terça-feira, 17 de dezembro de 2019

157ª sessão: dia 19 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


Para este Natal, escolhemos um filme de Roberto Rossellini que, mesmo não se passando na quadra -  como tem sido a regra nas nossas selecções -, foi planeado para estrear durante a época natalícia de 1950, pelo próprio realizador. A anteceder o filme, e como homenagem ao grande amigo Zé Lopes, exibiremos a curta-metragem Dá-me uma Gotinha de Água, de 2013. Será assim a nossa próxima sessão.

Em entrevista a Éric Rohmer e Jacques Rivette, em 1954, e dissertando sobre a liberdade sem freios do cristianismo, Rossellini diz que "quando se fala em liberdade, a primeira coisa que se acrescenta é: «a liberdade, sim, mas com uns certos limites». Não, até recusamos a liberdade abstracta porque é um sonho que seria demasiado belo. É por isso que encontro uma força imensa no cristianismo: porque a liberdade é absoluta, é verdadeiramente absoluta, na minha opinião.

"É um facto que nos dias que correm os homens querem ser livres para acreditar numa verdade que lhes é imposta; já não existem homens que procurem a sua própria verdade; é isto que me parece extraordinariamente paradoxal. Basta-lhes dizer com o dedo estendido à frente do nariz: isto é a verdade, para que se tornem perfeitamente felizes; querem acreditar, seguem-vos, são capazes do que quer que seja para conseguir acreditar nessa verdade. Mas nunca fizeram o mais pequeno esforço para a descobrir. É uma coisa que sempre se passou assim ao longo da história; o mundo deu passos em frente quando quando houve verdadeira liberdade. Esta liberdade apareceu muito raramente na História e no entanto sempre se falou de liberdade."

No capítulo dedicado ao filme da nossa próxima sessão, dentro do monumental livro que escreveu sobre Rossellini, Tag Gallagher informa que «o próximo filme de Rossellini tinha rodagem marcada para 17 de Janeiro de 1950 (o aniversário de Marcellina). Contrariamente a Stromboli terra di Dio, que tinha sido preparado no último momento, Francesco giullare di Dio (O Santo dos Pobrezinhos) andava a ser planeado há anos. Era "o filme que Roberto continuou a amar mais do que qualquer outro que tenha feito", observou Marcellina depois da morte de Rossellini [nota: Faldini & Fofi, I:205]. O espírito de Francesco paira sobre Stromboli, o filme anterior, e Europa 51, o filme seguinte.

«Roberto tinha exposto as suas ideias sobre Francisco de Assis a Jenia Reissar em Abril de 1948. “Rossellini explicou,” relatou ela a Selznick, aparentemente insensível às lisonjas de Roberto, “que é a história de um homem que é não-católico, que renunciou à riqueza pela pobreza para provar a si próprio e aos outros que o bem estar e a paz de espírito não se devem à riqueza, e são uma qualidade interior de que tanto os ricos como os pobres podem desfrutar... São Francisco foi seguido no seu exílio voluntário do mundo pela sua antiga amante, que renunciou ao seu grande amor por ele e se tornou sua seguidora fiel.” [nota: Selznick Archives: Reissar to Selznick, 21 de Abril de 1948.]

«“Paz de espírito” era um tema constante, mesmo que obscuro, para Roberto nos anos que se seguiram à morte de Romano. Tinha sido essa a busca de Karin em Stromboli e a de Edmund em Deutschland. No Outono de 1948, quando Roberto encontrou Morlion pela primeira vez, tinha confessado o seu orgulho em ter posto a sequência dos monges em Paisà “para mostrar a capacidade da fé em Deus para gerar a aceitação serena do sofrimento.” Isto foram lisonjas preparadas para Morlion, mas honestas. Os personagens de Rossellini iam ser os mesmos monges que tinha usado em Paisà e a mensagem de Rossellini ia ser a mesma também. Pretendia “fazer um filme em que São Francisco e Santa Clara, apesar das suas capacidades sobre-humanas para renunciar a tudo e se darem aos outros, se comportassem como indivíduos comuns—tal como os partidários de Paisà ou as personagens de Roma, Cidade Aberta, pessoas normais que tinham enfrentado a morte com singeleza, não porque tivessem uma vocação para o heroísmo mas apenas por quererem continuar humanos. Permanecer fiéis, mesmo a custo da própria vida, a certos valores que tinham interiorizado de forma profunda sem alguma vez se terem perguntado de forma explícita sobre eles.”[nota: Arosio, “Il figliol,” p. 306.]»

Já Jacques Lourcelles, no Dictionnaire, escreve que "usando ainda alguns princípios do neo-realismo (os cenários naturais, o som directo, pouco habitual em Itália, e os intérpretes não profissionais misturados com alguns raros profissionais), Rossellini quer exprimir pela própria forma, pela carne do seu filme, a mensagem franciscana. O despojamento e a austeridade frequentemente luminosa da imagem só existem para gerar uma jubilação e um êxtase plástico que são a modesta pedra que o cineasta pretende trazer para a construção (para a descoberta) da «felicidade perfeita». A arte de Rossellini nunca deixou de surpreender, até mesmo de chocar, porque por mais encarnada que fosse, também era a menos formalista. A sua mensagem final consiste em poucas palavras: não é o filme, mas a mensagem que conta; a obra é nada, é a realidade que é tudo. Esta mensagem é também o culminar do neo-realismo."

Até Quinta!

Diva - Simplesmente uma Homenagem (2007) de Manuel Mozos



por José Carlos Ary dos Santos

Minha querida Amália: 

Pediram-me para escrever um artigo e decidi escrever-lhe uma carta. Dezanove anos atrasada. Mas tão funda, tão verdadeira, tão sincera, como se tivesse sido escrita na altura. 

Venho agradecer-lhe. Em primeiro lugar, ser quem é: uma espécie de rouxinol da noite que primeiro, quase a medo, ensaia a voz torturada por sabe-se lá que fado e depois, pouco a pouco, a desdobra em toalhas de estrelas que nos iluminam por dentro. Desculpe-me as imagens literárias. Bem sei da sua simplicidade; da sua enternecedora timidez: “Faz-me impressão”, diz no princípio deste disco. Fez impressão. Amália! A partir do Café Luso, do corrido, do bacalhau, do meia-noite, do menor, fez impressão a todos. Impressionou Portugal. Impressionou a França. Impressionou o mundo. Acima de tudo, impressionou o seu povo, o nosso povo. Muito obrigado, Minha Senhora. 

Nossa Senhora. Nossa Senhora de Lisboa. 

Quero agradecer-lhe, depois, cantar tão bem. A partir deste disco-documento, seja qual fora a data, seja qual fora a idade, seja qual for o tempo. Muito obrigado, Minha Senhora. Nossa Senhora. Nossa Senhora da Verdade. 

Agradeça, por mim, ao Filipe Pinto o tê-la anunciado. Ao Camarinha e ao Santos Moreira o terem-na acompanhado. E dê um abraço grande aos poetas, nossos amigos: de saudade para o Linhares Barbosa, para o Vieira Pinto, para o Silva Tavares; de camaradagem para o Mourão-Ferreira, para o Sousa Freitas, para o Leonel Neves. 

É tudo, Amália. Desculpe-me o tempo – tanto tempo! – que lhe tomei. 

Ao ouvir este disco sinto orgulho em dizer-lhe que sou seu amigo há dezanove anos. 

do disco Amália no Café Luso, 1976

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

156ª sessão: dia 12 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


A nossa próxima sessão, Diva - Simplesmente uma Homenagem, surge quando sabemos da morte de um dos nossos primeiros sócios honorários, inspirações supremas e maior dos amigos, o sempre entusiasta e lutador José Lopes. O bom do Zé Lopes. Tendo representado sempre o melhor da nossa cultura (estar com ele e ouvi-lo era como estar ao lado dos gigantes que conheceu e admirava, de Zeca Afonso a Pedro Hestnes, passando por Mário Viegas ou Luiz Pacheco), dedicamos-lhe esta e todas as sessões com muita saudade mas sem saudosismos - seria assim que ele o desejaria, com o dedo indicador içado e decidido -, esperando que o seu exemplo e as suas muitas lições nos continuem a guiar pelos anos e pelas vidas.

Voltando ao nosso filme, mas podendo estar a falar exactamente da mesma coisa, o texto de apresentação da Rádio e Televisão de Portugal sobre este documentário de Manuel Mozos diz-nos que "sem Amália Rodrigues, o Portugal do século XX teria deixado uma memória claramente diferente. Desde o momento em que encarnou em si todo o conceito de “portugalidade” Amália passou a carregar consigo o fardo de um emblema nacional dentro e fora de portas. Como disse Caetano Veloso, numa célebre atuação no Coliseu dos Recreios em finais da década de 80, abraçar Amália era a mesma coisa que abraçar Portugal inteiro.

"Mas Amália Rodrigues, assumindo a pose das verdadeiras estrelas, que sabem o que valem sem se deixar intoxicar pelo valor que lhe atribuem, sempre se afirmou como um veículo para expressar o que a sua alma ditava e não uma porta-voz dos desígnios nacionais. Face a todas as contrariedades, Amália Rodrigues manteve fielmente a postura que criara para si desde que pegou no fado e o moldou à sua maneira, tirando-o das tabernas em direção aos mais prestigiados palcos do mundo. 

"Amada por uns e odiada por outros, a cantora nunca se deixou ultrapassar pelos acontecimentos e, mesmo se com alguma ingenuidade à mistura, conseguiu passar por cima de todas as situações adversas, saindo pela porta grande sem ter de as contornar sinuosamente."

Há dois meses, o autor do precioso blogue dedicado a Amália Rodrigues, Jorge Muchagato, escrevia que "a voz de Amália, na sua poética intraduzível, radical e única, esquiva às palavras, pode ser também um lugar, uma terra; a papoila vermelha no meio da seara, o sol a morrer no mar e a mudar em lume o céu, o olhar dos cães, o mar no destino dos veleiros e no destino da praia, um feixe de ervas selvagens coroadas de malmequeres e de flores silvestres; e de ramos quebrados de Outono, «um caminho de silvas e de nardos / Uma intensa ternura que persigo / Rodeada de cardos por tantos lados» diz o fado Amêndoa Amarga, escrito por Ary dos Santos, uma ausência de razão quando a razão se acha saturada do absurdo do arbítrio da vida. A minha primeira voz de Amália foi a do terceiro disco de folclore, Amália Canta Portugal III, editado em 1972. 

"O aniversário do meu avô Luís ocorria no final de Dezembro. Nesse Inverno de 1978 eu ofereci-lhe uma cassete da Amália – pareceu-me bonita a fotografia da capa, a Amália sentada na relva a olhar o mar, o seu perfil cheio de enigmas, definido entre os rochedos que avançavam oceano dentro e o céu tão luminoso que chegava à ausência da cor, o branco. É provável que a verdade seja a de ter comprado a voz da mulher da fotografia. Tão sozinha, aquela mulher de olhar perdido no mar. Mas a verdade é que fui eu quem passou os dias a ouvir a cassete: canções alegres acompanhadas com guitarras e violas… mas a voz, no entanto, estava cheia de noite e de tristeza, a própria voz para além do canto e das canções, de um triste indefinível qualquer, de uma profunda densidade emotiva por detrás do «Ai Malhão, Malhão / Põe-te em lugar que t’eu veja / Não faças andar meus olhos / A bailar pela igreja» e isso compreendia-se bem quando cantava «Atirei um tiro à pomba / A pomba no ar voou / Enleou-se naquela roseira / E a maldita pomba sempre lá ficou»."

Em entrevista a João Gonçalves em 1985, Amália Rodrigues dizia que "eu não vou pela ideia de cantar um fado como se o cantasse pela primeira vez, porque tenho muita facilidade em improvisar e só entendo o fado assim. De uma maneira geral, o fado tem muito pouco de melodia (a não ser em músicas como as do Valério, do Portela, do Janes ou outros). O fado clássico, que era aquele que havia antigamente – porque nenhum compositor escrevia para o fado, a não ser na revista – não tinha praticamente melodia. Eu, se cantasse sempre da mesma maneira, maçava-me imenso e começava a pensar que podia maçar os outros. Não sou capaz de fazer igual amanhã porque eu não sei como é que fiz ontem nem como é que vou fazer amanhã… 

"(...) nunca esperei nada, por isso vivo sempre surpreendida com aquilo que me acontece. Pelo contrário, estou sempre à espera do pior. Eu gostava muito de morrer sem ouvir um não do público. Morrer, mas não retirar-me. Gostava de ficar no coração das pessoas."

Até Quinta-Feira!

sábado, 7 de dezembro de 2019

...Quando Troveja (1999) de Manuel Mozos



por Luís Miguel Oliveira

Início da carreira de Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… tornou-se uma obra praticamente invisível. Porque, depois da perda dos materiais originais, só pode ser visto numa versão transcrita para vídeo, com péssima imagem (sem definição, cheia de “flou”, com as cores alteradas e deterioradas) e som em não muito melhor estado, que não é Um Passo, Outro Passo e Depois…. Apenas, infelizmente, a sua ruína. 

E que podemos adivinhar a partir deste pequeno destroço sobrevivente? Em primeiro lugar, uma gritante contiguidade entre Um Passo… e o Xavier que pouco depois começaria a ser rodado. É verdade que alguns actores (Pedro Hestnes, Sandra Faleiro, Cristina Carvalhal) passaram de um filme para o outro, e que esse pormenor influencia a sensação de proximidade. Mas esse pormenor é apenas isso, um pormenor. Porque o tipo de personagens é bastante semelhante: jovens mais ou menos perdidos em paisagens semi-urbanas, ou na fronteira entre o urbano e o rural (a julgar pelo genérico final, o filme foi rodado na zona de Oeiras e Paço de Arcos). Os lugares são também bastante semelhantes: escolas, cafés, cenários duma espécie de “urbanismo incompleto” (ver a sequência nocturna, nas obras). O modo narrativo, mesmo que aqui se aposte numa linearidade que não seria a de Xavier, contém já alguns sinais do que Mozos depois desenvolveria com outro fôlego e outra amplitude: repare-se nas elipses, nos saltos espaciais e temporais, nos espaços em branco que ficam por preencher nas relações entre as personagens, espaços esses que o decorrer do filme se encarrega de esclarecer (ou não). 

A que podíamos acrescentar a profunda melancolia que percorre todo o filme – e de que o “confronto” entre o grupo de jovens e o velho contínuo Nogueira (Canto e Castro) é simultaneamente um veículo e o ponto de chegada. Nogueira – grande interpretação de Canto e Castro – é uma personagem fascinante, no seu mutismo solitário, na sua marginalidade auto-imposta (“a minha vida está muito bem assim”, diz a certa altura). Mas também é tudo menos uma personagem “transparente”, e há uma relação de poder (o magro poder que lhe confere o estatuto de contínuo) muito interessante e muito equívoca entre ele e o bando dos miúdos: a noite da perda das chaves, passada entre o orgulho e a humilhação, confere à personagem uma complexidade fascinante, uma espécie de brilho “opaco” que a vai tornando cada vez mais perturbante. 

Mais de dez anos depois de Um Passo, Outro Passo, e Depois..., e antes de poder completar o Xavier que ficou pendurado no princípio da década de 90 e só veio a ser concluído e estreado já no século XXI, …Quando Troveja tornou-se o primeiro filme de Manuel Mozos a ser exibido comercialmente.

“Só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja”, diz o ditado. Não há trovões no filme de Manuel Mozos antes da segunda sequência, quando a personagem de Miguel Guilherme desperta sobressaltado de um pesadelo durante uma noite de trovoada. Mas há, desde os primeiros planos do filme, electricidade (a primeira cena passa-se numa barragem) – juntando as duas coisas, chegamos ao anúncio do clima do filme, borrascoso, alimentado por uma espécie de electricidade tempestuosa. Manuel Mozos falou, aquando da estreia do filme, de “série B” a propósito de …Quando Troveja, com certeza menos por condições de produção ou porque a narrativa do filme se aproxime do tipo de narrativas e ambientes que habitualmente associamos à “série B”, e mais pela enorme condensação de energia (“eléctrica”) em que o seu filme parece estar sempre a trabalhar. Repare-se como, na maior parte, as cenas são bastante curtas, mas sempre extraordinariamente tensas, concentradas, direitas ao assunto sem desvios nem floreados. Isto é uma coisa de “série B”, este despojamento e esta contracção do tempo, esta capacidade de reduzir as cenas e os planos ao seu essencial. Como o é, aliás, esta montagem que praticamente faz desaparecer os chamados “planos de ligação”, constantemente criando elipses ou meramente sugerindo a sua hipótese. E este modo narrativo tem ainda a ver, obviamente, com a “electricidade”, que o filme acumula e acumula de plano para plano, de sequência para sequência, e concentra nessa personagem central (a de Miguel Guilherme) que é como uma “pilha” cada vez mais carregada. Não exageramos, de resto, se dissermos que é esse um dos segredos do filme: trabalhar uma personagem (que está, desde o princípio, em “perda” afectiva e psicológica) até ao ponto máximo da sua suportabilidade – e depois poupar-nos a sua dissipação, em mais uma das muitas elipses de …Quando Troveja (o cúmulo do abandono e da dejecção moral, a chuva, o abraço da “duende”, um salto e, na última cena, Miguel Guilherme fresco como ainda não o víramos). 

Seria, porventura, a maneira ideal (a única manei ra) de filmar um mergulho num abismo de falta de auto-estima sem ficar lá preso. Sempre em secura e em pudor, sem insistência nem complacência, muitas vezes em “ricochete”. Em …Quando Troveja a borrasca é o período de crise em que o protagonista se afunda depois de a namorada o ter trocado por um amigo dos dois. Odisseia pelas profundezas da auto-comiseração que dá uma lição a um filme horroroso (mas celebrado e “oscarizado”) como é o Leaving Las Vegas de Mike Figgis, o filme de Mozos é capaz desse mergulho sem nunca perder o pé nem uma frieza de “lâmina”: repare-se como aqui o mais frio e a “realista” é a memória, venha ela em pesadelos (logo no início) ou em relatos (o encontro, no carro, de Rute com o colega de escola). 

…Quando Troveja é ainda um filme que se aventura numa dimensão “fantástica” ou meramente fantasiosa (as cenas com os “duendes” e respectivos flashbacks), multiplicando os tempos e os espaços, capaz de compor, de forma original e certeira, uma espécie de conto de fadas para adultos, onde toda a gente vive a sua forma pessoal de orfandade. Nisso, nessa constante presença de uma iminência da perda, efectiva ou apenas latente, ou fantasiada, é um filme que sintetiza algumas das principais preocupações de Mozos, no cinema de ficção mas também na sua obra documental – pois não é outro o tema de, por todos, Ruínas.

in «Jornal dos Encontros», Fundão, 2011.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

155ª sessão: dia 5 de Dezembro (Quinta-Feira), às 21h30


Já em Dezembro, com o Inverno a chegar, chegamos também à segunda longa-metragem de ficção de Manuel Mozos, que quis o destino ter estreado dois anos antes da primeira. Com Miguel Guilherme, Raquel Dias e José Wallenstein, num triângulo amoroso que conjura seres estranhos, fantasmas e trovoadas, ...Quando Troveja é a nossa próxima sessão.

Por alturas da estreia do filme, em Janeiro de 2001, Luís Miguel Oliveira escreveu que ...Quando Troveja "é um "falso primeiro filme", porque além de longas-metragens inacabadas Manuel Mozos tem já uma assinalável obra no vídeo e na curta (ou média) metragem. Não é, portanto, uma surpresa que ...Quando Troveja seja um óptimo filme, com uma construção narrativa truculenta e um universo recheado de características pouco usuais no cinema português. Sempre com o ar de quem não quer a coisa, ...Quando Troveja é um "jeu de massacre" (do qual não se exclui o próprio realizador, bem pelo contrário), retrato de um punhado de personagens envolvidas em requintados processos de tortura emocional, num registo ziguezagueante entre uma extrema crueldade e uma extrema ternura, adensado por alusões "fantásticas" a uma mitologia peculiar e estimulante. E onde, pormenor nada irrelevante, a "mise-en-scène" suscita uma impressão de prazer (prazer do realizador e prazer do espectador) que, apesar de tudo, é rara."

Em entrevista à revista Sábado em 2016, Miguel Guilherme confessou que "no ...Quando Troveja, do Manuel Mozos, eu fazia um bêbado e tornei-me um bêbado. Não fiz de propósito. (...) Bêbado! Não me embebedava todos os dias porque tinha que filmar e não podia filmar assim. Aumentei imenso as minhas saídas nocturnas. (...) [Bebia] vodka! A personagem bateu-me. Não foi doloroso, mas pensava que estava a controlar e não. Apercebi-me disso na noite da estreia. Estava bêbado como nunca me aconteceu. Hoje é raro embebedar-me. Gosto de andar sóbrio. Nunca bebo sozinho."

No terceiro volume do Dicionário do Cinema Português, que compreende os anos de 1989 a 2003, Jorge Leitão Ramos diz que "António, o protagonista, não é um sujeito muito interessante. A mulher de quem gostava trocou-o por outro e o rapaz desceu a rampa dos abismos: álcool, solidão partilhada com uma companheira de morada a quem a asma parece colocar às portas da morte, sobrevivência através de fracos recursos de pequeno-burguês intelectual (traduções & etc.), habitação em estado de pré-desmoronamento) – há fendas, insectos e os caroços das cerejas atiram-se em frente, para um chão que adivinhamos conter todos os restos provisórios de existências que estão numa encruzilhada que pode ser apenas a antecâmara do oblívio. Correm por ali fantasmas de suicídio – logo desde a sequência de abertura – nada vale a pena. 

"Uma personagem assim não tem muito para nos ensinar. Nem para nos distrair. Mas consegue, por artes mágicas de um filme que as invoca muito concretamente, ter alma de herói, porque é mais difícil sobreviver à selva da infelicidade urbana, armadilhada pelos desencontros da vida, que à selva do Vietname. Na realidade e no cinema. Na selva do Vietname há tiros e correrias, adrenalinas, combates de frente ou de través, acção. Na selva da infelicidade, os protagonistas estão tomados pela tragédia da apatia, pelo estado vegetativo de um dia que se segue a outro sem remissão, não fazem coisa alguma e não vêem como sair do buraco. Pior: as mais das vezes, as tentativas que encetam conduzem-nos em sentido contrário, não sem antes terem experimentado o agravo da humilhação que quase sempre vem no contrapeso de tais empresas. Só por milagre as coisas se podem voltar a pôr sobre os carris. 

"É aqui que ...Quando Troveja faz apelo a duas personagens rigorosamente únicas em toda a caminhada do cinema português. Dois adolescentes que de crianças muito infelizes se transformaram numa espécie de duendes da floresta, duas criaturas que contêm em si toda a dor, inocência e esperança do mundo e que vão interferir nas outras vidas para consertar a insustentável desdita que nelas reina. Acontece então a violência e a redenção. Nada de extraordinário, porém. António regressa à superfície do poço para onde se deixara afundar, as cores da realidade perdem as tonalidades de negrume, chuva, noite e deliquescência, vão-se os azuis e os castanhos, ressurgem amarelos e claridade – e é como se uma pitonisa se intrometesse entre nós e o filme e nos começasse a sussurrar coisas bonitas ao ouvido. Os duendes dançam entre luzeiros e regozijo, o filme de Manuel Mozos pode fechar porque a tempestade – aquela tempestade, pelo menos – já passou."

Até Quinta!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Em Dezembro, no Lucky Star:



Olhar o Cinema Português: 1896-2006 (2006) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos

EXPLICAÇÃO BREVE 

Este filme, que aceitei por proposta do Pedro Éfe, foi feito quase exclusivamente com imagens de arquivo provenientes da RTP e da série de oito episódios “História do Cinema Português 1896-1998", produzida por Pedro Éfe. As imagens utilizadas não terão por vezes a qualidade desejada devido à própria origem dos materiais base. 

O filme não pretende ser um olhar fechado e total sobre a História do cinema português, e reconheço existirem diversas lacunas na omissão de certos nomes importantes da cinematografia portuguesa (por exemplo, António Reis e Margarida Cordeiro, António Campos, Paulo Branco). Contudo, espero com este filme tratar de uma forma sintética e honesta a História do cinema português entre 1896 e 2006. 

da folha da Cinemateca que acompanhou a ante-estreia.

Cinema Português ? (1997) de Manuel Mozos



por Manuel Mozos


Querida Laura. Seguramente te estrañará recibir esta carta después de tanto silencio. Pero ocurre que acabo de ver como un enamorado de película te pegaba dos tiros y te enviaba al outro mundo. 
Si. Ya sé que las cosas que ocurren en el cine son mentira. Pero sigo siendo un supersticioso irremediable y quiero comprobar si todavia sigues aqui. En la Tierra.” 

El Sur, Victor Erice. 

Este filme, que faz parte de um projecto mais vasto sobre o cinema feito em Portugal, é uma das hipóteses de abordar essa matéria e não uma proposta conclusiva e definitiva. 

A mim deu-me um enorme prazer fazê-lo e agora apenas desejo que quem o vir sinta alguma coisa. Melhor se agradar, mas que pelo menos coloque questões e suscite interesse. Pelos filmes, pelas pessoas que os fazem e pelo Cinema em geral. 

Se isso suceder ficarei muito mais satisfeito com este trabalho. 

Quero agradecer a disponibilidade de João Bénard da Costa para colaborar no filme. 

A todos que acedendo a facilitar os filmes tornaram este possível e também à Rosa Filmes, e à equipa. Mas em particular ao Vítor Alves. E também ao Nuno Carvalho, à Paula de Oliveira e ao Amândio Coroado. 

And also to the Wild Bunch 
And Pinóquio and the Princess. 
Um Bom Batal e Feliz Ano Novo. 

Muito obrigado. 

da folha da Cinemateca que acompanhou a ante-estreia.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

154ª sessão: dia 28 de Novembro (Quinta-Feira), às 21h30


Continuando a nossa primeira parte deste ciclo, já na última projecção do mês, voltamos à história do cinema português vista por Manuel Mozos, desta feita com Cinema Português... ?, montagem de materiais intercalada com uma conversa com João Bénard da Costa, e Olhar o Cinema Português: 1896-2006, visão de conjunto constituída de material da série de televisão "Síntese Histórica do Cinema Português" (de que já vimos o episódio de Mozos, Tristes Anos: 1945-1960). É esta a nossa próxima sessão dupla no auditório da Casa do Professor.

Na sinopse da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema de Olhar o Cinema Português: 1896-2006, lê-se que a "nova incursão de Manuel Mozos sobre a história do cinema português, Olhar o Cinema Português 1896-2006 assume uma perspectiva didáctica propondo um panorama de 110 anos de história, "uma síntese" que parte quase exclusivamente de material de arquivo proveniente da série de oito episódios "História do Cinema Português", produzida por Pedro Éfe em 1998, na qual Mozos realizou o episódio Os Tristes Anos focando os anos 1945-1960. Amplamente composto por imagens dos filmes portugueses que constituem essa história, o documentário de Mozos inclui também o discurso directo de alguns dos seus protagonistas. "Tenta-se relatá-la cronologicamente e, apesar de certas lacunas, de um modo acessível, conciso e didáctico"."

Na conversa entre Mozos e Miguel Cipriano que nos tem guiado por este ciclo, o realizador diz que a génese de Cinema Português... ? foi pensada no rescaldo de Lisboa no Cinema - Um Ponto de Vista e que "(...) um bocado devido a esse filme, e juntando a umas ideias que eu tinha de há uns anos atrás, eu propus à “Rosa Filmes” um outro projecto, que originalmente seriam quatro filmes sobre o cinema português. A minha ideia era cruzar oito áreas, duas a duas, para cada filme. E teria a ver com actores, realização, técnicos, exibição, distribuição, laboratório, crítica, ensaio... Eu não queria fazer uma coisa cronológica, mas sim cruzada, precisamente, em que de uns motivos passariam para os outros.

"Na altura o Instituto não tinha concursos para séries, mas como em 1996 se comemoravam os 100 anos do Cinema, foi criada uma comissão para a celebração dessa data, e nós apresentámos o projecto a essa comissão. Havia pelo menos mais dois projectos a concurso. O nosso foi preferido, só que entretanto a verba que a comissão teve não era tão avultada como eles estavam à espera, e o que eles sugeriram foi apresentar o projecto ao Instituto de Cinema, mas um a um. Nessas circunstâncias pensei que não valia a pena, e comecei a trabalhar no sentido de ser apenas um filme. Aí decidi ficar só com uma pessoa, e optei pelo Bénard da Costa, para tentar fazer uma coisa sobre o cinema português. Falei com o Sapinho e com o Luís, que foram sempre muito correctos comigo, e falei com o João Bénard da Costa, que aceitou."

Sobre o seu entrevistado, João Bénard da Costa, disse que "(...) não queria entrevistá-lo enquanto director da Cinemateca, mas sim como uma pessoa que conhecia bem o cinema português, então propus que ele escolhesse um sítio onde pudéssemos filmar e ficar lá durante um dia a falar. Ele propôs a casa dele e, portanto, a rodagem decorreu apenas durante esse dia. Começámos por volta das dez horas da manhã e estivemos a filmar em contínuo praticamente até às sete da tarde. A primeira parte filmámos no jardim da casa, a segunda parte durante o almoço que ele nos ofereceu, e a terceira parte numa sala, que acabámos por não utilizar. O que ficou combinado com a “Rosa Filmes”, e que vinha já do Lisboa no Cinema, era o trabalho ser feito sobretudo na montagem. Por um lado, o acesso aos filmes tinha que ser possível, por outro lado devia poder experimentar a construção do filme à vontade."

Ainda sobre Cinema Português, Luís Miguel Oliveira escreveu que "o filme de Manuel Mozos, reflectindo sobre a existência de algo que permita validar e dar um sentido à expressão "cinema português", coloca-se logo de início sob o signo da provocação. As primeiras palavras que ouvimos sobre o nosso cinema (num excerto do Acto da Primavera de Manoel de Oliveira) são "que frete!". Depois, entra a canção de Johnny Guitar, como se se estivesse de facto a sair do universo estrito do cinema português e, em face de semelhante "frete", a procurar outras paragens, eventualmente mais compensadoras. Percebemos, de seguida, que essa canção serve para preparar a entrada em "cena" de João Bénard da Costa, momento em que, assim incorporados os mais expandidos preconceitos contra o cinema português (as primeiras declarações de João Bénard da Costa são sobre eles, num "raccord" com a frase inicial), a reflexão pode, enfim, começar. Uma reflexão que nos conduz menos a uma abordagem liminarmente histórica do que ao estabelecimento de relações, por vezes subterrâneas, entre diversos filmes e diversas épocas do cinema português, tentando encontrar os padrões temáticos e formais que permitam retirar ao título do filme as reticências e o ponto de interrogação. Aliás, se se começa, como vimos, em "trompe l'oeil", a relação que o filme estabelece com o seu título (Cinema Português...? Diálogos com João Bénard da Costa) permite o prolongamento desse jogo. Porque, afinal, quem dialoga com João Bénard da Costa é menos Manuel Mozos do que o próprio cinema português, através das imagens que o cineasta articula com o discurso oral. A relação é mesmo de articulação, nunca de ilustração, e essas imagens são expostas segundo um dispositivo "godardiano" (este é verdadeiramente um filme pós-Histoire(s) du Cinéma), reflector de uma crença na "transparência" das imagens: ou seja, a ideia de que o sentido de uma imagem "perfura" a sua superfície, e que esse fundo se manifesta, em plena evidência, quando a imagem é posta em diálogo com outras imagens. Com este filme, Manuel Mozos dá o primeiro passo para uma outra história do cinema português."

Até Quinta-Feira!

José Cardoso Pires - Diário de Bordo (1997) de Manuel Mozos



por António Tabucchi

O MEU AMIGO ZÉ 

Contei já isto algures: descobri Portugal graças a um livro. Aliás, um poema. Corria o ano de 1964, eu tinha 21 anos, era estudante em Paris (pelo menos era o que eu dizia aos meus pais) e um dia, a caminho da gare de Lyon para regressar a Itália, comprei num «bouquiniste» um livrinho em francês com um título bizarro, Bureau de Tabac, de um autor para mim desconhecido, um tal Fernando Pessoa. A sua leitura, feita no comboio, deu-me a ideia de estudar o português. É assim que na minha vida começa Portugal. 

Portugal, português. Conceitos nebulosos e aproximativos até geograficamente, para o jovem ignorante que eu era. Mas não só para mim, é bom que se diga. Poucos falavam de Portugal, «cá fora», nessa época. Nem a imprensa, nem a televisão, nem as pessoas. O que as pessoas, «cá fora», sabiam mediamente de Portugal resumia-se no Eusébio (aliás extraordinário jogador) numa abstractíssima Lisboa, obviamente «cheia de encanto e beleza» do fado da Amália (aliás extraordinária fadista) e no milagre de Fátima (cuja revelação do terceiro segredo aliás prometia coisas extraordinárias para a Humanidade). E pouco mais. Portugal era então um país longínquo e misterioso que tinha virado costas à Europa e do qual a Europa se tinha esquecido: a sua popularidade «cá fora», sem exagero, fazia concorrência à dos Principados de Liechtenstein e de Andorra. 

Um livro, dizia eu, levou-me a Portugal. Mas se um livro pode conduzir até um país, não chega para que nele se fique, ou para que ele fique dentro de nós. Para que isso aconteça são necessárias as pessoas. E uma dessas pessoas foi José Cardoso Pires. 

Conheci Cardoso Pires há mais de 30 anos, e desde logo ficámos amigos: eu um jovem curioso e «verde», como pode sê-lo um rapaz de 22 anos com vagas veleidades literárias, ele um escritor já reconhecido e estimado, no pleno domínio do seu talento. Como é que uma coisa assim pode acontecer? Porque é que o Cardoso Pires gostou de mim, não saberia bem dizê-lo. Pelo que me diz respeito poderia afirmar facilmente que gostei dele porque tinha lido O Anjo Ancorado, O Hóspede de Job e, ainda em provas (casualidade de que guardarei sempre uma lembrança especial), em casa do Alexandre O'Neill – outra pessoa daquelas graças às quais um país pode ficar dentro de nós –, O Delfim; e quem, nos seus verdes anos, teve o privilégio de ler livros como estes e simultaneamente conhecer o seu autor, não pode não gostar dele. 

O que seria a explicação mais fácil e não verdadeira. Porque nem sempre um escritor corresponde aos seus livros: aliás, raras vezes corresponde. Melhor: normalmente os escritores são criaturas inferiores aos seus livros, chegando a ser decepcionantes. Eu que o diga. José Cardoso Pires, pelo contrário, era igual aos seus livros, tinha a mesma qualidade: era excelente como o que escrevia: chapado. Cardoso Pires era os seus livros. E foi por isso que aquela simpatia imediata e espontânea que, ao conhecê-lo, senti por ele, se transformou gradualmente em amizade. Uma amizade que cresceu à medida que os anos passavam e que eu me afastava da idade em que a diferença de idade com uma pessoa bastante mais velha do que nós já não é a mesma diferença de idade do que antes, porque se a mesma pode ser significativa entre um jovem de 20 anos e um homem de 40, um homem de 30 e outro de 50 podem ser perfeitamente coetâneos. 

A amizade não se deve contar, e aliás não é contável. Não só porque pertence à nossa esfera mais íntima, que temos o dever de proteger, mas sobretudo porque, para a contarmos, precisaríamos de acontecimentos e episódios, e isso banaliza a amizade, amarra-a ao plano anedótico do memorialismo de café, do «lembras-te disto, lembras-te daquilo». O que não interessa nada. 

Não vou contar a minha amizade com o Cardoso Pires. Só direi que era daquelas amizades feitas de entendimentos recíprocos, de cumplicidade, de juízos de valor sobre a realidade, as pessoas, as ideias, as ideologias, a literatura, em suma, sobre a vida. «Eh pá, este livro tem imensa graça!». Ou então: «Eh pá, esta polícia é mesmo uma merda!»; e ainda: «Eh pá, este gajo é mesmo um sacana!». E pronto: não era necessário adiantar mais. 

Enfim, era uma amizade que fazia com que, chegando à minha casa de Lisboa, depois de uma ausência, longa ou curta que fosse, eu depositasse a mala na entrada e mesmo sem abrir as portadas das janelas, a primeira coisa era chegar ao telefone no outro lado da sala para chamar o Cardoso Pires. A Maria José conhecia de cor o ritual e ocupava-se ela de arejar os quartos (afinal contei um episódio que banaliza a amizade). 


O meu amigo Zé era firme. Era obstinado. Era pertinaz. Era fiel às amizades, e sobretudo a si próprio. Se acreditava numa coisa ía até ao fim. Deixar-se-ia matar mas nada ou ninguém o obrigaria a renegar a coisa em que acreditava. Não acreditava em muita coisa, mas aquilo em que acreditava era bom. Gostava das pessoas não pelo que mostravam ser, mas pelo que eram. Era generoso. Era fixe. Era sério. Era malicioso. Era alegre. Era vital. Era melancólico. Sabia indignar-se. Tinha bom olfacto. E quando uma coisa lhe cheirava mal, acertava. Tinha monomanias, e se por acaso embirrava com alguma coisa idiota ou com algum idiota era capaz de passar a noite inteira a falar furioso naquilo: furioso sobretudo consigo próprio pelo facto que tal coisa idiota e tal idiota lhe tomassem tanto tempo, e quanto mais ficava furioso tanto mais falava naquilo e ficava furioso consigo próprio. Era modesto, como são os grandes escritores: nunca fez propaganda aos seus livros. Conhecia a auto-ironia e praticava-a. Trabalhava como um doido. Podia ficar meses sem escrever, mas era capaz de escrever durante um dia inteiro, de manhã até à noite, sem parar. Às vezes passava um dia inteiro a lutar com uma página só: porque era exigente. Era exigente sobretudo consigo próprio. Era um indisciplinado com uma enorme disciplina. Não gostava de salões. Evitava as cerimónias. Detestava «o social». Tinha uma mirada infalível: uma olhadela, e percebia logo. Gostava de conversa popular. Tinha um léxico pessoal recorrente, cardosopiresiano, para definir coisas e pessoas: por exemplo, sei lá, «galdério», «fresco» «perdulário». Palavras praticamente intraduzíveis para outra língua. 

Os misticismos não eram com ele. Os pés bem plantados no chão e agarrado à Realidade: e no entanto a Realidade, quando a escrevia para a compreender, ganhava na página um estatuto quase metafisico, porque assumia as formas de uma geometria impossível de se medir. Porque a Realidade possui uns perímetros que a literatura consegue individuar, os volumes menos. É uma geometria misteriosa. Cardoso Pires sabia-o, e todavia procurava os volumes. Toda a sua escrita é uma espécie de roer: roía as aparências para chegar à substância e acabava por verificar que muitas vezes as aparências são a substância. E isto dava-lhe melancolia, mas não resignação: continuava a roer. Não é por acaso que gostava de Antonioni, e sobretudo de Blow-up, e sobretudo daquele final quando o protagonista joga ténis sem a bola de ténis. Muitas vezes percebia por iluminações, por epifanias do quotidiano, como Joyce ou o Pessoa da Tabacaria. E então a sua escrita enfiava-se na primeira frincha que se lhe abrisse no betão da Realidade, como um espeleólogo que se esgueira pela fenda de uma rocha desconhecida. Para fazer isso é preciso muita coragem. E são poucos os escritores que souberam fazê-lo. Era assim o meu amigo Zé. 


Já sei o que me vai acontecer da próxima vez que chegar a Lisboa, e sinto um arrepio nas costas. Vou abrir a porta, vou pousar a mala no chão, vou acender as luzes sem abrir as portadas das janelas, vou dar uns passos e vou olhar para o telefone como quem está perdido e procura um sinal de reconhecimento. Não vai ser fácil abdicar de um ritual já antigo e não voltar a ouvir a frase do costume: «Porra, pá, até que enfim!» 

in «Jornal de Letras», 4 de Novembro de 1998, p. 13.

Lisboa no Cinema - Um Ponto de Vista (1994) de Manuel Mozos



por João Palhares

Lisboa no Cinema – Um Ponto de Vista é o primeiro documentário realizado por Manuel Mozos e o seu terceiro filme, depois de Um Passo, Outro Passo e Depois... e Xavier, que até 1994 tinha sido a única coisa em que Mozos se concentrara e trabalhara, tirando um ou dois trabalhos de montagem para outros realizadores. “Não estava com vontade de voltar a filmar enquanto não acabasse o Xavier,” disse ele a Miguel Cipriano em 2009. Feito a propósito da Lisboa – Capital Europeia da Cultura, o documentário reúne imagens de vários filmes portugueses (do mudo ao sonoro) ambientados em Lisboa, seja como promessa cumprida ou gorada para quem chega da terra (Maria Papoila, Verdes Anos) ou labirinto cerrado e existencial para quem se enterra nela (O Cerco, O Fio do Horizonte), como palco de enganos inocentes (O Pai Tirano, O Leão da Estrela) ou funestos (Dina e Django, Os Cornos de Cronos), cidade branca (Lisboa, Crónica Anedótica, A Revolução de Maio) ou cidade negra (Duma Vez Por Todas, O Sangue), etc, etc. 

Não nos são dados os exemplos mais óbvios (A Canção de Lisboa à cabeça, bem como O Pátio das Cantigas, apesar de ser mencionado por José Fonseca e Costa, ou a obra de João César Monteiro), e quem estiver à espera de um levantamento geográfico exaustivo das ruas e zonas em que se filmaram, de conversas com agentes políticos da cidade sobre rodagens e protocolos institucionais, pode esperar sentado. Em Lisboa no Cinema, a cidade é a da ficção. Os próprios testemunhos são divididos equitativamente com um plano para cada pessoa, como pilares, e mais para produzir novas paisagens temáticas (a “cidadezinha” de Luís Alvarães, as fachadas árabes de João Bénard da Costa, os labirintos de Fernando Lopes, a marginalidade de António da Cunha Telles). Assim, os detectives de Raul Solnado (O Bobo) e Claude Brasseur (O Fio do Horizonte) podem estar a seguir as pistas de Maria Cabral (O Cerco) ou Florbela Queirós e Lídia Franco (Canção da Saudade), as noites de Luís Lucas, Teresa Madruga e Vladimiro Franklin (Do Outro Lado do Espelho: Atlântida), Maria Santiago e Luís Lucas (Dina e Django), Maria de Medeiros e Rui Mendes (Paraíso Perdido),  Pedro Hestnes e Inês de Medeiros (O Sangue) e Pedro Ayres Magalhães e Vicky de Almeida (Duma Vez por Todas) podem acontecer simultaneamente, há carros e barcos que se cruzam, destinos paralelos, conversas intercaladas, músicas sobrepostas, estranhos que enfim se passam a conhecer. 

Se não fosse o loop e o scratch com a palavra “Lisboa” no final, de um disco riscado salvo de uma sala poeirenta e esquecida, só os anos 90 e a contemporaneidade à explosão do hip-hop nos permitiriam fazer a analogia, mas é muito provável que nunca ninguém tenha apelidado Manuel Mozos de grande DJ. E, no entanto, basta vê-lo em Tóbis Portuguesa (encomenda de Pedro Éfe e da RTP que veremos mais para a frente) a manobrar película com as mãos, para trás e para a frente, a fazer marcações para as próximas analogias, associações e sacrilégios. Preto, branco. Maio, Abril. Vasco Paulo Santana Rocha, Joaquim Pedro Leitão Costa. "I said a hip hop the hippie the hippie to the hip hip hop and you don't stop". Pois bem, faça-se isso agora. 

“Então, Sr. Raúl, Lisboa está na mesma?”

terça-feira, 19 de novembro de 2019

153ª sessão: dia 21 de Novembro (Quinta-Feira), às 21h30


Como vimos na sessão da semana passada, Manuel Mozos tem vindo a contrabalançar a sua obra de ficção sobretudo com filmes documentais sobre o cinema português ou grandes artistas portugueses (mas não só). Lisboa no Cinema - Um Ponto de Vista (1994) e José Cardoso Pires - Diário de Bordo (1998), que farão juntos a nossa próxima sessão dupla na Casa do Professor, permitir-nos-ão ver essas duas vertentes do seu trabalho documental, dando-nos também pistas sobre o seu trabalho ficcional. Porque a Lisboa do cinema é também a cidade de Xavier.

Na sua crítica de 2010 a Ruínas, Mário Jorge Torres, que já conhecemos desde que nos falou sobre William Faulkner e Douglas Sirk, escreveu que "Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, Xavier (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como ...Quando Troveja (1999) e o recente descentramento de 4 Copas (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" (José Cardoso Pires - Diário de Bordo, 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico Cinema Português? (1997) ou o inventivo Censura: Alguns Cortes (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo."

Na preciosa entrevista que concedeu a Miguel Cipriano em 2009, Mozos disse que "(...) em 1994, a “Rosa Filmes”, que tinha à frente o Joaquim Sapinho e o Luís Correia, propôs-me a realização de um documentário cujo tema era Lisboa, por ocasião do Lisboa, Capital Europeia da Cultura. Acabei por aceitar e, apesar de ser uma proposta vinda de fora, eu tinha carta branca para fazer o que quisesse. Como não havia uma verba muito grande, e eu conhecia razoavelmente bem o cinema português, achei que seria interessante fazer uma coisa utilizando materiais de arquivo e fazendo entrevistas a realizadores, técnicos e produtores que eu achava que tinham a ver com Lisboa. Obviamente tive que mostrar ao Joaquim e ao Luís o que queria fazer; eles acharam bem e arrancámos com o filme."

"Tinha uma estrutura pequena, o filme era feito em video, com duas pessoas na câmara, uma no som, uma que tratava da produção, e algumas comigo na montagem para irmos fazendo a pesquisa daquilo que queriamos utilizar dos vários filmes."

Já no catálogo do Panorama - Mostra do Documentário Português de 2008 (extinto desde 2015), e sobre o seu processo de trabalho, o realizador assume que "(...) gosto de ter as coisas bem preparadas. Gosto de ter muito tempo para preparar uma coisa e depois poder então improvisar sobre isso. E ser possível eu próprio ficar surpreendido com o que me está a ser dado. De repente ficar arrebatado por uma coisa de que não estou à espera vinda do actor, ou de repente haver uma luz magnífica, ou surgir alguém no écran que eu não contava. Agora, pelo menos nas ficções, temos o video assist, e estamos ali um bocado a controlar as coisas. Mas eu muitas vezes não o ligo. Gosto muito mais de estar a ver. Até porque, como muitas vezes acabo por trabalhar na montagem, acho divertido reparar em coisas que não tinha notado.

"No filme sobre o António Pinho Vargas as coisas estavam bastante marcadas porque ia fazer uma homenagem à obra dele. E então tinha que respeitar as datas dos concertos, e não podia fugir às peças, tinha que respeitar as datas dos concertos. No caso do filme sobre o Cardoso Pires passou-se um bocado o oposto. Primeiro porque ele já estava bastante doente e portanto havia dias em que a equipa estava toda preparada, encontrávamo-nos com ele, e a ele depois não lhe apetecia filmar. A nível de produção foi complicado porque uma coisa que estava para ser feita em 3 semanas acabou por se arrastar por mais de 3 meses de filmagens. Isso levou a que, por exemplo, a fotografia do filme fosse feita entre 5 pessoas. Mas ganhava-se sempre qualquer coisa com isto. Ganhávamos tempo para pensar as coisas, e pude ter luzes diferentes do dia (embora não quisesse enfatizar demasiado isso). Se fosse naquelas tais 3 semanas em que estava previsto, era Outono e a luz até não estava má, mas assim ganhei nuances.

"E o próprio Cardoso Pires estava diferente, ao longo deste tempo. De qualquer forma houve essa liberdade, de não termos que filmar só porque estava previsto, fizemos as coisas sem muita pressão, e as coisas não ficaram excessivamente esquematizadas, e programadas."

Até Quinta!

sábado, 16 de novembro de 2019

Os Tristes Anos: 1945-1960 (1997) de Manuel Mozos



pela Acetato Produção de Filmes

Este projecto, integrado num projecto mais vasto sobre a HISTÓRIA DO CINEMA PORTUGUÊS, abordará o período mais crítico e talvez o menos interessante pela qualidade dos filmes produzidos, mas sem o qual dificilmente se poderá entender o que viria a ser o cinema português desde os anos 60, o chamado CINEMA NOVO e o que daí adveio. 

Após a chamada ÉPOCA DE OURO do cinema português, houve várias tentativas de uma produção continuada, mas tudo redundou em fracasso por se insistir em copiar os conteúdos dos modelos da época precedente até à estafa e esgotamento. 

Assim, nem os esforços para criar espaços com melhores meios técnicos, aparecendo mais estúdios, laboratórios e produtoras, nem esforços criativos dos homens que haviam feito a glória da década anterior, como Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro ou Brum do Canto, agora juntos a uma nova geração constituída, em grande parte, por antigos assistentes de realização, conseguiram que o Cinema Português se consolidasse quer em termos de público, quer em termos artísticos e de qualidade, acabando mesmo por se chegar a 1955, sem qualquer estreia por nada se ter produzido. E a esse ano se chamou o ANO ZERO DO CINEMA PORTUGUÊS. 

Depois, embora lentamente, outros ventos sopraram. O aparecimento da RTP, o trabalho dos Cineclubes, as bolsas do SNI e da Gulbenkian, a aposta numa gente nova que cortava radicalmente com os padrões vigentes, algo poderia mudar. Algo mudou. 

A intenção deste projecto é tornar-se um documentário de montagem que conjugará excertos de filmes com depoimentos de pessoas ligadas ao cinema e também à História do país. Não seguirá propriamente uma cronologia, mas sim uma construção por segmentos que se entrecruzem, conseguindo que diferentes aspectos, como a realização, os actores e as estrelas, os meios técnicos, a situação sócio-política, se tornem claros e abram alguma porta a compreensão do nosso Cinema.

da sinopse oficial do documentário

Um Passo, Outro Passo e Depois... (1990) de Manuel Mozos



por Jorge Leitão Ramos

Nada de muito essencial? Nada, a não ser a revelação de um cineasta. E um excelente actor com um personagem dentro (Canto e Castro), a criação de uma ambiência, a vontade de contar uma história materializada num argumento sem personagens excrescentes (nem demasiada «conversa fiada»). Claro, Um Passo, Outro Passo e Depois... é filme com marcas de uma primeira obra – e é bom que assim seja. De uma certa ingenuidade narrativa (é pouco credível a «cumplicidade» latente entre o contínuo de liceu e o grupo de alunos, nocturnos e mansos marginais, mesmo atendendo a que aquele dera o primeiro passo de saída do trilho da ordem ao facultar uma chave do liceu a uma rapariga que lhe terá... sugerido o quê?), a algumas piscadelas de olho (Alberto Seixas Santos num professor com dores de cabeça...), vários são os sinais de um primeiro momento que, todavia, se não detecta lá onde é mais habitual identificá-lo, pela negativa: a direcção de actores e a fluência narrativa, a manipulação dos tempos. 

in «Dicionário do Cinema Português – 1989-2003» Editorial Caminho, Janeiro de 2006, pp. 467-468.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

152ª sessão: dia 14 de Novembro (Quinta-Feira), às 21h30


Depois de Xavier, segunda longa-metragem de Manuel Mozos, recordamos o início de carreira do realizador, na televisão. Com Um Passo, Outro Passo e Depois... (1989), da série de quatro episódios "Corações Periféricos", e Tristes Anos - 1945-1960 (1997), da "Síntese Histórica do Cinema Português". Juntos, estes dois filmes de uma hora farão a nossa próxima sessão.

Na entrevista a Miguel Cipriano que tem o subtítulo de "Isto é menos cinzento do que parece", e quando fala de Um Passo, Outro Passo e Depois..., Mozos afirma que "(...) o filme partia de uma premissa do Edgar Pêra: passava-se num liceu e era a história de um contínuo um bocado rezingão. A partir desta premissa eu desenvolvi um argumento, primeiro com o Jorge Silva Melo, depois mais tarde também com a Manuela Viegas. Como tinha gostado da relação de trabalho que tivemos os três, no Xavier, que partiu de uma ideia minha, comecei, da mesma maneira, por trabalhar com o Jorge Silva Melo, e depois integrando a Manuela Viegas. Agora relativamente à própria concepção do Passo: numa primeira fase eu ia tendo ideias a partir de um esboço daquilo que se queria fazer – uma história num bairro periférico sobre um contínuo. Começámos a dar forma a esta personagem, que levava uma vida rígida e austera, e, num espaço de 24 horas, um percalço o ia pôr numa situação um bocado caótica para os seus moldes de vida. Fomos trabalhando esta ideia, e à medida que nos aproximavamos da hipótese de entrar em produção, haviam coisas que iam sendo alteradas. Durante a repérage a questão do liceu foi importante: inicialmente eu não queria um liceu moderno, queria algo que estivesse um bocadinho mais de acordo com a personagem. Começámos por procurá-los em Lisboa. Alguns eu já conhecia, e havia dois ou três que me agradavam, mas com a equipa de produção víamos sempre algumas dificuldades em esquematizar um mapa. Tínhamos poucos dias de rodagem e, como era o meu primeiro filme, havia algumas dúvidas em relação à minha capacidade de filmar dentro do plano de trabalho.

"A certa altura a pessoa que estava à frente da produção sugeriu um liceu de Oeiras que eu não conhecia. Começámos então a centrar-nos naquela zona, e fomos descobrindo os outros décors. Portanto, foram-se transformando certas ideias que estavam mais ligadas a Lisboa. Na cidade as deslocações seriam mais complicadas por causa do trânsito e, realmente, termos encontrado aquela zona e os espaços que pretendiamos, alterou algumas coisas do próprio argumento. Ao longo do processo, há coisas que vamos mudando, mas no caso deste filme não houve grandes alterações na rodagem. Na montagem houve coisas que sairam por questões de tempo, e porque eu e a Manuela, que montou o filme comigo, não achávamos que fizessem falta. Depois o facto de ter o apoio para o Xavier deu-me um grande contentamento, porque na época não era muito normal quem estava a começar poder fazer outro filme dois anos depois."

Num texto publicado no Jornal dos Encontros de 2011, Luís Miguel Oliveira escreveu que no "início da carreira de Manuel Mozos, Um Passo, Outro Passo e Depois… tornou-se uma obra praticamente invisível. Porque, depois da perda dos materiais originais, só pode ser visto numa versão transcrita para vídeo, com péssima imagem (sem definição, cheia de “flou”, com as cores alteradas e deterioradas) e som em não muito melhor esta- do, que não é Um Passo, Outro Passo e Depois…. Apenas, infelizmente, a sua ruína. 

"E que podemos adivinhar a partir deste pequeno destroço sobrevivente? Em primeiro lugar, uma gritante contiguidade entre Um Passo… e o Xavier que pouco depois começaria a ser rodado. É verdade que alguns actores (Pedro Hestnes, Sandra Faleiro, Cristina Carvalhal) passaram de um filme para o outro, e que esse pormenor influencia a sensação de proximidade. Mas esse pormenor é apenas isso, um pormenor. Porque o tipo de personagens é bastante semelhante: jovens mais ou menos perdidos em paisagens semi-urbanas, ou na fronteira entre o urbano e o rural (a julgar pelo genérico final, o filme foi rodado na zona de Oeiras e Paço de Arcos). Os lugares são também bastante semelhantes: escolas, cafés, cenários duma espécie de “urbanismo incompleto” (ver a sequência nocturna, nas obras). O modo narrativo, mesmo que aqui se aposte numa linearidade que não seria a de Xavier, contém já alguns sinais do que Mozos depois desenvolveria com outro fôlego e outra amplitude: repare-se nas elipses, nos saltos espaciais e temporais, nos espaços em branco que ficam por preencher nas relações entre as personagens, espaços esses que o decorrer do filme se encarrega de esclarecer (ou não)."

Na mesma entrevista a Cipriano, e sobre o período dos documentários de meados dos anos 90, o realizador disse que "(...) convidaram-me para fazer um filme sobre o José Cardoso Pires, que partiu de uma ideia deles de fazer alguns documentários sobre autores e artistas portugueses. Foi um processo que se arrastou em termos de rodagem, muito porque o Cardoso Pires já estava debilitado, mas acabou por se fazer, e o que mais me alegrou foi que ele viu e ficou bastante contente com o resultado. Mas são projectos um bocadinho diferentes em termos de trabalho. Depois convidaram-me para fazer um episódio de uma série sobre a história do cinema português, dando-me à escolha o período que eu queria. A ideia era fazer períodos de quinze anos. Havia dois que já estavam tomados por outros colegas, mas acabei por ficar com aquilo que realmente me interessava, que era o período entre os anos 40 e 60, que era uma época mais obscura."

Até Quinta-Feira!

Xavier (1992-2003) de Manuel Mozos



por João Palhares

Can you imagine being lit up by some hot shells? 
Imagine being tossed around and put in jail, 
Imagine life when you can't get from under.” 

Snoop Dogg, in «Imagine», última faixa de The Blue Carpet Treatment (2006).

Talvez não se tenha dado nem se tenha pensado o suficiente num lugar para Xavier no cinema português. Certamente devido ao seu tempo de gestação: é um filme de 1992 a estrear em 2003. Não devia importar, não devia querer dizer nada, isso tudo. Podia-se pensar se um filme que não estreia na “sua” década não poderia influenciar o resto, se não podia pairar nas consciências pela sua não-existência de dez anos, se não resolvia um conflito de gerações no cinema, se não confirmava que era possível um verdadeiro trabalho de actores por estes lados, se não impunha Pedro Hestnes como personificação suprema de uma geração ou como mito fundador de uma juventude revoltada e sedenta de sangue, quando o sangue é a própria vida. Mas faz-se pouco disso e por muitas razões, sendo a principal a sua quase total invisibilidade.

Manuel Mozos diz preferir as "pequenas coisas" ao "que é importante" ou às grandes histórias, porque "isso está salvaguardado"[1], e Xavier transformou-se numa dessas "pequenas coisas" que se têm de defender às vezes em detrimento do que supostamente importa. Essa sua preferência está também patente nas "ruínas" que desencantou no documentário de 2009 do mesmo nome, no período insólito que seleccionou para a série que Pedro Éfe produziu para a RTP, "Síntese Histórica do Cinema Português", nada mais nada menos do que a década e meia de que faz parte o chamado "ano zero" do cinema português, em que não se produziu filme algum (Mozos realizou o quarto episódio dessa série, Tristes Anos - 1945-1960). Nas imagens que guardou de Lisboa no seu Ponto de Vista de 1994 sobre a cidade no cinema. E no contínuo Nogueira, no Luís, no António com dores de corno da Rute e do Pedro, na rebelde Diana que tenta ajudar o pai Gabriel, separando Madalena do Miguel.

Em Xavier talvez não hajam grandes actos heróicos, pelo menos na acepção que lhes costumamos dar, mas normalmente é a vida que transforma as pessoas em heróis ou heroínas, e é a vida que vai comandando as acções de Hipólito (José Meireles), Rosa (Cristina Carvalhal), Luísa (Sandra Faleiro), a irmã Luz (Isabel de Castro) e Xavier. O que é pagar as contas e as multas, andar com uma mãe muda e traumatizada de um hospício para outro, de um lar para outro, pagar isso, pagar para trabalhar, roubar, discutir com os namorados, perder o emprego, mas também fumar, "falar com os índios", beber, chamar maricas aos amigos, saltar e dar golpes de karaté num parque, combater a tristeza dos dias com o amparo da noite.

Xavier retrata uma Lisboa mais negra do que branca, um passado e uma infância que não acabam no seu tempo e que regressam ao presente da personagem principal do filme. Retrata uma sede tocante de existir, quase como acto de resistência. Contra tudo, consciência, remorsos, família, amigos, amores, negócios, estratagemas, dinheiro. Das conversas que estruturam uma amizade, em telhados da capital, de quanto ela respira e de quanto o filme a documenta. Das viagens de uma vida, dos dias e meses que nos transformam, as bases e consequências dum ponto de viragem que poucas voltas dá, mas que deu quantas lhe foi possível. Os ponteiros não param e os dias vão passando, cem minutos de convivência e amor em contra-relógio, em contra-vivência. Por ser difícil. Mas por valer a pena exactamente por isso. “There was a naughty boy. A naughty boy was he. He could not stay home, he could not quiet be”. Havia Xavier. E Xavier é o quanto se paga por ser assim, que não é uma escolha. Por não tentar a saída fácil e tentar curar as feridas irreparáveis, tentar abordar as pessoas em acto de desespero calmo. Em surdina. A melancolia disso tudo...

Ouvem-se os versos do Snoop Dogg em epígrafe e vêm à cabeça os passeios do Pedro Hestnes pela capital e do negrume disso, sem se perceber bem porquê. Primeiro, pensa-se que se o cinema é como a música, é porque ambos, música e filme, estão na mesma tonalidade, mas isso talvez seja a reacção emotiva, irracional. Depois, que é uma questão de luta, do tal acto de desespero, que é uma questão de ser do bairro e de subir como se pode, a muito custo, de que se tem a arrogância de pensar que, sim, que se compreende isso, quando não se tem a mais pequena ideia. “Imagine life when you can't get from under”.. Mas também pode não ser isso e então viramo-nos para o regresso nostálgico às raízes. Que andamos todos uma vida inteira a tentar regressar a casa ou à infância, a herança narrativa mais antiga de todas, mas talvez a que mais coisas tenha que se lhe diga, por estar muito além da narrativa. Muito que se lhe diga. “We may be through with the past, but the past is never through with us”. “Prender” no tempo, com planos ou notas, aquele momento (ou momentos) chave em que uma pessoa se apercebe de si, do “eu”, com todas as lições e arrependimentos documentados e se torna adulta. Lições sinceras e que têm de custar a aprender. A todos, sem excepção.

Voltando ao cinema e ao labor de Manuel Mozos, podemo-nos concentrar no despontar do seu talento em três pontos essenciais:

1. O amor aos actores e ao que eles podem dar. A Pedro Hestnes talvez seja escusado tecer elogios, que nunca bastariam. Vêem-se actores e actrizes que se reconhecem de novelas e doutros filmes e a luz é diferente, não parecem os mesmos. Fora dos teatros, nunca se viu ou ouviu Sandra Faleiro como aqui se vê e ouve (porque não lhe é dada a oportunidade). É tocante e revelador. Realização é um trabalho de espera e paciência, de fé e de resistência.

2. A cena terrível da morte da mãe que vemos “só” nos olhos e na reacção de Xavier e a montagem elíptica de toda essa cena. Prova de que há um realizador que pratica um jogo justo e limpo com o espectador, sem ilusões ou aparatos que ofusquem o pensamento e a experiência de ver um filme, que confia e respeita a nossa inteligência. A tal coisa que nos faz duvidar da nossa invisibilidade e do nosso conforto no processo.

3. A montagem. Abrir os horizontes e as possibilidades narrativas de um filme partido e não terminado com uma montagem disciplinada e cheia de buracos de Lubitsch, elipses violentas, particularmente com a decisão de ocultar o destino de Hipólito na montagem final, transformando-o no fiador trágico da redenção de Xavier. Enfim, como é que é possível fazer um grande mosaico lisboeta cheio de implicações pessoais entre as personagens com uns tostões contados? A resposta é Xavier.

[1] in Times Are Changing Not Me (Mário Fernandes, José Oliveira, Marta Ramos, 2012)

terça-feira, 5 de novembro de 2019

151ª sessão: dia 7 de Novembro (Quinta-Feira), às 21h30


Os nossos próximos meses vão ser dedicados a uma das figuras mais fascinantes e singulares das últimas décadas do cinema português: Manuel Mozos. Produto da escola Superior de Teatro e Cinema da Lisboa dos anos 80, teve como professores homens da cepa de João Bénard da Costa, António Reis, Luís Miguel Cintra ou Paulo Rocha. Para dar início a esta retrospectiva, mostraremos a versão do realizador de Xavier, filme charneira do cinema português, e a nossa próxima sessão.

Em entrevista a Miguel Cipriano, Mozos falou sobre os problemas de produção do filme, dizendo que "previmos arrancar numa determinada data, mas depois decidimos adiar um tempo, e quando realmente se arrancou para o filme, o ambiente, a equipa e o trabalho dos actores deixaram-me bastante satisfeito. Tínhamos feito um mapa de quase nove semanas, mas a partir da terceira semana começou a haver problemas de pagamentos, e na quinta semana houve uma pequena paragem. As coisas negociaram-se e o filme foi retomado ao fim de um dia, mas quando estávamos a chegar ao fim da oitava semana voltámos a parar e eu julgava que a coisa seria resolvida. Na altura estava aborrecido, mas não imaginando o que se ia passar. O filme parou mesmo e não se encontrou maneira de o retomar, embora se tivessem feito vários esforços. O filme parou porque os técnicos e os actores não estavam a ser pagos, e obviamente que as pessoas não estavam contentes com a situação. Isto não aconteceu por culpa do Joaquim, mas sim porque uma das outras pessoas que estava à frente da produção tinha feito o orçamento a contar com uma participação de um produtor francês, e não se precaveu de garantir o estado financeiro desse produtor, que, veio-se a descobrir, estava falido. Obviamente que a pessoa responsável por isso me aborreceu, mas não foi uma situação de desviar dinheiro, foi uma coisa um bocado ingénua. Eu confiei naquela pessoa não prevendo a situação, e ainda hoje em dia não me interessa saber para onde vai o dinheiro."

Por alturas da estreia do filme, doze anos depois do início da rodagem, Kathleen Gomes escreveu que «coincidência ou destino, foi Paulo Rocha quem acabou por assumir a produção de Xavier, o que permitiu concluir o filme. E Verdes Anos tornou-se emblemático para uma série de jovens cineastas que estavam a começar ao mesmo tempo que Mozos. O tempo tem destas coisas: se tivesse estreado à altura, Xavier teria sido colocado ao lado de outras primeiras obras dos anos 90, com as quais partilha temas e obsessões - a orfandade ("seríamos nós próprios a querer ficar órfãos", pergunta Mozos, referindo-se a uma ruptura com o Cinema Novo), a passagem da infância -, como O Sangue, de Pedro Costa, A Idade Maior, de Teresa Villaverde, ou Nuvem, de Ana Luísa Guimarães.

«"Se virmos os filmes dessa época em conjunto, realmente há muita coisa que os liga, mas o que é curioso é que não éramos nenhum grupo como a geração de 60, não tínhamos um programa. Foi espontâneo, quase uma coisa misteriosa." Retrospectivamente, Xavier é quase um filme visionário, em relação ao qual haverá a tentação de reconhecer-lhe o retrato de uma geração de realizadores sobre a qual foram postas grandes esperanças mas onde alguns ficaram pelo caminho. "Acreditávamos que podíamos fazer filmes e que as coisas iriam mudar. Acho que fracassámos. Mas nesse fracasso há coisas muito positivas, como o trabalho de Pedro Costa e não só."»

Num texto muito sentido publicado no seu antigo blog, João Mário Grilo grita que "Xavier não merecia tal destino, embora, em boa verdade, se possa (e deva) dizer que é o país – que cada vez mais se estupidifica – que não merece tal filme. E Xavier até esteve para nunca ser. Durante doze anos, Manuel Mozos lutou para conseguir que o seu filme sobrevivesse à falência do co-produtor francês. Entretanto, chegou mesmo a estrear o seu segundo filme (Quando Troveja, em 1998), e não é o menor dos sortilégios que, num país de raros filmes e raros cineastas, uma primeira-obra estreie depois da segunda. Isso marca bem uma diferença – o filme quase parece de "época" –, mas as diferenças de Xavier não são realmente essas. Já antes de mim houve quem escrevesse que se Xavier tivesse estreado na altura em que foi feito, muita coisa podia ter mudado no cinema português. Porque Xavier – história de um rapaz (Pedro Hestnes) em rota de colisão com uma cidade (Lisboa) – esconde, realmente, a promessa de um novo cinema novo português, o cinema de uma nova gerarão que é, talvez, doze anos depois, o que mais falta nos faz. 

"E nada disto é só (sem o deixar de ser, completamente) por o filme tanto nos fazer lembrar a alma, o sangue, o nervo e o músculo de Verdes Anos, filme realizado por Paulo Rocha, há quarenta anos, e que iniciou, então, uma revolução radical no status quo apodrecido da cinematografia portuguesa da altura. Xavier é um filme com um idioma próprio, sonhado e feito, totalmente, nas margens das imagens dominantes (mesmo as do cinema, para já não falar das da televisão), e que parte, solitariamente, à descoberta de uma nova poética portuguesa, que não é só cinematográfica. Do filme, guardo muita coisa: por exemplo, o risco elíptico e brutal, que fende o filme em ligações surpreendentes, o "casal" Hestnes/Isabel Ruth (Laura, a mãe), a relação fraterna entre Xavier e Hipólito, o fundo palpitante da cidade (soberbo o plano em que Xavier conserta uma antena num telhado de Alcântara). De tudo isso, no entanto, o que mais me fascina é essa vontade de tecer todo um filme à volta de um único protagonista, um grande, paciente e magnífico gesto de humildade, absolutamente incomum no cinema português, e que faz com que Xavier, apesar do atraso com que nos chega, mantenha, para sempre – sabemo-lo hoje – a força genuína de uma mudança, que o filme nunca deixará de ser, realmente. Foram doze anos; mas parece, apesar de tudo, que ainda há tempo."

Até Quinta!

domingo, 3 de novembro de 2019

Le livre d'image (2018) de Jean-Luc Godard



por Bernard Eisenschitz

Caro Jean-Luc, 

Obrigado por me ter convidado a ver O Livro de Imagem (...) 

Com as diversas fontes e formatos, o senhor recria uma matéria pictórica. Deformada, re-colorida, ampliada com o grão, reenquadrada. 

Bloqueada toda a sedução das imagens e também do texto, balbuciante, trémulo, interrompido, encoberto. 

Nas interrupções constantes, ser partilhado entre o que é representado e a máquina do cinematógrafo com o seu desenrolamento, as suas perfurações, a sua decomposição. Reencontrar a descontinuidade com os meios do digital. 

A definição muito justa e bela do contraponto dá uma chave. 

Ondas, chamas, bombardeamentos, exércitos, a história e o mundo num espectáculo estrondoso à Dovjenko ou à Vidor. 

Um grande fluxo sinfónico. Mas não para contar uma história. «O cinema, de forma mais genuína». Como o primeiro leitor de Moby-Dick (segundo Giono): 

– Não é um livro. – Não, diz Melville. 

Isto não é algo que o torne popular, diante do digital onde se vê tudo e nada por trás (passei por essa experiência nos filmes de Vigo, espero ter evitado isso no final). 

Isto já supondo que ouvimos o que nos diz. É o que há de surpreendente no filme. 

«Torna-se necessário chamar a atenção», de facto. Mas isso não foi mostrado assim, como às vezes se diz, com os governos de animais selvagens de Hugo. 

Os remakes foram inventados por Marx no seu Louis-Napoléon. A história repete-se, mas aqui não como farsa. As falhas morais confundem-se com crimes de Estado. Há criminosos que só existem por causa da guerra. A humanidade está-se a destruir a si própria. Há anos que a guerra está por todo o lado, de forma cada vez mais literal, no sentido de Goya ou Joseph de Maistre (eis como se explica a presença deste). Segue-se a habituação. 

Dizer que O Livro de Imagem é de uma grande coragem e sem precedentes é uma banalidade. Mas é o sentimento que me vem à mente. 

É verdade, como dizem os jovens que lhe escrevem em “Lundi matin”, que o senhor é o único que, etc. (Eles não sabem quão certos estão, estou curioso para que vejam este.) 

O senhor sempre esteve na história, pensando para que é que o cinema devia servir. 

A partir das Histoire(s), era acima de tudo disso que se tratava, mais do que a cinefilia que conta as suas pequenas histórias (não mal). 

Desta vez, a história é a própria matéria. 

De facto não se afastou do cinema, só não é mais um amor dominante. 

Ele serve como a caixa de impressão em que o tipógrafo analfabeto de Fuller encontra os caracteres a toda a velocidade. 

E o senhor olha para o caracter, o hieróglifo com que Eisenstein sonhava. (Ele também, as suas três aparições são magníficas, a coruja, as mãos sobre a Bíblia e o cavaleiro teutónico. Ele quis fazer a sua catedral das artes, completamente sozinho. A sua resistência era já a da esperança, a sua solidão também.) 

Encontra todas as imagens nos filmes ou nos velhos jornais de actualidades. É mais que justo. Melhor ainda, se Ridley Scott serve para preencher uma caixa de impressão. 

E para não se desviar do cinema, bastam dois longos planos do Plaisir em que se vêm corpos em movimento e que dão essa mesma definição. 

O pensamento desenvolve-se nas imagens e nos sons («um pensamento / virá / em seguida», como numa colagem que uma amiga tinha feito pegando em textos no ecrã das Histoire(s)). 

É um bloco e é articulado como os cinco dedos... ainda uma dessas coisas que eu não compreendia no papel. 

Por fim, mesmo que as re-utilizações das Histoires sejam o que me deixa menos curioso – não se muda de caligrafia – adoro a ideia da imortalidade através dos filmes líquidos, de Vertigo a Ruby Gentry passando por The River

E os momentos de calma da Arábia alegre em que vejo qualquer coisa da felicidade de Barnet: o pôr-do-sol, um barco no mar que brilha, os cantos mundanos de Maghreb que representam a Arábia inteira, a que temos atrás dos olhos. 

Obrigado mais uma vez. 

Com amizade, 

B.E. 

in dossier de imprensa de Le Livre d'image