual poucos cineastas poderia disputar: trata-se de alcançar, com a ajuda de tantas personagens e tons diferentes, essa visão global da humanidade que também se encontrará em Viver, O Barba Ruiva e Dersu Uzala. O microcosmo toma então aparência de fresco. É aí que é preciso apreender o génio específico de Kurosawa, muito mais que nas grandes máquinas de Kagemusha ou Ran

"BIBLIO.: argumento e diálogos in «Complete Works of Akira Kurosawa», vol. 1, Kinema Jumpo-sha, Tóquio, 1971. Edição bilingue japonesa e inglesa. Descrição minuciosa das personagens e dos locais. Cada plano é ilustrado por um ou vários fotogramas."

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Germania anno zero (1948) de Roberto Rossellini



por António Cruz Mendes

De acordo com o tema “Génesis” dos Encontros da Imagem de 2021, o Lucky Star-Cineclube de Braga apresentou já O Crime do Sr. Lange (Jean Renoir), o esperançoso e hipotético nascimento de uma sociedade mais solidária, A Gruta dos Sonhos Perdidos (Wernor Herzog), o nascimento da arte nas pinturas de uma gruta, e Pedro, o Louco (Jean-Luc Godard), um filme emblemático da Nouvelle Vague do cinema francês. Hoje, vemos Alemanha, ano zero e, a seu propósito, poder-se-ia, talvez, falar do renascimento da vida numa cidade destruída pela guerra. Rossellini afirmou mesmo que, com este filme, gostaria de ter deixado essa mensagem de esperança. Porém, a Berlim reduzida a um monte de escombros que descobrimos no longo travelling da abertura ainda é habitada pelos fantasmas do passado e estes continuam a fazer as suas vítimas. 

Alemanha, ano zero é o terceiro filme, depois de Roma, cidade aberta e de Paisà, da trilogia da guerra de Rossellini. A questão que o motivou, conta-nos o próprio realizador, foi esta: sendo os alemães pessoas como todas as outras, o que é que os terá levado a cometer tamanhas atrocidades, o que é que os levou àquele desastre? A sua resposta é de ordem moral e reflecte a sua formação cristã: a essência do nazismo está na troca da humildade pelo culto da heroicidade, na exaltação da força sobre a fraqueza, do orgulho contra a simplicidade, e é desta perversão moral e das suas consequências que nos fala a história de Edmund, o jovem rapaz que se encontra no centro da história. 

O neo-realismo e, em particular, o entendimento que dele tem Rossellini, encontra, em Alemanha, ano zero, uma clara enunciação: sobriedade, perspectiva documental, ausência de sentimentalismo, são os traços fundamentais do seu estilo. Uma narrativa concisa, uma apresentação crua dos factos e uma confiança na maturidade do espectador, na sua capacidade de inteligir e reter a mensagem do filme sem que haja necessidade de recorrer a rebuscados artifícios retóricos. 

Os atores não são profissionais, mas pessoas comuns. Particularmente difícil parece ter sido a escolha do rapaz que encarnou a figura de Edmund e dizem aqueles que conheceram o filho de Rossellini que morreu poucos meses antes das filmagens, que a semelhança entre os dois era extraordinária. Foi ao seu filho que Rossellini dedicou este filme. 

É em Edmund que todo o filme se centra. A câmara segue-o em sequências com poucos cortes, na sua casa, habitada por várias famílias, em companhia dos amigos com quem busca dinheiro e comida ou vagueando entre ruínas pelas ruas de Berlim. É pelos olhos desta criança de 13 anos que conhecemos o estado e a vida da antiga capital do Reich imediatamente depois da guerra. O pai de Edmund, doente e acamado, recebe uma parca pensão; a irmã frequenta os bares onde procura obter alguns favores dos estrangeiros que conhece, mas recusa prostituir-se; o irmão, um veterano da Wehrmacht, refugia-se em casa com medo de ser internado num campo de concentração. A sobrevivência exige uma luta diária. Edmund sente que depende dele o sustento da família e recorre ao mercado negro para negociar seja o que for. 

O momento chave do filme é o do seu encontro com um antigo professor, agora afastado do ensino por causa das suas convicções nazis. É ele quem lhe explica que não pode continuar a sacrificar-se pelo seu pai. “Olha para a natureza”, diz-lhe. “Os fracos têm que morrer para que os fortes possam viver. É preciso ter a coragem de permitir que os fracos morram. Tudo se resume a salvar-nos a nós mesmos”. As suas palavras calam fundo na mente do jovem Edmund e vão levá-lo a envenenar o pai. 

Culpa, arrependimento e expiação é o leitmotiv do filme. Já o tínhamos visto enunciado pelo pai que, deitado na cama onde morrerá pouco depois, considera estar a pagar, impotente perante a fome que ameaça a família, o facto de não ter tido a coragem de se ter oposto a Hitler. Afinal, a culpa dele é a culpa de Edmund, é a culpa de toda a Alemanha. 

Em face do final trágico do filme, do suicídio de Edmund, em que medida podemos compreender a mensagem de esperança que Rossellini diz ter querido transmitir? Apenas na medida em que, mesmo num mundo onde o homem se transformou no lobo do homem, a luz bruxuleante da moral cristã nunca se apagou e é ela quem, por fim, acabará por prevalecer.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

208ª sessão: dia 13 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


Rossellini, o grande aventureiro, o grande inventor de formas e um dos homens livres do século XX. Dele exibir-se-ão duas obras durante este ciclo de Outubro, sendo a primeira Alemanha, Ano Zero, último volume da famosa trilogia da Guerra e a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation.

Num mesa redonda publicada na revista Cinéfilo, em 1973, e quando se começa a falar de Alemanha, João César Monteiro diz que "eu queria, antes de mais, mencionar uma história que o Rossellini conta acerca da sua chegada a Berlim, pouco antes de iniciar a realização do filme. Os escombros da cidade estavam mergulhados numa luz uniforme e cinzenta, numa aparência desoladora, portanto, e o único sinal de cor era fornecido por um longínquo ponto amarelado que os olhos de Rossellini detectaram, de pronto. O tipo sentiu-se atraído por essa nota insólita no décor e verificou que se tratava de um enorme cubo de pedra, no cimo do qual se lia a seguinte inscrição: Bazar Israel. Era um marco da reconstrução. Graças a esta presença, Rossellini descobre repentinamente o filme que era preciso fazer. É evidente que, ao contar esta história, Rossellini propagandeia um superinstinto que enche um espírito céptico, como o meu, das mais sombrias desconfianças, até porque eu não acredito que essa espécie de veni, vidi, vinci, face ao cinema, possa normalmente dar resultados muito satisfatórios. Sucede que, como o resultado é, neste filme, surpreendente, a minha perplexidade me deixa um pouco boquiaberto e sem norte."

Num texto publicado no volume «Roberto Rossellini. Le Cinéma Révélé», Alain Bergala escreve que "independentemente do que o próprio Rossellini tenha tido [Cf. Table Ronde], as contingências da História tiveram sem dúvida um papel biográfico decisivo nesta descoberta do poder de revelação que têm as coisas filmadas, na sua literalidade, na sua nudez. No momento em que filmava a «trilogia neo-realista»: Roma, Città Aperta, Paisà e Germania, Anno Zero, a guerra, momentaneamente, tinha destruído em Itália até a possibilidade mesma, para um cineasta, de filmar a partir de uma realidade já re-elaborada. Já não há estúdios, já não há cenários, já não existe nada daquilo que possibilitava a reconstrução de uma realidade cinematográfica ao abrigo da realidade nua. Apenas havia o mínimo (a câmara, alguns pedaços heterogéneos de película) e Rossellini não terá tido outra hipótese senão recomeçar, a partir dessa tábua rasa, e confrontar o cinema com essa realidade de ruínas, de caos e de decadência moral dos tempos imediatos à guerra.

"A partir dessa descoberta, Rossellini vai adquirir uma convicção inabalável: o cinema tem a vocação ontológica de se ligar à literalidade das coisas e somente a ela, e essa é, de facto, a via para a emergência (ou reforço) de uma verdade que é apenas devedora dos poderes do cinema. Essa foi a convicção de todo o cinema moderno que sempre foi um cinema do primeiro grau, da denotação, das coisas na sua nudez. Na definição de modernidade em Roland Barthes, entrava uma componente essencial essa «conformidade plana da representação à coisa representada». O cinema moderno, herdeiro de Rossellini, teve sempre um santo horror a sobre-significações de símbolos, ao enchimento, à gordura, ao ligamento, ao tecido conjuntivo."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles apresenta-nos o filme como o "terceiro volume da trilogia de Rossellini sobre a guerra (depois de Roma, Cidade Aberta e Paisà). Alemanha, Ano Zero faz admiravelmente a ligação entre essas duas obras essencialmente documentais e a série dos filmes intimistas com Bergman. Na verdade, e situada num contexto em que o estado presente duma sociedade é descrito com uma intensidade extraordinária, aquilo que Rossellini quer contar é acima de tudo a história de uma personagem, o pequeno Edmund. Neste sentido, o filme representa a quintessência do neo-realismo de acordo com o método rosselliniano. «O neo-realismo», escreveu ele, «consiste em seguir um ser, com amor, em todas as suas descobertas, todas as suas impressões. É um ser muito pequeno sob algo que o domina e que, de súbito, o atingirá de uma forma terrível, no momento preciso em que ele se encontra livremente no mundo, sem esperar o que quer que seja. O que importa acima de tudo, para mim, é essa espera; é isso que é preciso desenvolver, tendo a queda que permanecer intacta.» («Cahiers du cinéma», Agosto-Setembro. 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révélé».) Esse acompanhamento minucioso de um ser vulnerável pela câmara implicou aqui a utilização de planos bastante longos e Alemanha, Ano Zero é um filme muito menos decupado (248 planos) do que Roma, Cidade Aberta ou Paisà. Da Itália à Alemanha, a obra de Rossellini estende o seu território, que em breve estará à escala da Europa e depois de um continente (a Índia). Como sobre todos os seus temas e as suas personagens, Rossellini quer lançar sobre a Alemanha um olhar social que também seja moral. Para ele, o campo de investigação social e o campo de investigação moral sobrepõem-se de forma exacta. Ele expressou as suas intenções com uma clareza tal que não se pode fazer melhor do que citar as suas palavras: «Os alemães eram seres humanos como os outros ; o que é que poderia tê-los levado a este desastre? A falsa moral, essência do nazismo, o abandono da humildade, a exaltação da força em vez da fraqueza, o orgulho contra a simplicidade? Foi por isso que decidi contar uma história de uma criança, um ser inocente cuja distorção de uma educação utópica leva a perpetrar um crime, acreditando estar a cumprir um acto heróico. Mas, nele, a pequena centelha da moral não se tinha apagado: suicida-se para fugir a essa angústia e a essa contradição.» («Cahiers du cinéma», Novembro de 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révelé».) Em relação à ficção, longe de a desprezar, Rossellini utiliza-a para designar o escândalo onde quer que se tenha instalado: aqui no crime e no suicídio da criança, ou então no internamento final de Irene, em Europa 51. As características do seu estilo – sobriedade a beirar a impassibilidade (aí, Rossellini junta-se a Mizoguchi), brutalidade documental, por outras palavras arte do documento em bruto, ausência de sentimentalidade, atenção extrema ao próximo –, à medida que o destino do pequeno Edmundo se encerra sobre ele, tornam-se cada vez mais avassaladoras. É preciso acrescentar aqui uma concisão e uma rapidez de evocação (comparável àquilo que é a rapidez de elocução num narrador oral) que provêm simultaneamente do seu grande pudor, do conhecimento íntimo que tem do seu tema e da confiança que deposita na maturidade do espectador; essa confiança virou-se por vezes contra ele.

"BIBLIO. : planificação (248 planos) no volume « Roberto Rossellini : la trilogia della guerra », Bolonha, Cappelli Editore, 1972 (traduzido para inglês pela Grossman, Nova Iorque, 1973)."

Até logo!