domingo, 30 de maio de 2021

192ª sessão: dia 1 de Junho (Terça-Feira), às 19h00


No mês de Junho, visitamos a Coreia do Sul de Hong Sang-soo, cineasta modesto que fez da sua obra um compêndio de experiências amorosas geralmente vividas por actores e realizadores de cinema. O primeiro dos cinco filmes que iremos exibir este mês será então Mulher na Praia, de 2006, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Por altura da estreia do filme em França, e para o jornal Le Monde, Jacques Mandelbaum escreveu que "Para quem ainda não conhece Hong Sang-soo, é preciso recordar duas coisas essenciais. A primeira é que este jovem taciturno representa há mais de dez anos (a sua primeira longa-metragem, Daijiga umule pajinnal, data de 1996) o ponto extremo do cinema de autor coreano. A segunda é que a sua obra, como a de um Eric Rohmer ou de um Patrick Modiano, é a de um artista sequencial que coloca as mesmas figuras sobre o trabalho paras as fazer passar por variações imperceptíveis que as renovam. 

"Fenómeno mais singular: esse gosto pela repetição e pelo déjà vu também está na obra em cada um dos seus filmes, que desdobra frequentemente a mesma história em espelho na virada de uma mudança de parceiro amoroso. Porque, como Rohmer, Hong Sang-soo faz a crónica da retórica meticulosa dos sentimentos e a pintura das falsas aparências que a adornam. E como Modiano, ele tece, sob a aparência da trivialidade e da acessibilidade, intrigas impressionistas recheadas de armadilhas que na verdade só se sustentam pela graciosidade do estilo."

No dossier de imprensa do filme pela Grassopper Film, que distribuiu o filme nos Estados Unidos, há um depoimento do realizador coreano, em que este diz que "talvez tenha sido há cinco anos ou assim. Eu estava nos subúrbios e encontrei-me com uma mulher que se parecia imenso com outra mulher que conheci por razões de trabalho e que estava sedeada em Seoul. Acho que foi num restaurante junto a uma auto-estrada. Embora ela fosse uma estranha que só se parecia com uma das minhas conhecidas, tinha a sensação de que sabia alguma coisa sobre ela. Essa experiência deixou-me uma profunda impressão na minha mente. De vez em quando, eu pensava sobre se duas pessoas semelhantes na aparência também agiriam de formas semelhantes. Mas mesmo depois do encontro com aquela estranha familiar não fui capaz de chegar a uma conclusão. De qualquer forma, a questão permaneceu comigo como algo que iria ponderar de novo. 

"Há dois anos, um dos meus conhecidos foi numa viagem, voltou, e iniciou outra viagem só dois dias mais tarde. Isto parecia um bocado fora do normal, e eu mantive-o armazenado num canto da minha memória. Só o mudei ligeiramente e criei uma situação em que uma das personagens viaja para o mesmo sítio dois dias depois de voltar de lá. E escolhi a praia de Shinduri, uma pequena cidade turística à beira mar na costa oeste, que tinha visitado um par de vezes como cenário principal para esta trama. 

"O filme foi concebido a partir dessas memórias e de uma situação que eu tinha criado modificando-as. Coloquei as minhas personagens neste quadro geral e criei a história delas. Então daí brotaram imagens e a história de ideias e valores diferentes ligados ao sexo. Depois encontrei-me com os the actores que iam dar corpo e alma às personagens imaginárias da minha criação. Contei com o ambiente verdadeiro fornecido pela praia de Shinduri, onde passei todos os dias a escrever e a filmar. Trabalhei no duro para descobrir tudo aquilo “sobre o qual não estava convencido mas queria expressar,” e depois para o tornar tangível."

Para o site À Pala De Walsh, Inês Lourenço escreveu, depois de citar palavras do filme, que "as palavras de despedida de uma das personagens femininas de Haebyeonui yeoin (Mulher na Praia, 2006) têm o sabor agridoce que me parece prevalecer em qualquer filme de Hong Sang-soo. Espécie de mal-estar confortável que puxa sempre a obra seguinte. Aqui, Mun-suk (Go Hyun-jung) fala ao telefone com Jung-rae (Kim Seung-woo), o realizador com quem teve um breve caso amoroso, e sem contemplações, mas com um grão de meiguice na voz, identifica a angustiazinha masculina dominante. A saber, Jung-rae vive numa relação obsessiva com a imagens. Mais especificamente, ele, que estava preso à imagem-fantasma de uma traição da ex-mulher, encontrou ainda noutra mulher a imagem idêntica de Mun-suk, numa verbalizada semelhança física que o espectador não consegue acompanhar. Ou seja, elas não são parecidas, mas é como se a imagem feminina tivesse um feitiço inexplicável. Esse que certamente o vai fazer passar um mau bocado depois de tudo ter terminado. É a maleita das imagens. 

"Haebyeonui yeoin tem lugar numa estância balnear meio deserta em época não estival. Começa com Jung-rae a convencer um amigo a acompanhá-lo até lá, e este, concordando, leva consigo Mun-suk, que surge primeiro como sua namorada, embora o equívoco do predicado se resolva com um momento de embaraço que abre a porta ao interesse romântico do realizador. Este último, a atravessar um bloqueio criativo, tenta trabalhar no argumento de um novo filme. Uma ideia que chega a expor aos outros dois e que ela se apressa a elogiar, mesmo não tendo entendido bem a explicação. “Tem muito jeito com as palavras. Gosto de pessoas eloquentes”, diz, já encantada pelo realizador que projecta imagens no ar enquanto passeiam na praia vazia e cinzenta. Ele, por sua vez, tem mais prontidão em elogiar-lhe as pernas."

Até Terça!

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Gimme Danger (2016) de Jim Jarmusch



por Alexandra Barros

Jim Jarmusch disse um dia que talvez andasse sempre a fazer o mesmo filme. Há, pelo menos, muitas rimas entre os seus filmes e apontámos algumas entre Paterson e Only Lovers Left Alive. Entre este e Gimme Danger também há rimas cruzadas. Regressamos a Detroit, ao meio musical e ao Lust for Life (nome do segundo álbum de Iggy Pop). 

O nome do filme vem de uma música dos Stooges, banda formada por Iggy, no final dos anos 60. Iggy quis que a história dos Stooges fosse contada e escolheu Jarmusch, grande fã da banda e de quem Iggy é amigo desde a década 1990, para o fazer. A música é, desde sempre, uma parte importante da vida de Jarmusch. Tocou com vários músicos e pertenceu a várias bandas. Actualmente faz parte da banda SQÜRL (que colaborou com Jozef van Wissem na banda sonora de Only Lovers Left Alive e fez a banda sonora de Paterson). Facilmente se depreende a importância que a música tem para Jarmusch do seu inconfundível visual (corte de cabelo e roupa) rock’n’roll e dos seus filmes, onde a música nunca é um acessório, antes um dos ingredientes principais. Além disso, são muitos os músicos que deles fazem parte, representando-se a si próprios ou não: John Lurie, Screamin’ Jay Hawkins, Joe Strummer, Tom Waits, Neil Young, Jack e Meg White, GZA e RZA, White Hills, Yasmine Hamdan, Method Man, entre outros. Iggy participou em dois filmes: Coffe & Cigarettes e Dead Man

Os Stooges formaram-se em 1967. Fizeram três álbuns seminais para a música contemporânea e particularmente para a música punk: The Stooges (1969), Fun House (1970) e Raw Power (1973). A influência que tiveram na revolução punk, que aconteceria uns anos depois de terminarem (em 1974), é invocada no filme. Apesar do movimento punk e do meio musical underground terem sempre reconhecido a importância dos Stooges, só quatro décadas depois do lançamento daqueles três icónicos álbuns é que mereceram aclamação “generalizada”. 

Tiveram várias reencarnações, mas a obra mais relevante foi toda feita durante a primeira fase da banda, entre 1969 e 1974. Terminaram nesse ano por causa dos problemas de Iggy com a heroína. Como o próprio diz, às vezes conseguia cantar, nos concertos, outras vezes não. Com devoção declarada por niilismo, caos, destruição e uma tendência para a auto-sabotagem, os Stooges assumiram-se como a antítese do movimento flower power. O filme mostra uma entrevista num canal de televisão, em que, em resposta à pergunta “Pensa que influenciou alguém?”, Iggy responde ”Penso que ajudei a exterminar os anos 60”. 

De acordo com a perspectiva do filme, a influência atribuída aos Stooges relaciona-se com uma nova abordagem à forma de fazer música, sem regras, deliberadamente contra-corrente (deliberadamente antimelódica, por exemplo), intensa e tensa, incorporando sons de aparelhos domésticos (aspirador, liquidificador, ...) e de instrumentos feitos pelos próprios e indo beber a uma grande variedade de géneros, de compositores avant-garde como Robert Ashley e Harry Partch aos blues de Chicago. Especialmente inspiradora para outras bandas foi a atitude de Iggy em palco, selvagem, energética e primal, e que viria a ser adoptada pelos músicos punk. As actuações em tronco nu, os saltos descontrolados, o crowdsurfing e a auto-mutilação serviram de modelo a esse movimento, apesar da posição anti-tudo de Iggy: “Não quero pertencer a nenhuma categoria de pessoas, não quero ser alternativo. Só quero ser.” 

Paradoxalmente, ou não, Jarmusch optou por fazer um documentário convencional, contando de forma linear e por ordem cronológica a história da banda, e do contexto em que surgiu, desde a infância de Iggy até ao reconhecimento global. O documentário centra-se em testemunhos dos membros originais da banda intercalados por: imagens de arquivo dos concertos e bastidores; excertos de clássicos do cinema e da programação televisiva americana; episódios do percurso dos Stooges contados em formato animação. As entrevistas são, porém, o mais interessante. Iggy é um excelente contador de histórias e o seu carisma e entusiasmo são fascinantes. 

Aos mais conhecidos episódios de provocação e controvérsias, juntam-se outros surpreendentes. Particularmente relevantes são as declarações sobre a origem do som e identidade dos Stooges e da performance de palco de Iggy. O responsável pelo seu estilo de escrita, por exemplo, foi um apresentador de programas televisivos infantis (Soupy Sales) que convidava as crianças a enviar cartas, mas pedia para limitarem as mensagens a 25 palavras. Da infância, Iggy aponta também como influências: o palhaço anarquista Clarabell do Howdy Doody Show e os sons industriais das fábricas do Michigan, onde cresceu. Da adolescência, as bandas de blues de Chicago. Mais tarde, Sun Ra e Harry Partch. Nesta altura, os elementos da banda viviam juntos, numa comunidade que poderia ser considerada comunista, de acordo com Iggy. Tudo era partilhado de modo igualitário, do dinheiro à autoria das canções. Porém, Iggy não estava interessado em actividades políticas ou em ser activista, distanciando-se de John Sinclair (manager dos MC5) e da pressão que este exerceu nesse sentido. Os paradoxos e interesses ocultos do flower power e outros movimentos da época “cheiravam mal”, segundo Iggy, apontando ainda que: "Some of the biggest peace/love acts of the California five years of love were created in meetings".

Segundo a revista musical Pitchfork, este documentário deixa claro que o punk está enraízado tanto em inteligência como em instinto. À presença física primal e excêntrica de Iggy, estava aliado um lado cerebral, visível nas inspirações e motivações assumidas, incluindo (e com particular relevância) aquilo que os Stooges rejeitavam. 

Muitos cinéfilos consideram que este é o menos jarmuschiano e o mais convencional filme do realizador. Sê-lo-á possivelmente na forma, mas no amor e identificação com a “matéria” não podia ser mais Jarmusch. Como o próprio afirmou é “uma carta de amor”.

domingo, 23 de maio de 2021

191ª sessão: dia 25 de Maio (Terça-Feira), às 19h00


No final de Maio, olhamos para a carreira dos The Stooges, a mítica e influente banda de Iggy Pop, vocalista, Ron Asheton, primeiro guitarrista e baixista, Scott Asheton, baterista, Dave Alexander, o primeiro baixista, e James Williamson, guitarrista, através das lentes de Jim Jarmusch, no último filme deste mini-ciclo dedicado ao realizador. Gimme Danger, de 2016, é então a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Quando a Billboard perguntou ao norte-americano o que é que Iggy Pop lhe tinha dito quando o convidou para o projecto, ele respondeu que "(...) isso foi há oito anos, acho eu. Ele disse, "Ouve, vão começar a sair coisas sobre mim e sobre a minha vida e obra. Está a receber imensos pedidos, ou pessoas a falar sobre livros ou filmes." Ele disse, "Sei que adoras tanto os The Stooges, e eu adorava que, se alguém fizesse um filmes sobre os The Stooges, adorava que fosses tu." Eu fiquei do tipo, "Okay, começo amanhã.” 

"(...) Foi assim que comecei. Filmei-o, fiz-lhe perguntas. Já o tinha feito antes. Fui até à Florida e fiz-lhe perguntas em filme para outra coisa que alguém me pediu para fazer. Não me consigo lembrar o que era, mas só o tinha entrevistado durante quatro horas. Então desta vez fui lá com a nossa pequena equipa, e entrevistámo-lo durante dois dias e meio. Tivemos, uau, esqueço-me de quantas horas e somos amigos, portanto ele confia em mim. Portanto podia-lhe perguntar qualquer coisa. Ele podia dizer, "Não usemos isto, ou blá blá blá." Mas ele está muito desguarnecido, e está muito relaxado, portanto só lhe pedia para arrancar. A parte inicial do filme era, vamos obter dele esta história oral, e depois vamos contactar a família -- a banda. Não queríamos uma daquelas cabeças falantes, “Aqui Henry Rollins, blá blá blá.” Sem ofensa ao Henry Rollins, ele é óptimo. Mas sabem o que quero dizer? Eu só queria conseguir a banda, e depois, claro, a Kathy Asheton porque ela é que instigou mesmo -- isso é uma coisa que podia ser um bocado mais clara no filme, quão instrumental ela foi em os convencer a formar uma banda quando eram adolescentes. Ela é a irmã mais nova. Adoro-a; é fantástica. E o Danny Fields, claro. Ele é a família. É o maior, sabem; adoro-o. Há um filme sobre ele, Danny Says, por causa da canção dos Ramones, "Danny says we gotta go, gotta go to Idaho,” porque ele foi agente dos Ramones, claro."

Em entrevista ao site irlandês movies.ie, e quando estes quiseram saber que memórias o projecto tinha reavivado, Iggy Pop disse que "[quando] eu vi o filme pela primeira vez, bateu-me mesmo “Oh Cristo, eu sou um produto daqueles tempos”. Na altura aceita-se simplesmente que é isso que está a acontecer e detesto-o como o caralho e é uma merda. Aceita-se sempre… Imagino que tenha vindo com a idade, sei que dia é hoje mas não o aceito. Sinto que é fugaz, mas não sabia isso na altura mas com o filme bateu-me. Quando vi as imagens do John Sinclair e só a forma como as pessoas se vestiam, e os cachimbos e os banhos nus… Essas coisas todas. Those were the times, e para mim foi importante como o caralho. 

Em relação ao que aprendeu sobre cinema, disse que "(...) muitas pessoas não sabem isto, mas em qualquer filme musical, quando ouvimos uma peça de música – e também a vemos – temos de resolver a imagem visual, mas também se tem de resolver a gravação sonora, e depois os direitos intelectuais do escritor. Portanto para cada pequeno excerto há três autorizações diferentes. Eu fiquei chocado quando eles conseguiram arranjar o The Wild One com o Brando, está lá o High School Confidential e o Howdy Doody Show, que me emocionou. É complicado."

Para o Diário de Notícias, e pela altura da estreia do documentário em Portugal, Inês Lourenço escreveu que "muitos já se terão perguntado sobre a origem do look peculiar de Iggy Pop, sempre de tronco nu, quer aos 20 anos quer quase aos 70. A resposta surge em Gimme Danger, documentário de Jim Jarmusch sobre os The Stooges, que integrou a seleção oficial do último Festival de Cannes. Para não deixar o leitor preso à interrogação, revelamos essa curiosidade: a escolha do músico de subir aos palcos sem camisa teve inspiração nos filmes que via com esbeltos faraós do Egipto... Na parte do documentário em que o declara, Jarmusch ilustra a ideia com um excerto de Os Dez Mandamentos (1956), de DeMille, em que Ramsés é interpretado por Yul Brynner. 
 
"É com este sentido de pormenor que o cineasta americano trabalha a viagem focada na história da banda, que é muito a história do próprio Iggy Pop, algumas vezes aqui chamado pelo seu nome de nascimento, James Osterberg. Jarmusch, que o dirigiu em Homem Morto (1995) e Café e Cigarros (2003), não poderia ser mais talhado para realizar o tributo."

Até Terça-Feira!

terça-feira, 18 de maio de 2021

Paterson (2016) de Jim Jarmusch



por Alexandra Barros

Tal como o filme da semana passada (Only Lovers Left Alive), este passa-se numa cidade americana decaída, que outrora foi um importante pólo industrial: Paterson (aka Silk City), New Jersey. Também tem como personagens principais um casal que se ama: Paterson (que partilha o nome com a cidade) e Laura. A Detroit de Only Lovers Left Alive é uma cidade em ruínas, abandonada, mas com o esplendor do passado ainda visível. Paterson não parece ter nenhum desse charme decadente. Aparenta ser uma cidade pacata e sem encantos notáveis para além das suas cascatas (Great Falls). 

Paterson tem uma vida simples e tranquila como a da cidade. Rege-se por rotinas diárias, cumpridas rigorosamente. Acorda todos os dias à mesma hora, beija Laura, vai trabalhar, almoça num banco em frente às Great Falls, regressa a casa, janta, vai passear Marvin (o cão do casal), bebe sempre e só uma cerveja no bar local, regressa a casa. Ganha a vida como motorista de autocarros, mas aquilo que o define é o que faz quando não está a trabalhar: poesia. Aliás, é poeta a tempo inteiro, está constantemente a absorver a matéria com que faz os poemas. 

É a rotina que dá a Paterson espaço para se focar na contemplação do que o rodeia. Traz sempre consigo um caderno, onde o familiar e (aparentemente) banal, olhados como pela primeira vez, são transcritos como poemas. A caligrafia de Paterson vai-nos aparecendo sobreposta aos locais onde são escritos os poemas, ao ritmo a que são escritos no caderno. Paterson encontra poemas em todo o lado. Nas moléculas que se desviam para lhe dar passagem ou numa caixa de fósforos. No início do “Love Poem”, uma caixa de fósforos e o seu conteúdo são descritos em termos objectivos e precisos, a escrita torna-se progressivamente metafórica e quase a terminar: “I become the cigarette and you the match”. 

Laura não tem rotinas, tem padrões. Ou melhor, preenche o seu mundo com padrões (a preto e branco): cortinas e cortinados, guardanapos, louça, roupa, bolos. Anda à procura da sua vocação e aplica a sua energia criativa nas tarefas domésticas: faz experiências gastronómicas, costura a sua própria roupa e pinta os têxteis da casa e os seus vestidos com grandes círculos pretos e brancos. Tem dois projectos: tornar-se cantora country e ter um negócio de cupcakes com muito sucesso. 

O preto e branco das decorações de Laura pode ser associado às diferenças de personalidade dos membros do casal. Paterson é regrado, contido e com uma relação com o mundo essencialmente interior. Laura é espontânea, sonhadora e deseja partilhar com os outros as suas criações (seja música ou bolos). Também nos vampiros Adam e Eve havia traços de personalidade opostos que, no caso, estavam representados simbolicamente nas roupas claras de Eve e escuras de Adam. No entanto, nos dois casos, os membros do casal aceitam as diferenças mútuas e compreendem-se apesar delas. 

Tal como outros filmes de Jarmusch, este está cheio de “homenagens”. Desta vez abrangem: os comediantes Abbott and Costello, Jimmy Vivino, o boxeur Rubin “Hurricane” Carter, o anarquista italiano Gaetano Bresci, o músico Iggy Pop, a cantora country Tammy Wynette, o rapper Method Man (que se representa a si próprio, no filme), os escritores Dante, Emily Dickinson, Allen Ginsberg, William Carlos Williams, Frank O’Hara e o pintor francês Jean Dubuffet, entre outros. 

Tal como o vampiro Adam, Paterson rejeita telemóveis, pois sentir-se-ia atrelado se usasse um. Para o músico e para o poeta, o acto criativo é necessário e natural. Nem um nem outro estão interessados em mostrar ao mundo o que fazem e o que fazem não se destina a obter aprovação e reconhecimento alheios. Apesar disso, quando Marvin destroi o caderno de poemas, Paterson fica bastante abalado. Procura consolação nas Great Falls e encontra-a graças ao encontro casual com uma alma gémea (de notar que Paterson repara em diversos pares de gémeos biológicos ao longo do filme). 

Um turista japonês pede para se sentar junto a Paterson para contemplar as quedas de água e ler William Carlos Williams. Este poeta viveu nas proximidades de Paterson e deu o nome da cidade a um dos seus poemas mais conhecidos. O seguinte verso, pertencente a esse poema épico, é o mais adequado resumo do filme: “A man is indeed a city, and for the poet there are no ideas but in things”. Jarmusch parece ter transformado esse poema num filme e ter reforçado a metáfora do homem como uma cidade ao dar o mesmo nome da cidade ao poeta que a absorve para dela fazer poemas. 

Também o japonês que se senta junto a Paterson diz respirar poesia. Admira os mesmos poetas americanos que Paterson e, além disso, também escreve poemas. Porém, só em japonês: “My poetry only in Japanese. No translation. Poetry in translation is like taking a shower with raincoat on.”. Quando o poeta japonês se despede, um acaso extraordinário (sobrenatural?) deixa-nos a pensar que talvez existam mesmo anjos da guarda. “Sometimes empty page presents more opportunities.”, diz ao oferecer um novo caderno a Paterson. 

Tal como em Only Lovers Left Alive, onde pouco se parece passar, neste filme há pouca acção, drama e história, mas há muitas histórias, pequenas venturas e alegrias, emoção. É um prazer fazer novas descobertas sempre que se reveem.

domingo, 16 de maio de 2021

190ª sessão: dia 18 de Maio (Terça-Feira), às 19h00


Talvez haja um poeta em cada um de nós. Com Adam Driver, Golshifteh Farahani e um certo Method Man, estreado em Maio de 2016 no festival de Cannes, e sobre o quotidiano de um motorista e poeta norte-americano chamado Paterson que vive na cidade de Paterson, em Nova Jérsia, Paterson será a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Sobre a poesia e o seu filme, Jim Jarmusch disse à Film Comment em 2016 que "eu vim para Nova Iorque e estudei na Columbia com o Kenneth Koch e com o David Shapiro, representantes daquilo que chamamos de Escola de Nova Iorque. E o Ron Padgett e o David editaram uma antologia de poetas de Nova Iorque em 1975 que foi como que a bíblia desta escola de poesia. A Escola de Nova Iorque em particular era muito, e continua a ser, muito próxima ao meu coração. E isto é o Frank O’Hara, claro, o John Ashbery, o James Schuyler, o Ron Padgett, o David Shapiro, o Kenneth Koch, um poeta incrível, o Joe Ceravolo, o Frank Lima. Alguma da poesia deles coincide com a dos Beats, que eu adoro de forma diferente, mas para mim, a Escola de Nova Iorque, são os meus padrinhos. 
 
"E para os filmes também, de certa forma. Porque os poemas deles são engraçados, os poemas deles são pessoais. Frank O’Hara escreveu um manifesto muito bonito chamado “Personism” em que diz: “Não escrevas poesia para o mundo. Escreve poesia para outra pessoa. Escreve uma mensagem de amor para alguém que amas, ou escreve uma pequena carta poética para alguém que conheces.” Portanto isso foi mesmo inspirador para mim e tentei fazer filmes que não gritassem do topo da montanha para o mundo inteiro, mas mais como pequenas cartas para alguém de quem gosto. Eles inspiraram-me mesmo ao longo disso tudo. 
 
"Escrevo poesia de vez em quando. Não a mostro às pessoas. Mostrei algumas ao longo dos anos ao David Shapiro. Ele foi o meu professor. Mas sim, eu simplesmente adoro aqueles tipos. E no que diz respeito a Paterson, alguém disse que é como um poema em forma de cinema, mas eu acho que é mais como cinema numa forma poética. Porque é um filme, e eu sei o que é que o Jonas quer dizer porque é permitido à poesia ser abstracta enquanto que a prosa não é da mesma forma. A poesia, mesmo como é colocada numa página, mesmo se se retroceder a Apollinaire—os Caligramas—que brincou muito com a forma como as coisas estão na página para que os espaços se tornem igualmente importantes… Isso é muito abstracto. A prosa pode fazer algo desse género, mas não é a mesma coisa. Portanto entendo a observação de Jonas de que uma certa forma de filmes está livre de restrições prosaicas. A poesia pode fazer isso. Sempre adorei poetas desde que era adolescente, porque descobri Baudelaire e os simbolistas franceses, e Rimbaud, claro, um bocado mais tarde, e depois—descobri isto tudo em traduções—Rilke. E descobri Walt Whitman, Hart Crane. E depois Wallace Stevens, levando, obviamente, à Escola de Nova Iorque."

Também em 2016, Carlos Melo Ferreira escreveu no seu blog que "em Paterson (2016) o americano Jim Jarmusch regressa às suas origens para filmar sem estrelas e sem rede uma vida humilde, a de um motorista de autocarro chamado Paterson - título de um poema longo célebre de William Carlos Williams (1883-1963), poeta maior do modernismo americano, editado em português pela Relógio d'Água (1998) - em Paterson, New Jersey.

"Com Adam Driver como Paterson e Golshifteh Farahani com Laura, a mulher dele, sobre argumento seu o autor mais importante do novo cinema independente americano cria um filme de quotidiano laborioso de um americano que tem a característica especial de escrever poesia. Aí entra a poesia de Ron Padgett, poeta amigo de Jarmusch, com um poema final do próprio Williams, "This Is Just to Say". E a presença das palavras dos poemas que são escritos na imagem e no som confere plena visibilidade ao acto de as escrever, assim visível e auditivamente poético, tanto mais quanto Paterson não usa computador, telemóvel ou o mais e escreve à mão. 
 
"Acompanhando os rituais diários do protagonista, o filme segue-o entre casa e o trabalho, deste para o bar e de regresso a casa onde o esperam Laura e Marvin, o cão, durante uma semana, de segunda-feira a domingo, para regressar a uma/a mesma segunda-feira. Com pormenores deliciosos, como as conversas dos passageiros do autocarro e de Paterson com o encarregado, as conversas do bar (fantástica a noite do xadrês e da mesa de bilhar), o diálogo dos anarquistas, as conversas do casal em casa a que o outro casal, Everett/William Jackson Harper e Marie/Chasten Harmon, faz contraponto no bar."

Já o nosso amigo, José Oliveira, escreveu que o filme é a "aproximação de coisas muito diferentes. Olhar as distâncias em perspectiva nova. Deixar que as esferas e os elementos díspares se conheçam e falem entre si. A luz da noite e a luz do dia envolvidos. Paterson é o mais essencial (primeiro) dos filmes de Jim Jarmusch pois não força os encontros no caos da realidade cronometrada mas vislumbra um mundo perfeito que nos indica todas as possibilidades e combinações infinitas. Desenterra os paraísos perdidos e acende novas luzes. Para Paterson, o poeta que conduz autocarros, encontra poesia em tudo e vê em cada um outro poeta, não há limites nem barreiras na realidade. O seu constante sorriso tudo abarca e aceita. Tudo, o gesto central deste poema inaugural e inteiro que tem as propriedades das grandes curas. Como quem limpa as feridas ou tira os pecados do mundo. 
 
"Poema da banalidade. A pura poesia dos sonhos da sua mulher, Laura. O autocarro a largar a garagem e os reflexos, as sobreposições, cintilações, as palavras disso tudo a serem escritas na tela. Ruas, céus, água, pessoas, palavras. Tudo encontra parte em tudo, diferente e um num só corpo. Poesia inscrita no corpo da paisagem. Extraída a ela e logo devolvida. Dádiva, aceitação e retorno de mãos vazias. O tempo. Dentro do autocarro: dois miúdos a falarem de “Hurricane Carter”, o culpado inocente; dois solitários envergonhados a enumerarem as “conquistas” efémeras; um rapaz e uma rapariga novos demais no auge da anarquia – histórias e poesia que Paterson já conhece “fora do filme”. Paterson, o filme, é um instante cadente na marcha impávida e pasmosa do tempo. Já não basta a câmara frontal, a luz vergada, a montagem de sentidos, o aterro na superfície falha. É preciso o interior em primeiro plano e a ordenar organicamente."

Até Terça!

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Only Lovers Left Alive (2013) de Jim Jarmusch



por Alexandra Barros

Os vampiros Adam e Eve estão unidos como casal há muito, muito tempo. Séculos, literalmente. E são séculos de história, arte, ciência e cultura em geral, o que os alimenta (além do obrigatório sangue). Há até uma cena com um frigorífico cheio de ... livros. Adam dedica grande parte do seu tempo à música. É nostálgico e rodeia-se de objectos de épocas passadas, rejeitando o “progresso” e tecnologias recentes (como, por exemplo, telemóveis). Os instrumentos que toca e coleciona limitam-se aos acústicos, guitarras vintage e equipamentos de electrónica analógica. Nada de CDs ou ficheiros digitais, claro. Colecciona vinis e grava a música que cria em fita (magnética) K7. Eve é apaixonada pela leitura. Para as suas viagens, enche as malas só com livros (apesar de se apresentar sempre maravilhosamente vestida). Lê em diversas línguas, a uma velocidade sobre-humana, e descobre a idade dos objectos tocando-lhes. 

Eve e Adam são vampiros não predadores. “Drenar” (sangue) com moderação, sem matar a “fonte”, ainda é considerado aceitável. Beber desregradamente é bárbaro e, além disso, pode matar, pois a maior parte dos zombies (aka humanos) têm o sangue “contaminado” (poluição, drogas, ...). A irmã de Eve adoece após beber o sangue de Ian (a ligação de Adam ao mundo dos zombies). “What did you expect? He’s from the f***ing music industry!”, diz Eve. Para evitar consumir sangue contaminado com drogas, Adam compra sangue “puro” a um médico corrupto, como se comprasse droga a um dealer

Adam e Eve vivem em cidades distantes, Detroit (EUA) e Tânger (Marrocos), respectivamente, mas Eve vai ao encontro de Adam quando se apercebe que ele está profundamente deprimido. Adam é um hipster auto-centrado e cheio de auto-piedade, cujas desilusões com o comportamento dos zombies se transformaram em depressão e últimamente em pensamentos suicidas. Eve, com mais séculos de vida que Adam, tem afinidades com o realizador do nosso ciclo anterior, Ozu: sim, a desilusão é inevitável, mas a vida tem ainda assim muitos prazeres para oferecer: apreciar a natureza, cultivar a amizade e a amabilidade, dançar, amar e ... sorvetes de sangue (“blood on a stick”). É aliás o prazer da música que reaviva Adam quando este está prestes a desfalecer de “fome”, no final do filme. Adam assiste a uma actuação de Yasmine Hamdan e fica fascinado. Quando Eve afirma que Yasmine será muito famosa, Adam responde que espera que não, pois é boa demais para isso (a mais explícita declaração de snobismo hipster). 

É típico de Jarmusch utilizar nos filmes: citações literárias, linguagem e enunciados científicos e muitas referências a artistas, cientistas e outras figuras culturais. Alguns músicos amigos participam mesmo nos filmes: John Lurie, Tom Waits, Jack White, Iggy Pop, .... Neste há actuações da banda White Hills e da música libanesa Yasmine Hamdan. As referências culturais são imensas. Além dos recorrentes Jack White e Nikola Tesla (cientista/inventor): (os cientistas) Pitágoras, Galileu, Copérnico, Newton, Einstein, Fibonacci, (os escritores) Shelley, Byron, Shakespeare, (o dramaturgo) Christopher Marlowe, (o compositor) Schubert, (o músico) Eddie Cochran. Foi Adam que criou o Adagio para o Quinteto de Cordas de Schubert e lho ofereceu. De acordo com Eve, foi a companhia dos poetas Shelley e Byron, de quem Adam era amigo, que contribuiu para o seu carácter depressivo. Adam não está ligado à rede de distribuição de electricidade geral (está “off-the-grid”). Gera a sua própria energia num equipamento inspirado na transmissão de energia sem fios, teorizada por N. Tesla. Explica a Eve física quântica, nomeadamente partículas entrelaçadas: quando duas partículas entrelaçadas são separadas e afastadas, mesmo que colocadas em extremos opostos do universo, respondem instantâneamente ao comportamento uma da outra. Einstein chamou a este fenómeno “spooky action at a distance”. Eve é amiga de Christopher Marlowe, que também é vampiro e, além das suas obras, escreveu secretamente as atribuídas a Shakespeare. Eve refere-se à fauna e flora pelos seus nomes científicos (sistema de classificação do botânico e zoólogo Lineu). Existem duas cenas particularmente carregadas de “heróis”: uma em que Eve escolhe os livros que levará na mala de viagem e outra em que olha para os retratos pendurados na casa de Adam (http://draculahistoryandmyth.com/only-lovers-left-alive-adams-wall-heroes). 

Tudo está carregado de simbolismo. Por exemplo, a música inicial, “Funnel of Love” de Wanda Jackson, é uma escolha típica de um nerd musical. Lançada num lado B, em 1961, tornou-se entretanto uma favorita de connoisseurs de r&b e country. Outros exemplos mais óbvios: a fonte (gótica) escolhida para o genérico, o nome das personagens, as cidades onde vivem. Tânger é uma cidade com uma herança cultural e histórica riquíssima, que assume a sua decadência como característica distintiva e apelativa para determinado tipo de viajantes. Tem sido local de passagem, mais ou menos prolongada, para “outsiders” ocidentais, desde que Burroughs and Bowles aí viveram na década 1950. Detroit, cidade que cresceu à custa da indústria pesada e automóvel, foi a maior das cidades americanas que faliu após a crise financeira e económica de 2008. À escala dos EUA, é também uma cidade histórica e culturalmente rica. Na altura em que o filme foi feito, Detroit estava em plena fase decadente, com a indústria e o esplendor de outrora arruinados. O filme foi lançado no ano em que a cidade declarou falência. Adam leva Eve a dar uma volta por paisagens urbanas abandonadas. Tristes e belas como o mundo de Roberto em Down By Law (“It’s a sad and beautifiul world.”). O mais belo e triste local que visitam é o Michigan Theater. Outrora uma faustosa sala de espectáculos, foi transformado num parque de estacionamento e é o ícone perfeito desta Detroit e da estética e espírito do filme. Adam sente-se derrotado pelos acontecimentos actuais, mas Eve, uma criatura (da noite) luminosa, com “lust for life”, adapta-se às mudanças e é o seu instinto de sobrevivência que mantem os dois amantes vivos, como partículas entrelaçadas.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

189ª sessão: dia 11 de Maio (Terça-Feira), às 19h00


Enquanto o nosso pequeno ciclo Jim Jarmusch continua, somos visitados por monstros com alma. Estreado em 2013, Só Os Amantes Sobrevivem é uma variação sobre o mito do vampiro, em que a paz e o casamento com séculos de um casal de seres imortais são interrompidos e desestabilizados pela visita da irmã da mulher. Entre os seus amigos, conta-se Christopher Marlowe, alegadamente escritor-fantasma de toda a obra creditada a Shakespeare, e que fingiu a morte em 1593, vivendo sob a alçada de um pupilo. É a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em entrevista à IndieWire em 2014, e quando lhe perguntam o que o atraiu ao género dos vampiros, Jarmusch responde que "gosto de géneros, simplesmente, é um de que sempre gostei. Gosto mesmo de toda a história dos filmes de vampiros que são mais do género dos marginais, os menos convencionais. Começando com Vampyr de Carl Dreyer nos anos 30, e muitos, muitos filmes interessantes – A Sombra do Vampiro com Willem Dafoe, depois nos anos 80 The Hunger com David Bowie e Catherine Deneuve. Gostei imenso do filme de George Romero, Martin, do filme de Katheryn Bigelow, Near Dark, The Addiction de Abel Ferrara, Trouble Every Day de Clair Denis, o Fearless Vampire Killers de Polanski. Adorei o Let The Right One In—esse era de há tipo cinco, seis anos atrás, lindo. 

"(...) Sempre adorei esses filmes todos, esse tipo de abordagem. Em vez daquela do tipo mais óbvio, e queria fazer uma história de amor há bastante tempo. Teve diferentes variações, mas fundiu-se de alguma forma talvez há uns oito anos no meu filme de vampiros. Portanto, eu queria fazer uma história de amor que envolvesse vampiros. Porquê, não vos sei mesmo dizer… Interessa-me. E às vezes também gosto de géneros porque insinuam uma espécie de elemento metafórico. Simplesmente pelo facto de serem um género. Portanto pode-se trabalhar nos limites [desse género] e fazer qualquer coisa diferente dentro desse enquadramento. Portanto isso atrai-me sempre, ou nem sempre, mas no caso dos poucos filmes em que me referi a géneros, também há lá algo de atractivo para mim."

Para a Film Comment, também em 2014, a actriz principal do filme, Tilda Swinton, comentou que "(...) eu conheci o Jim nos bastidores de um concerto de Darkness e cerca de uma semana mais tarde ele enviou-me uma carta a pedir-me para entrar no Broken Flowers - Flores Partidas, que já estava escrito e já estava a acontecer. Portanto eu não fiz parte do desenvolvimento desse filme de todo. Fiz mais parte de Os Limites do Controlo, mas esse filme era particularmente tão pouco desenvolvido na sua concepção; a intenção do Jim era fazer um filme de uma maneira em que não soubesse o que estava a fazer. Portanto foi estranho. Nesse sentido, pareceu extremamente auto-biográfico porque parecia que estava em busca do cinema. Vendou-se a si próprio propositadamente e depois andou às apalpadelas por esse filme. 
 
"Mas diria que sim, [Só os Amantes Sobrevivem] pareceu mesmo muito pessoal—é certamente muito íntimo e tem um amor central de uma forma que os outros filmes dele não têm. Também é verdade que a Sara [Driver, a cineasta e a parceira romântica de Jarmusch] foi um enorme farol neste projecto e foi a pessoa que apresentou o Jim às histórias de Mark Twain. Portanto talvez seja mais auto-biográfico. Mas não sei. Não estou mesmo qualificada para julgar. Talvez seja sempre o caso."

Ainda em 2014, na National Review, e comparando a obra de Jim Jarmusch com a de Wes Anderson, Armond White escreveu que "(...) Só os Amantes Sobrevivem tem várias passagens notáveis. Uma montagem de empacotamento de livros mostra títulos comicamente díspares enquanto Adam e Eve se agarram a lembranças importantes ao mudar de casa. Numa passagem de bebida de sangue, os vampiros entram em transe como viciados em heroína (ou acenam desamparados com a cabeça em posturas de absinto próximas de Modigliani). E uma sequência de viagem faz um paralelo entre as deambulações nocturnas pela rua dos dois monstros quando estão a um oceano de distância. Isto confirma a melhor execução técnica de Jarmusch em comparação à combinação delirante de miniaturas, acção real, e perspectivas variadas de Wes Anderson. Jarmusch aponta para a identidade profunda dos hipsters na literatura, na música, e nos óculos de sol para comunicar a sua peregrinação vazia, procurando (com uma ironia total e consciente) um estado desalmado e anestesiado. 
 
"Que esse estado seja exemplificado pela zombificação de uma cidade americana outrora vital demonstra um fascínio intolerável pelo declínio, evocativo da complacência social da boémia. Uma das cenas-chave entre Adam e um médico contrabandista de sangue (Jeffrey Wright) tem o único encontro racial entre negros e brancos do filme. Quando Adam insiste que o seu “risco mútuo me faz sentir seguro,” isso evoca a confiança de classe desigual de incontáveis trocas de compradores de droga no seio da vida boémia dos hipsters. Isto explica a excursão decadente do filme por Tânger (referenciando o guru exótico Paul Bowles) e por Detroit. Jarmusch retrata a Motor City através de “pornografia de ruínas,” um fascínio pelo colapso social que é indiferente a explicações ou soluções económicas e políticas."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Down by Law (1986) de Jim Jarmusch



por Luc Sante

Vencidos pela Lei, estreado em 1986, era o terceiro filme de Jim Jarmusch. Ao contrário dos seus antecessores, Sempre em Férias (1980) e Para Além do Paraíso (1984), não arrancou de uma vista semi-documental da baixa de Manhattan. Foi totalmente rodado em exteriores no Louisiana, o que, no contexto do cinema de baixo orçamento da cidade de Nova Iorque, era exótico, ainda mais que as incursões dos filmes anteriores pelos arredores abandonados de Cleveland e fosse qual fosse a extensão de autoestrada negligenciada que fazia as vezes da Flórida. Aqui, o local é anunciado e reforçado durante os créditos. Passam em revista Nova Orleães e as suas imediações, da esquerda para a direita, gravadas num preto e branco cristalino pela câmara de Robby Müller: mausoléus, varandins de ferro forjado, bairros sociais de estatura baixa, barracas em estacas. Depois disso, as cenas desenrolam-se no meio de uma arquitectura semi-tropical e nos pântanos; ouvem-se sotaques cajun e Irma Thomas a cantar, mas por todo o aroma a gumbo filé, o cenário verdadeiro não é mais o Louisiana do que o cenário de Macau é Macau. Vencidos pela Lei tem lugar na terra da imaginação, na província dos filmes. 
 
O Jack de John Lurie, um chulo, parece vir do film noir. Ao vê-lo nos seus preparos de trabalho com fato, camisa preta, e gravata brilhante, imagina-se que nasceu algures nas bordas do enquadramento de The Big Combo de Joseph H. Lewis e conseguiu a sua cara a estudar Jean-Paul Belmondo em O Acossado de Jean-Luc Godard. O facto de Lurie ter usado exactamente as mesmas roupas no seu papel fora da tela, como líder dos Lounge Lizards, uma banda post-punk que explorou e despedaçou as convenções do jazz post-bop dos anos 50, e apareceu pelos lábios dele a tocar saxofone, importa apenas na medida em que a sua actuação era perfeita. John Lurie inventou “John Lurie,” uma figura de uma calma inatacável que, no entanto, é capaz de executar trambolhões, um bebedor de highballs e condutor de Cadillacs que recebe o correio num apartamento cheio de crude e não no Eden Roc, e que quase nem precisa de uma mudança de antecedentes para se tornar Jack. 
 
O Zack de Tom Waits, um locutor da rádio que trabalha sob a alcunha de Lee “Baby” Sims, é um bocado mais difícil de situar. Colidem tons de Expresso Bongo com imagens de acampamentos de vagabundos e arenas de lutas de galos e Okies a impulsionar calhambeques mortos pelo deserto com a força de vontade. É o hipster solitário, sem cena tirando para o seu público invisível das ondas sonoras—ele e Jack, naturalmente, são como água e azeite. O cabelo dele, um emaranhado de ervas daninhas, é desenhado pela natureza; afundou a fortuna toda nos sapatos, canhoneiros rockabilly que accionavam detectores de metais. Nada disto está em desacordo com a persona que Waits construiu ao longo dos muitos anos da sua carreira musical, e que, na altura em que o filme foi feito, tinha recentemente feito uma viragem da sua base de número de bar beatnik para uma lógica de sonho. A personagem é tão imediatamente evocativa e em última análise obstinada como as duas canções do álbum de Waits, Rain Dogs, que encerram o filme. 

Jarmusch, como Para Além do Paraíso demonstra amplamente, adora o número três. (A certa altura, considerou fazer um trio de filmes ambientados em cidades cruciais para a música americana, mas depois de Vencidos pela Lei e O Comboio Mistério de 1989, ambientado em Memphis, nunca se materializou um terceiro filme, a ambientar-se Kansas City.) O número de Jack e Zack precisava de um terceiro elemento, que só podia ser uma carta de fora do baralho, e esse requisito foi preenchido para além de todas as expectativas por Roberto Benigni. Jarmusch, que tinha conhecido Benigni—famoso como comediante em Itália mas desconhecido em qualquer outro lugar—num festival de cinema, escreveu o papel para ele numa altura em que nenhum deles falava a língua do outro. Benigni, como a sua personagem, Roberto, mantinha um bloco de notas dos idiomas americanos; a linguagem tornou-se o adereço da personagem. Espírito da floresta ou talvez Pinóquio, faz pender a balança do filme, sabotando a competição de talentos entre Jack e Zack e admitindo o maravilhamento puro e descomprometido. Conduz os hipsters para fora da prisão e para a floresta, e eventualmente para o céu, embora seja o único que consiga lá ficar. 
 
Pode-se abrilhantar o filme de muitas maneiras. É uma fábula de final aberto que tanto convida a interpretações como as frustra alegremente. Desta e doutras formas, o filme justifica o rótulo batido de “cinema poético.” Jarmusch tem qualquer coisa do químico amador dentro de si—gosta de juntar diversos ingredientes num frasco e de ver como vão interagir. Isto surge de forma mais óbvia na escolha do elenco. Nos seus primeiros filmes, especialmente, ele procurava intérpretes que se tinham estabelecido a si próprios em meios de comunicação não-cinemáticos, e dentro destes justapunha os estilos mais amplamente contrastantes. Aqui como noutros lugares, construiu personagens à volta dos actores em vez de os calçar à força dentro dos papéis, escreveu guiões detalhados mas incorporou improvisações pelos intérpretes, deleitou-se com acidentes felizes. Depois lançou as personagens para terra desconhecida; por sua própria admissão, escreveu o guião de Vencidos pela Lei antes de visitar sequer o Louisiana. Arrancou o enredo da fuga da prisão do armazém dos lugares comuns cinematográficos (We’re No Angels vem à cabeça) e encontrou exteriores simples e eloquentes que combinavam um génio orçamental com um olho certeiro para arquétipos americanos. Contratou Robby Müller, cuja sensibilidade holandesa se podia considerar como estando no pólo oposto do rococó dos pântanos, e atribuiu-lhe película a preto e branco, que não era mais corrente em 1986 do que é agora. Depois Jarmusch abanou e mexeu os seus ingredientes. O resultado é irredutível, um filme auto-contido como um ovo. 
 
in «Down by Law: Chemistry Set», The Current, Criterion, 17 de Julho de 2012.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

188ª sessão: dia 4 de Maio (Terça-Feira), às 19h00


Jim Jarmusch, de quem já exibimos Homem Morto em Maio de 2017, na altura com direito a apresentação em vídeo por Nemo Librizzi, regressa ao nosso cineclube em Maio de 2021 com um pequeno ciclo de quatro filmes, sendo o primeiro Vencidos pela Lei, protagonizado por Tom Waits, John Lurie e o italiano Roberto Benigni, os três presidiários que animarão a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em 2017, no âmbito do VII Encontro Anual da AIM, Carlos Melo Ferreira escreveu sobre o realizador, dizendo que "o cineasta independente americano Jim Jarmusch nasceu em 22 de janeiro de 1953 em Akron, cidade industrial do Ohio, donde partiu para frequentar a New York University onde concluiu o curso de literatura e onde, depois de uma passagem frutuosa por Paris em 1975 com frequência assídua da Cinemateca Francesa que lhe permitiu conhecer os clássicos de referência do cinema mundial, estudou cinema e teve como professor o cineasta moderno Nicholas Ray, o que aguçou o seu interesse que vinha de trás pela sétima arte. 
 
"Este simples apontamento biográfico tem chamado a atenção daqueles que o têm estudado para, a partir da sua deambulação geográfica, explicar o sentimento de estranheza que desde o início, em Sempre em Férias (1980) e Para Além do Paraíso (1984), acompanha a sua obra como acompanhara antes a de Nick Ray e que tem sido dito lembra Buster Keaton, cineasta/ator do burlesco mudo

"Na década em que nasceu iniciou-se também, em Nova Iorque, o cinema independente americano a partir da fundação da revista Film Culture em 1955 pelos irmãos Jonas e Adolfas Mekas – com eles, o documentarista D. A. Pennebaker e o ator/realizador John Cassavetes, entre outros – no que, a partir de 1959, ficou conhecido por New American Cinema. Fora de Hollywood, ele foi contemporâneo da nouvelle vague francesa e dos cinemas novos, que só tiveram correspondente em Hollywood com a chamada Nova Hollywood que, a partir dos anos 70, a fez renascer das cinzas em que tinha ardido no início dos anos 60. (Rigorosamente, desde o tempo do cinema mudo, havia produtoras independentes e, pelo menos desde a década de 40 do século XX, que havia cinema independente nos Estados Unidos, mas sem continuidade.)"

Em entrevista ao The New York Times, em 1986, Roberto Benigni falou sobre Jarmusch e sobre como o conheceu, dizendo que "não sabíamos nada um sobre o outro. Eu nunca vi nenhum dos filmes dele. Nunca ouvi o nome Jim Jarmusch. Felizmente tenho muito sucesso em Itália. Sou comediante e também um realizador, mas Jim Jarmusch também nunca tinha ouvido falar de mim. Alguém nos apresentou e fomos juntos comer qualquer coisa. Nenhum de nós sabia falar a língua do outro, mas não sei, gostámos um do outro, percebemos. De alguma forma falámos, com os nossos corpos, com os nossos olhos. Sabemos ambos umas palavras de francês. Encontrámo-nos muito, depois disso, e nunca conseguíamos falar mesmo; mas na minha cabeça, quando me lembro, acho que estávamos a falar italiano porque comunicávamos. Sabíamos que gostávamos um do outro. Ele perguntou-me se queria trabalhar com ele. Foi a primeira vez na minha vida antes de conhecer o guião, antes de conhecer o trabalho dele, disse apenas que sim. Sabia que ele era bom. Ele é mesmo estranho e mágico e também é uma contradição, como o Pinóquio.''

Para a Criterion, por ocasião do lançamento do DVD do filme em 2012, Luc Sante escreveu que "Vencidos pela Lei, estreado em 1986, era o terceiro filme de Jim Jarmusch. Ao contrário dos seus antecessores, Sempre em Férias (1980) e Para Além do Paraíso (1984), não arrancou de uma vista semi-documental da baixa de Manhattan. Foi totalmente rodado em exteriores no Louisiana, o que, no contexto do cinema de baixo orçamento da cidade de Nova Iorque, era exótico, ainda mais que as incursões dos filmes anteriores pelos arredores abandonados de Cleveland e fosse qual fosse a extensão de autoestrada negligenciada que fazia as vezes da Flórida. Aqui, o local é anunciado e reforçado durante os créditos. Passam em revista Nova Orleães e as suas imediações, da esquerda para a direita, gravadas num preto e branco cristalino pela câmara de Robby Müller: mausoléus, varandins de ferro forjado, bairros sociais de baixa estatura, barracas em estacas. Depois disso, as cenas desenrolam-se no meio de uma arquitectura semi-tropical e nos pântanos; ouvem-se sotaques cajun e Irma Thomas a cantar, mas por todo o aroma a gumbo filé, o cenário verdadeiro não é mais o Louisiana do que o cenário de Macau é Macau. Vencidos pela Lei tem lugar na terra da imaginação, na província dos filmes. 
 
"O Jack de John Lurie, um chulo, parece vir do film noir. Ao vê-lo nos seus preparos de trabalho com fato, camisa preta, e gravata brilhante, imagina-se que nasceu algures nas bordas do enquadramento de The Big Combo de Joseph H. Lewis e conseguiu a sua cara a estudar Jean-Paul Belmondo em O Acossado de Jean-Luc Godard. O facto de Lurie ter usado exactamente as mesmas roupas no seu papel fora da tela, como líder dos Lounge Lizards, uma banda post-punk que explorou e despedaçou as convenções do jazz post-bop dos anos 50, e apareceu pelos lábios dele a tocar saxofone, importa apenas na medida em que a sua actuação era perfeita. John Lurie inventou “John Lurie,” uma figura de uma calma inatacável que, no entanto, é capaz de executar trambolhões, um bebedor de highballs e condutor de Cadillacs que recebe o correio num apartamento cheio de crude e não no Eden Roc, e que quase nem precisa de uma mudança de antecedentes para se tornar Jack."

Até Terça!