quarta-feira, 30 de outubro de 2019

150ª sessão: dia 31 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Para fechar o ciclo de Outubro que nos tem ocupado, convocamos os aforismos e profecias de Jean-Luc Godard, monstro sagrado do cinema mundial. O seu último filme, O Livro de Imagem, de 2018, será a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Em entrevista a Dmitry Golotyuk e Antonia Derzhitskaya, para a Débordments, o realizador disse que o filme "começou mesmo quando pensei nos cinco dedos. Disse a mim mesmo: "Vamos fazer um filme em que há cinco dedos e depois o que os cinco dedos fazem juntos, a mão." E foi aí que pensei em... talvez depois noutra parte. Mas isto levou tempo. Os cinco dedos vieram rápido: o primeiro dedo são remakes, cópias; o segundo dedo é a guerra, e depois encontrei um texto antigo em francês, Soirées de Saint-Pétersbourg (Joseph de Maistre, 1821); e depois o terceiro era um verso de Rilke ("Essas flores entre os trilhos, no vento confuso das viagens"); o quarto dedo era—certo, os dedos vieram quase ao mesmo tempo—era o livro de Montesquieu, Do Espírito das Leis (1748); e o quinto era La région centrale, que é de um americano, Michael Snow [nota: Michael Snow é canadiano], que eu encurtei: já não vemos isto tudo [ele faz um gesto a imitar uma panorâmica circular]. E depois tive a ideia de que a região central era o amor entre um homem e uma mulher, o que é retirado de A Terra de Dovzhenko."

Quando lhe perguntam, na mesma entrevista, porque fez um filme sobre a Arábia, Godard responde que "Ah, bom, pode-se dizer que funciona bem. Vem de mim. Das mulheres árabes por quem estive apaixonado e depois não resultou, coisas assim. Mas havia qualquer nos árabes que eu gostava. E depois, na época do meu avô, com o cão Cassaba, o meu avô tinha um motorista e este motorista era argelino. Eram pessoas burguesas mesmo ricas e nós comíamos de pratos decorados com cenas da conquista da Argélia. Tudo isso tem de desempenhar um papel. E, então, desde que falamos do Médio Oriente nos dias de hoje. Há muitas coisas assim. Eu tive um tio que era um capitão de não sei o quê e que fazia parte de... na Síria antes da guerra, quando a Síria era um protectorado francês, enquanto o Iraque era um protectorado inglês. Isso tudo."

Num dos textos publicados pelo site À Pala de Walsh no seu dossier sobre Jean-Luc Godard, Inês Lourenço escreveu que "é com os cinco dedos de uma mão que Jean-Luc Godard se lança – nos lança – no folhear deste Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018). Vamos pensar com a mão. Vamos abrir com uma aleatoriedade reflectida as páginas de um arquivo em ebulição, imagens em contacto com a lava de uma secreta atividade vulcânica. A que é que nos podemos agarrar? A um discurso febril, palavras inteiras ou retalhadas, frases reunidas num cortejo sincopado, umas roubadas outras consubstanciadas na voz quebrantada do próprio Godard. São senhas para entrar na performance onírica do filme-livro, onde filmes (seus e dos outros), pinturas, guerra, sangue, Oriente/Ocidente, o mundo árabe e outras arqueologias materiais e imateriais, nos ferem o olhar com uma beleza ardente e triste.

"Aliás, não sei se há imagem melhor para traduzir a ideia desta experiência senão aquela famosíssima do corte do olho em Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1929), de Buñuel, que surge neste Le livre d’image como um comentário pungente. Godard corta-nos o olho com imagens-lâmina, fragmentos de uma oração profana que seduz pela sua energia peculiar. Como diz o cineasta a certa altura, citando Brecht, “só o fragmento tem a marca da autenticidade”. E é de pedaço em pedaço que se tacteia a verdade desta montagem, trespassada por um sentimento de pesadelo em noite de trovoada."

Na folha da Cinemateca sobre o filme, republicada no mesmo dossier, Maria João Madeira propõe que "haverá muitos textos, interpretações, sobre este Le livre d’image, possivelmente muita escalpelização. A matéria é vasta, a vontade de decifrar fontes e subtilezas, irresistível. A fixação que JLG tem em trabalhar determinadas imagens, frases soltas, também convida a isso. É por exemplo impressionante perceber que uma tirada importante “sobre” recordações destroçadas em Adieu au langage se ouve em fundo como diálogo de um filme na cena do namoro numa sala de cinema de Patricia Franchini / Jean Seberg e Michel Poiccard / Jean-Paul Belmondo em À bout de souffle. Mas enfim, é outra história. Aqui, tentar-se chegar a como JLG faz confluir a História, de olhos postos no mundo árabe, e o cinema, com o seu olhar que vem de longe e vai fundo, sem deixar nem uma nem outro. Não deixa. Os Remakes podem ser o primeiro dos cinco andamentos e A Região Central o último, mas contaminam-se. Os encadeamentos entre os cinco passos têm uma lógica e dirigem-se sem tréguas ao mundo de hoje, certo. Mas nem por isso estes cinco “passos” se vão dispensando. Como os ditos cinco dedos que, juntos, compõem a mão, com a qual é preciso pensar. “Na harmonia, os acordes produzem melodias. No contraponto são as próprias melodias de cujo inverso resultam os acordes.” Le livre d’image move-se no território do contraponto. 

"O primeiro raccord de Le livre d’image talvez se faça fora de campo. Se nos lembrarmos que as duas últimas frases de Adieu au langage são “Malbrough partiu para a guerra! Não sabe quando voltará!”, talvez nos ocorra que este filme seguinte está lá. “A guerra aí está”. É de um mundo em guerra que JLG fala, zangado. Com as repetições da História por exemplo. Por isso este filme a toma por matéria, por isso, e por tudo o resto propondo a sua novidade. É um filme novo de um homem velho de idade, que quando se engasga na sua própria rouquidão acelera o ritmo e continua, e deixa o atropelo em si mesmo sobrepondo a sua voz em dois tons. Zangado, mas não aniquilado. “Esperança ardente”, diz ele. “Assim o passado era imutável assim as esperanças permanecerão imutáveis e aqueles que um dia quando éramos ainda jovens tinham alimentado… esperança ardente de se indagarem… quando nós o fizermos… e mesmo que nada tivesse sido cumprido como nós havíamos esperado isso em nada alteraria as nossas esperanças.” Mesmo no fim, volta o cinema, é a dança de Ophuls na sobre-exposição da imagem electrónica de Godard no século XXI, calada a banda de som. Ponto final mudo num filme que dá a ouvir a “tridimensionalidade” do som, mostrando o que serve um desenho sonoro de múltiplas pistas."

Até Quinta!

The Immigrant (2013) de James Gray



por Luís Miguel Oliveira

A Emigrante é um filme italiano dos anos 50 feito nos Estados Unidos do século XXI. 

Na superfície, A Emigrante não foge ao que James Gray anda a fazer há vinte anos, em pouca quantidade (este é só o quinto filme de longa-metragem) mas com a convicção suficiente para fazer desta curta obra uma das poucas coisas realmente essenciais no cinema americano contemporâneo. O caminho aberto por Little Odessa, de 1994 (os vinte anos são exactos), ainda não deixou de ser trilhado, continuam a ser a imigração e as comunidades imigrantes na região de Nova Iorque o centro do interesse de Gray, mais precisamente as comunidades oriundas da Europa do Leste e, muito em particular, a russa – origem familiar de James Gray, cujos avós chegaram à América nos anos 20 e podem ser vislumbrados em A Emigrante, numa referência “privada” que o realizador descodificou a posteriori, através duma fotografia num medalhão. Gesto simples e silencioso, a incrustar uma dimensão pessoal numa história que, para além do contorno comum, não é a dos seus antepassados (a começar pela origem da “imigrante”, que no caso é polaca). 

Mas para além da superfície, é possivelmente o filme mais radical que Gray já fez. Sobre o tema, em primeiro lugar, visto que vai à raiz. Se nos seus outros filmes o ambiente ou era contemporâneo ou visto com um recuo temporal escasso (caso de Nós Controlamos a Noite, situado no final dos anos 80), e se tratava portanto de comunidades já integradas, mal ou bem, e submetidas a algumas camadas de aculturação, aqui vamos ao momento inicial, ao momento que podia ser o princípio das quatro famílias descritas nos precedentes quatro filmes do realizador: o momento em que alguém, com uma mão à frente e outra atrás, aportou a Ellis Island nos anos 20, fugindo do rasto de pobreza deixado a Leste da Europa pela I Guerra Mundial. 

É por aí que o filme começa, e pelo símbolo maior do acolhimento americano aos desvalidos do mundo inteiro, a Estátua da Liberdade, mostrada num dia de cinzento outonal que não mais abandonará o filme, e marcada por uma silhueta sombria (a de Joaquin Phoenix, outra vez the man in black) que antecipa a moral da história: o “sonho americano” não é um conto de fadas. Não é em fada, mas em algo bem distante de uma fada, que a pobre Marion Cotillard (Ewa, “a imigrante”) se verá transformada às mãos de Phoenix. 

A Emigrante, que reverbera alusões religiosas por todo o lado e uma tem uma das suas cenas mais memoráveis num confessionário, é uma via crucis, uma tragédia de sofrimento e sobrevivência, ou de sofrimento para a sobrevivência, onde faz todo o sentido que Gray venha dizer que pensou em Cotillard como na Falconetti de Dreyer (sendo que, e é a única reserva ao filme, que de qualquer modo deixaremos por debater, se poderia perguntar se Cotillard está mesmo à altura de tudo o que o filme deposita nela). Nesse sentido, e mais ainda do que em Duplo Amor (onde pela primeira vez Gray largava o universo de género policial), esse é o filme em que o realizador mergulha radicalmente no melodrama, e se assim faz sentido dizer, na sua expressão mais pura, aquela que ainda não esqueceu a sua raiz melómana. A ópera tem presença real no filme, e Gray falou de ópera como uma das principais inspirações do filme (concretamente, a encenação de William Friedkin para uma das óperas do Tríptico de Puccini), mas é no seu movimento, no seu élan, que A Emigrante adquire uma dimensão “operática”, através duma dramaturgia transbordante que faz do “sentimento” (do “senso” no sentido viscontiano do termo) o seu motor, total e unificador. Gray já tinha falado de Visconti a propósito de Duplo Amor, mas é aqui que a referência faz todo o sentido. Não é Ford, não é Coppola, não é sequer o cinema americano: A Emigrante é um filme italiano dos anos 50 feito nos Estados Unidos do século XXI. 

Nem por isso deixa, evidentemente, de ser uma história americana. E de certo modo a história de uma cisão, ou de um choque com a realidade, de uma ideia da América. Há dois homens na vida de Ewa, o sombrio Phoenix e o seu primo mais luminoso (Jeremy Renner). Até certo ponto, são como os irmãos desavindos, ou atraídos por lados diferentes do Bem e do Mal, que conhecemos doutros filmes de Gray. Neste caso, sem serem “arquétipos” de coisa nenhuma (a personagem de Phoenix é espantosa na sua complexidade moral, não é uma “ideia”, é um homem perturbado, capaz, como os homens perturbados, de fazer uma patifaria com uma mão enquanto faz um gesto altruísta com a outra), representam algo que está para além deles. Phoenix, o proxeneta, é o comerciante, chamemos-lhe o Mr. Business; Renner, o ilusionista, é o homem do espectáculo, chamemos-lhe o Mr Show. Juntos, representam dois pólos diferentes, a realidade pragmática, e a ilusão. O filme é também o diálogo entre estes dois termos, se o quisermos ver como “filme sobre a América” que a algum nível nunca deixa de ser. Para narrar, rumo a uma estranha paz, a da aceitação, a cisão desta imagem original, como se fosse um espelho quebrado. E não é, naquele extraordinário plano final onde Gray re-inventa (mas re-inventa mesmo) o split screen, um espelho quebrado aquilo que toma conta do ecrã? 

in «Um espelho quebrado», Ípsilon, 24 de Julho de 2014.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

149ª sessão: dia 29 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Chegados à última semana deste nosso ciclo, com mais contratempos do que é habitual (e por isso pedimos desde já desculpa),  mostraremos em sessão dupla as estórias de imigrantes de Charles Chaplin e James Gray, separadas entre si por quase cem anos, embora a acção do filme de Gray se situe no início do século passado. Assim, O Emigrante (1917) e A Emigrante (2013) serão a nossa próxima sessão.

Em entrevista a Joey Magidson em 2015, e sobre a noção de "antiquado" em relação à sua obra, o realizador diz que "antiquado é algo que tem sido aplicado ao meu trabalho em certas ocasiões, e isso sempre me interessou! Não sei como hei-de levar a coisa, porque a ideia de que algo é antiquado pode ser muito gratificante mas ao mesmo tempo também pode parecer ossificado. Eu acho, e percebo o que está a dizer, claro, mas a ideia de uma história simples contada com elegância e emoção (eu tinha elogiado A Emigrante ao chamá-lo de antiquado e história simples contada com elegância e emoção, daí o seu regresso ao tema e a propulsão desta resposta) é a coisa mais difícil de se fazer. Se alguma vez conseguir chegar perto de alcançar isso, então era mesmo uma pessoa feliz. É muito fácil distrair o público com pirotecnia cinematográfica.

"Sabem que disse muitas vezes a pessoas que conheço ou a estudantes com quem falo quando vou a universidades e tal, quando me perguntam o que é o mais difícil… para mim, o que Francis Coppola fez com O Padrinho é a coisa mais difícil que se pode fazer, porque tem três horas e são personagens e narrativas puras. Em O Padrinho, não há mesmo qualquer pirotecnia. Agora, está incrivelmente bem feito e há lá beleza, é feito de forma brilhante, mas não é como se a câmara estivesse a fazer movimentos de 360 graus com gruas. Sobrevive totalmente com o poder da sua história e do seu conceito, e é impossível fazer isso."

Na sua crítica ao filme para a Revista Interlúdio, Sérgio Alpendre escreveu que "no filme, as pessoas são más por circunstância. Todos têm maldade no coração (todos temos, devo dizer, pois desconfio dos santos). É uma determinada circunstância que faz aflorar a maldade. Bruno diz, em certo momento, que todos são maus, ao contrário do que Ewa pensa, ou do que ele pensa que ela pensa. Porque Ewa nem mesmo pensava isso, embora de acordo com os personagens do filme ela teria razões para assim pensar. Ela se aproxima de Emil (Jeremy Renner), um galanteador picareta, encrenqueiro e de modos duvidosos. Mas nada nos diz que Emil é realmente mau. Nem mesmo quando aponta uma arma para a cabeça de Bruno, numa brincadeira que lhe custa a vida. James Gray, aliás, brinca também com nossa expectativa, pois havíamos visto Emil tirando as balas da arma, mas ficamos em dúvida se ele teria colocado enquanto esperava no quarto ou não. 

"E de dúvida somos alimentados o filme inteiro. Algumas se resolvem, outras, não. Dúvida se a irmã está mesmo sendo bem tratada no hospital da imigração; se Bruno viu que Ewa pegou o dinheiro do chapéu; se os guardas da imigração são confiáveis ou realmente subornáveis; se a mulher polonesa que fala sobre o desprezo das autoridades americanas em relação aos que esperam a deportação assim o diz com sinceridade ou apenas como um sinal de seu desespero para sair dali, se Ewa se interessa mesmo por Emil, até mesmo se ela havia sido realmente estuprada no navio que a levara até Nova York."

Sobre o filme de Chaplin, Jacques Lourcelles diz no Dictionnaire tratar-se do "Penúltimo dos doze filmes de Chaplin para a Mutual (Chaplin rodou-os ao ritmo de um por mês e este período de actividade febril é aquele em que mais progrediu no sentido da maturidade e da descoberta do seu próprio génio). Numa duração ainda bastante limitada, a dramaturgia, o conteúdo da história e a pluralidade das formas de comédia tendem visivelmente a aqui se tornarem as de uma longa metragem. É toda uma aventura rica em desenvolvimentos que Charlot vive em O Emigrante, e também é um drama. Como nota Jean Mitry (in «Tout Chaplin», Seghers, 1972), a partir deste filme «o cómico só toma – e passará a fazê-lo sempre daí em diante – como seus sustentáculos as situações trágicas». Ainda que relativamente discreto na economia geral da história, o estudo do ambiente (descrições dos emigrantes do barco) é, no entanto, como era já o caso em vários outros Mutual, um dos pontos altos do filme. Tem agudeza, realismo e uma espécie de ferocidade que dá o seu relevo particular aos seres e às coisas e também corresponde a uma condenação implícita da passividade na qual as personagens, dada a sua situação de párias, se poderiam afundar. Esta seria, aos olhos do autor, a pior derrota. Porque Chaplin, ainda mais que um criador de melodramas e um pintor da desgraça humana, é um professor de energia e de revolta. Nele, frequentemente, a ferocidade não é mais que uma piedade invertida intencionalmente, uma exortação premente para lutar. 

"N.B. No primeiro dos três programas de televisão de Kevin Brownlow, «Unknown Chaplin», encontra-se um material muito importante de «tiras» e tomadas não usadas de O Emigrante. Permite seguir a génese do filme de uma maneira minuciosa e absolutamente deslumbrante, criando-se por assim dizer debaixo dos nossos olhos. Ao princípio tratava-se apenas de uma pequena comédia situada unicamente no restaurante. Durante a rodagem, Chaplin imaginou juntar as cenas do barco, dando assim à obra a sua dimensão de mini-fresco social, dramático e documental. Ele substituiu, no papel do empregado agressivo, Henry Bergman por Eric Campbell (que dá então uma das suas melhores composições com Chaplin). Alteração espectacular de que podemos medir o intervalo através das cenas interpretadas alternadamente por um e pelo outro actor. Este documento admirável é ao mesmo tempo um curso de mise en scène e uma descrição magistral de um génio ao trabalho. De passagem, são reveladas duas trucagens relativas às cenas do barco: os balanços do convés foram obtidos graças à adição de um grande pêndulo fixado sob a câmara, animada assim por um movimento pendular; quanto ao cenário da sala das refeições, foi colocado sobre cilindros. 

"BIBLIO: decupagem (133 planos) in «L'Avant-Scène» nº219-220 (1979)."

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Nathalie Granger (1972) de Marguerite Duras



por Mathilde Ferreira Neves

(...) Já avançada a sinopse no preâmbulo deste trabalho e antes de explorar questões propriamente cinematográficas em relação ao filme Nathalie Granger, devem ser abordadas as três linhas condutoras do filme: a casa associada à ocupação do tempo das mulheres, a violência associada ao silêncio, e a invasão do vendedor e o que isso representa. Estando todas estas linhas ligadas entre si, mesmo intricadas. (…) 

Para MD, fazer um filme a partir da casa é assumir uma contestação profunda. Por um lado, é reagir ao modo como, ao longo dos tempos, as mulheres foram sendo encerradas nesse espaço pelos maridos; por outro, é um meio de contar a história das mulheres que nas gerações anteriores passaram por aquela mesma casa (que data de 1750), caladas, vivendo numa espécie de equivalência ao que estas mulheres do filme vivem. 

Porém, se a casa é encarada primeiramente enquanto prisão, logo percebemos que ela funcionará igualmente enquanto refúgio, enquanto reduto e lugar de resistência das mulheres, onde estas poderão começar por exercer a sua liberdade, como mais à frente se tornará claro. 

Quanto à segunda linha condutora, que relaciona violência e silêncio, podemos explorá-la sob vários prismas. (…) 

Esta classe da violência de que autora nos fala não é um problema de classe, abrange todos os níveis sociais e de instrução. A violência é aqui a natureza mesma da infância e da adolescência confrontadas com a sociedade contemporânea; é afinal a violência que se torna em si mesma uma classe. Curiosamente, a violência nunca é verdadeiramente mostrada no decorrer do filme: chega-nos pelos blocos informativos da rádio, pelos relatórios de avaliação da directora da escola, pela tensão que perturba o semblante da mãe. Surge-nos, portanto, em alusão ou em modo silencioso, exceptuando quando vemos Nathalie empurrar com toda a força o seu carrinho de bonecas contra as pedras do quintal. (...)

O silêncio surge, então, enquanto política, enquanto estratégia de resistência da mulher contra uma cultura patriarcal (aqui, nomeadamente, representada no discurso do vendedor). O próprio filme nos surge um pouco como um filme mudo: o modo como a câmara se move, a composição dos planos, a montagem, transmitem as intenções da realizadora sem que seja necessário explicá-las, estendê-las por palavras. Através da própria forma, MD concretiza a ruptura com as normas, as convenções, colocando em causa a comum representação da realidade. (…) 

Neste filme tumultuoso, a violência é inaudível ou quase, é invisível ou quase (…). 

No que diz respeito à última linha condutora do filme, o vendedor de máquinas de lavar roupa (Gérard Depardieu, no seu primeiro grande papel no cinema), que surge na casa inadvertidamente e tenta convencer as duas mulheres (Lucia Bosè e Jeanne Moreau) a comprarem uma Vendetta Tambour 008, é ainda Heathcote que melhor nos explica a sua função: 
First, his most important feature seems to be his maleness. (...) Secondly, the way he personifies this order is through his language, a language which is insincere, repetitive and unconvincing. (...) Finally, he personifies not only masculinity but male-dominated commerce with his sales pitch (...). His language is therefore not only that of the male but of patriarchy – that of the bankruptcy of institutional discourses. (2002: 78-9)  
No entanto, assim que o vendedor se depara com aquelas duas mulheres, que o enfrentam com um olhar inquietante e penetrante, compreende que veio perturbar um domínio que, para além de lhe escapar, o desestabiliza por inteiro, até lhe ser negada a sua própria função social (a de vendedor porta a porta, profissão, entre tantas outras, que, para MD, não é sequer uma profissão); surgindo-nos, então, e ao contrário do que se previa com a sua intrusão e a anterior explicação de Heathcote, como um negativo do que veio representar (...).

Compreendemos, então, que quer insiders (as mulheres), quer outsiders (o homem) são frágeis e vítimas do medo. Na verdade, no entender de MD, a violência diz respeito a todos: todos nós somos receptores, transmissores e reprodutores, de uma maneira ou de outra, de violência (sendo a própria representação uma das suas formas). 

Depois de termos assistido às tarefas domésticas mais comezinhas do quotidiano daquelas duas mulheres (o levantar da mesa, o lavar e limpar da louça, o cozer e passar da roupa, assim como a manutenção do lago e do quintal); depois de termos assistido à eliminação dos perigos do exterior (a função do vendedor é desconstruída, o jornal, conta da electricidade e cadernetas escolares das crianças são queimados); depois de percebermos que afinal a mãe de Nathalie recusa enviá-la para uma instituição disciplinar (estando talvez a sua única possibilidade de salvação no aprender música/piano), e depois de o vendedor nos informar que mudará de emprego, o filme termina na deambulação do homem pela casa. (…) 

O filme termina exactamente onde termina o perímetro explorado pelo vendedor, que foge assustado daquele espaço que não consegue apreender. As mulheres, longe de aparecerem enquanto vítimas, venceram-no, sem se saber claramente no quê ou como. (…) 

À classificação do filme como feminista, MD resiste e considera tal etiqueta uma facilidade. Para ela, Nathalie Granger é, antes disso, o trabalhar da matéria do feminino: da função que as mulheres têm tido e mantido ao longo dos séculos, das angústias da mãe de Nathalie, que são, no fundo, as angústias de qualquer mãe. (...)

Mas o que é, efectivamente, importante para a realizadora é que o filme, muito para além de ser uma afirmação do feminino, é uma negação da sociedade tal como a conhecemos: 
[L]a grandeur du film: elle est là, dans cette espèce de sauvagerie rendue à la mère à partir de l’exemple de son enfant, de cette petite fille sauvage, qui ne veut rien entendre et qui est l’image même de la désobéissance, du refus de la société. Et la mère suit l’exemple de la petite. C’est ça qui me touche beaucoup dans Nathalie. (idem: 44).

in “Nathalie Granger | Le Camion | L’Homme Atlantique - Três Filmes Durasianos para Abordar a Escrita Branca, a Imagem Negra e a Não Voz da Voz”, 2011

domingo, 20 de outubro de 2019

148ª sessão: dia 22 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Esta semana, regressamos à escrita de Marguerite Duras depois de Hiroshima, meu Amor, aqui também na faceta de realizadora, e com os companheiros de sempre: Jeanne Moreau, Gérard Depardieu, Luc Moullet, Benoît Jacquot ou Bruno Noytten. Nathalie Granger, quarto filme de Duras, é então a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Numa entrevista a Leopoldina Pallotta della Torre publicada em La Passione sospesa (1989), e sobre o filme, Marguerite Duras disse que “eu adorava a ideia de trabalhar com duas grandes estrelas, invertendo o cliché e mostrando os corpos delas de trás, ou as mãos delas, sem me demorar nas pernas, nos rostos e nos seios delas.

"Queria fazer um filme que respeitasse o ritmo da mulher, sem apelar à feminidade habitual, tão desgastada. Tenho belas recordações deste acordo entre mulheres, elas as duas e eu.

Quanto a Jeanne*, desde a época de Moderato cantabile que me apercebi da inteligência extraordinária do olhar dela, com a seriedade com que interiorizava os seus papéis. Enquanto rodava com Brook, vinha constantemente a minha casa para me pedir informações sobre a vida de Anne Desbaresdes, que eu própria era obrigada a inventar no momento para a contentar.

*Duras também dedica a Jeanne Moreau um artigo-entrevista na Vogue, em 1965, republicado em Outside. Lembre-se que Moreau é também a intérprete de Marin de Gibraltar (1967), que gravou um disco inspirado em India Song e que interpretou Marguerite Duras no filme baseado em Cet amour-là (1999) de Yann Andréa, por Josée Dayan (2001).

"A Jeanne é muito parecida comigo: ambas tínhamos sido atravessadas pela força de um amor durante a nossa vida toda. Não necessariamente de um amor que já existisse, mas por qualquer coisa que ainda lá não estava, que ia chegar ou acabar."

O ano passado, Bruno Noytten, director de fotografia de Marguerite Duras e também de Jean-Luc Godard, disse a Anne Diatkine que "eu aprendi tudo o que sabia com a Marguerite. Como filmar, como iluminar, como enquadrar, como viver. Rodámos cinco filmes juntos e a nossa grande aventura foi India Song. Passei toda a minha carreira como director de fotografia a procurar o mesmo prazer que experimentei nesse filme, mas em vão. A Marguerite dizia-me o que queria nas suas palavras, e tentava oferecê-lo com os meios técnicos que tinha à minha disposição. Não haviam ideias pré-concebidas sobre o que era possível fazer ou não fazer. A simplicidade dela era excitante. Estava ao lado dela atrás das câmaras, e era levado pelas suas palavras, ouvia-a comentar sobre o que estava a ver, e passava a vê-lo pelos olhos dela. 

"Em India Song, a proposta de Marguerite foi magnífica: “Transporta-me para outro lugar.” Estávamos dentro de uma das casas abandonadas há muito tempo pelos Rothschilds em Bolonha, e a Marguerite decidiu depressa que toda a casa lhe pertencia. Claro que não éramos nós que a estávamos a levar numa viagem, era ela que nos estava a transportar para outro lugar. Em termos de imagem, estar na Índia significava desfigurar o real para o poder transfigurar, mas não foi esse gesto técnico que me impressionou. Em vez disso, foi a felicidade de Marguerite em fazer essa viagem. Antes, tinha havido Nathalie Granger, que foi o primeiro filme importante de Depardieu, o primeiro em que tinha tido um grande papel. Duras estava bem ciente do poder de Depardieu, tinha tentado minimizar os seus efeitos escondendo-o de nós. Quando o vimos pela primeira vez, estávamos a rodar e ele estava a andar para a frente da câmara. A coisa bonita é que ele também tinha medo, sentia-se intimidado por Jeanne Moreau e Marguerite. Nunca vi ninguém a dar essa impressão numa rodagem. Com ele virado para a câmara, não podia haver dúvida de que se estava na presença de um monumento."

Para a televisão francesa, em 1973, a grande Jeanne Moreau tomou a palavra e afirmou que "então, o que vos posso dizer e o que sei sobre o filme é que o rodámos em muito pouco tempo, rodámo-lo numa semana em casa da Marguerite Duras, e havia um argumento muito conciso. Depois de rodarmos o filme, a Marguerite Duras escreveu um argumento definitivo, que vai ser editado, e que se chamava realmente Nathalie Granger ou la chambre des femmes. E nessa casa - de mulheres - há duas mulheres, Elizabeth Granger, que é interpretada por Lucia Bosé, e eu sou a amiga. Como sempre na amizade, é-se o duplo ou o reflexo, percebem?

"Bom, a personagem de Lucia Bosé é a mãe de Nathalie Granger e o momento particular em que o filme se desenrola é um drama, porque a menina até esta altura estava na escola, tinha estudado piano, tinha sido rejeitada de todas as várias escolas em que esteve e era sujeita a uma enorme tensão. E essa criança é uma criança difícil, e sabem a importância primordial que tem a maternidade na obra de Marguerite Duras, portanto isso cria uma crise absolutamente terrível na mãe. E a amiga partilha-a, mas nunca se partilham completamente as dores físicas e morais das pessoas, mesmo que as amemos ternamente. Só as podemos tentar seguir, e nesse caso somos espectadores. E contrariamente a muitos filmes, em que geralmente se tenta dominar o tempo - ou seja, deixa-se durar o tempo num filme de uma hora e meia ou duas horas, no máximo quatro, como nos filmes de Eustache, mas aqui, como é um período de crise, e deve ter acontecido a muita gente que aqui está, quando sofre mesmo na pele, tem-se a impressão de que o tempo nunca passa. E é um bocado o que acontece neste filme."

Até Terça-Feira!

Stromboli (1950) de Roberto Rossellini



por João Bénard da Costa

Para se perceber os hasards deste filme tem que se começar pelo primeiro: Ingrid Bergman. 

A história é muito conhecida, Ingrid contou-a em pormenor nas suas célebres memórias (“My Life”), Rossellini também, e por isso a vou resumir. Foi por acaso – segundo ela jurou – que Ingrid Bergman, em 1948 a mais famosa e bem paga vedeta do mundo (é célebre a anedota hollywoodiana que refere como lugar-comum das conversas dos anos 40 “hoje vi um filme sem Ingrid Bergman”) entrou numa sala de cinema, para ver um filme de que nunca tinha ouvido falar: Roma, Città Aperta. O que viu maravilhou-a, pois que – Ingrid dixit – “nunca na minha vida tinha visto um filme assim, nem imaginava que os pudesse haver”. Voltou e voltou ao cineminha de bairro que projectava o filme de Rossellini, já “velho” de três anos. E amadureceu a decisão: escrever uma carta a Roberto Rossellini – Cinecittá – Roma – Itália, oferecendo-se para trabalhar com ele, fossem quais fossem as condições. 

Este simples acontecimento marca uma revolução na história do cinema e na história de Hollywood. A mais célebre das stars – em percurso inverso ao de Greta Garbo, Marlene Dietrich, Vivien Leigh ou tantas outras – estava disposta a trocar a capital do cinema pela Europa e – mais do que isso – achava que se faziam melhores filmes na Europa do que em Hollywood. Vinte anos antes, Louise Brooks achara o mesmo e trocara Hollywood pela Lulu de Pabst. Mas este teve que insistir e Louise era um “bicho” muito raro e muito rebelde (aliás, pagou com a carreira essa rebeldia). Além disso, o cinema alemão de 28 tinha reputação comparável ao americano que, por isso mesmo, lhe roubou, um a um, todos os grandes (Lubitsch, Murnau, Leni, Jannings, Marlene e dezenas de outros). Ingrid Bergman era tudo menos rebelde (ou não tinha imagem de o ser), estava instalada em pleno star system (no alto do firmamento) e a crítica americana tratava sobranceiramente o incipiente cinema italiano dito “neo-realista”. Que o símbolo de Hollywood caísse aos pés do símbolo do neo-realismo (Roma, não Rossellini) é que era a revolução de que falei. 

A carta de Ingrid chegou às mãos de Rossellini a 8 de Maio de 1948, dia em que o realizador festejava o seu 42º aniversário. Apesar do prestígio de Rossellini na Europa, apesar do êxito de filmes como Roma ou Paisà, o cineasta não acreditou no que lia. E julgou tratar-se de uma brincadeira de alguém decidido a ver até onde chegava a mania das grandezas dele. Nem respondeu. 

Mas Ingrid insistiu e Rossellini acreditou mesmo. Foi até à América. Quando os estúdios perceberam o que se podia passar, usaram o velho ditado que manda juntarmo-nos aos que não podem ser vencidos. Roberto podia dirigir Ingrid mas em Hollywood, num filme aprovado por Hollywood. Isso era exactamente o que nem um nem outro queriam. E, em 49, sem dizer água vai (ou disse-o de outra maneira) Ingrid Bergman voou de Londres, onde filmara sob a direcção de Hitchcock Under Capricorn (que detestou) para aterrar em Roma e daí partir para a Ilha de Stromboli para filmar em décors naturais (o que jamais lhe havia sucedido) uma história escrita por muitos e mais ou menos em borrão. 

O resto é conhecido. Ingrid apaixonou-se também por Rossellini e começou a viver com ele, ainda formalmente casada com o médico sueco que fora o seu primeiro marido. A escandaleira que isso deu só em parte foi ditada pelo romance heterodoxo (muitos houve antes, que os estúdios calavam, como tantos outros). A grande razão é que Hollywood não perdoou essa fuga e resolveu ter muito menos fair play do que teve – ao que parece – o marido “enganado”. Era preciso que Ingrid fosse esmagada e que o filme fosse um fiasco. 

Quando Stromboli se estreou (distribuído pela RKO) e amputado e remontado, houve o fiasco. “When things get dull, they throw in a little sex” escreveu um reputado crítico americano da época. A frase valia mais para o que Hollywood fizera do que para o filme (com muito pouco sexo) e que não era o “20 minute travelogue of Stromboli in an 89 minute film”, como também se escreveu. E Bosley Crowther no “New York Times” advertia os leitores que “the much discussed Stromboli is neither good Bergman, good Rossellini, nor good anything”. E muitos anos passaram até que alguns happy few descobrissem a beleza desta obra, muitos anos avançada em relação à sua época, e que, ainda por cima, nada tinha de “neo-realista” no sentido usual do termo. 

Mas um dos aspectos mais curiosos deste filme – para mim – é ver como Ingrid Bergman – menos “maquilhada” do que nunca, e jamais o fora muito – sem actores a seu lado capazes de lhe darem réplica (Mario Vitale ou Renzo Cesana, eram actores de secundaríssimo plano) e rodeada de povo, povo (não actores) manteve uma imagem que, para mim, é já a dos seus filmes de Hollywood. Sempre ela me pareceu como tanto escrevi (e pensem em Intermezzo, em Gaslight, em Spellbound, em Notorious ou em Under Capricorn) a permanente estrangeira que misturava à sua doçura a capacidade de ser a misteriosa detonadora das forças do mal. Parecia atrair masoquisticamente esse mal que chegava mais para desgraça dela do que dos outros. Ora, Stromboli, aparte muitas outras coisas e já lá vou, é isso mesmo: a mulher que vem doutro mundo (o campo de raparigas, a Checoslováquia) e, ao casar com Antonio e entrar em Stromboli, desencadeia não só a hostilidade popular (compreensível face à estrangeira) mas o oculto movimento das forças subterrâneas – acompanhando, imperceptivelmente o que se passa nos subterrâneos dela – até à explosão final, em todos os sentidos da palavra. Paradoxalmente, quando Rossellini julgou revelar ao mundo uma nova Ingrid Bergman, surgiu quanto a mim, o paradigma de tudo quanto Hollywood antes, nela, deixara entrever. E Stromboli é um filme sobre a progressão da auto-destruição de Karin-Ingrid, um filme em que, ao contrário do “nada se passa” que a crítica da época acentuava, tudo se passa no interior de Karin, num processo ditado não por acontecimentos mas por actos, que sinalizam tanto o conflito que opõe Karin ao espaço envolvente, como a metamorfose interior, jamais explicitada, da personagem. Estamos em pleno universo rosselliniano: “universo de actos puros, insignificantes por si próprios, mas preparando, mesmo a despeito de Deus, a súbita e maravilhosa revelação do seu sentido” (Bazin). 

Este filme, duma beleza alucinante, é um filme sobre o cosmos. Os três elementos – terra, água e fogo – que dominam a obra, marcam, mais do que a hostilidade dos habitantes da ilha, a separação e desarmonia de Karin, a mulher que não sabe o significado da palavra terra (“como se diz terra em inglês”?) que cai na água, na única sequência em que entra no mar, e sobre a qual desaba o fogo do vulcão, cuja erupção começa exactamente quando ela acende o fogão da sua casa. 

Rejeitada pelo espaço físico e humano, Karin só na espantosa sequência final, quando redescobre, ao mesmo tempo, as lágrimas e a maravilha do mundo (what beauty!), é capaz de clamar e invocar “Deixei que se aproximassem de mim os que não me interrogavam e deixei que me encontrassem os que não me procuravam”. A epígrafe de Isaías que antecede o filme assume, nesse momento, a sua plena significação. 

Stromboli é o poema da criação. 

in Folhas da Cinemateca.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

147ª sessão: dia 17 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Depois de Viagem em Itália e Europa 51, regressamos à mítica e proveitosa colaboração entre Roberto Rossellini e Ingrid Bergman,  nos anos 50, com a exibição do primeiro filme que fizeram juntos, Stromboli, a nossa próxima sessão no auditório da Casa do Professor.

Num texto que escreveu para os «Cahiers du Cinéma», Dix Ans de Cinéma III, Rossellini debruça-se sobre Stromboli, dizendo que "(...) o que me interessava abordar era o tema do cinismo, sentimento que representava o maior perigo do pós-guerra. Karin, especulando sobre a ingenuidade do amor de um soldado, pobre ser primitivo, casa com ele tendo como único objectivo sair do campo de concentração; ela troca o arame farpado pela ilha, mas aí encontra-se mais aprisionada; o sonho dela era outro. Mulher forte e decidida, que tinha passado pelos dramas e pelas dificuldades da guerra safando-se sempre, melhor ou pior, é presentemente vítima de pequenas coisas estúpidas: um marido que é um bruto, uma pequena ilha sem vegetação, duplamente prisioneira pelo facto de estar grávida; para ela, estar grávida é estúpido, humilhante, ignóbil e boçal; decide partir; mas no cume do vulcão, que é obrigada a contornar para chegar a um pequeno porto do outro lado da ilha, no meio de uma natureza hostil, quebrada pela fadiga, dominada por um terror primitivo, num desespero animal, inconscientemente invoca Deus. «Meu Deus!» É a invocação mais simples, mais primitiva, mais comum que pode sair da boca de um ser invadido pelo sofrimento. Pode ser uma invocação maquinal ou a expressão de uma verdade muito elevada. Num caso como no outro, é sempre a expressão de uma mortificação profunda que pode ser também o primeiro sinal de uma conversa.*"

* Essa é a construção dramática do filme. Mas não é difícil descortinar as minhas intenções, diria mesmo o meu voto, por pouco que nos demos ao trabalho de ler o versículo da Bíblia que aparece em epígrafe após o genérico de Stromboli: «Acolhi aqueles que nada me pediam. Deixei que aqueles que não me procuravam me encontrassem.»

No seu livro monumental sobre Rossellini, The Adventures of Roberto Rossellini, Tag Gallagher defende que "(...) o problema da Graça—com que a Igreja se debateu durante séculos, e pela qual se lutou a Reforma—é que ficamos desamparados sem ela, mas a salvação também depende da nossa própria força de vontade. Karin nunca se “põe” a si mesma nas mãos de Deus. Deus encontra-a. Ela teve “medo" a vida inteira. Só aí é que ela se ergue da “posição de cobarde,” se torna ela mesma e aceita a responsabilidade e a sua própria força de vontade. E este era o entendimento de Rossellini em 1949. Como nota Morlion, para Rossellini “segurança interna” não significa “uma resignação mística e abstracta à vontade de Deus, mas uma aceitação totalmente consciente da condição humana concreta de si próprio mesmo na tristeza, e portanto uma capacidade de ser coerente consigo mesmo.”

"Portanto o tema do filme não é a dependência animal de Karin ou aquilo que Karin vai fazer. É que a liberdade requer força, compreensão e coragem, e que Karin aceite finalmente responsabilidade. O objectivo de Rossellini é claro, quando corta para pássaros a voar no seu último plano. Foi concedida a liberdade a Karin. Karin alcançou a liberdade."

No Dicionário, Jacques Lourcelles escreve que Stromboli é a "primeira das seis longas-metragens que Rossellini vai realizar com Ingrid Bergman, série de filmes capital no cinema do pós-guerra pela sua modernidade, a sua coerência e a sua beleza. A maior parte destes filmes relatam a experiência de um casal inicialmente mal combinado. Mas aqui, Bergman ocupa quase sozinha o centro da acção e a sua aventura essencial é a descoberta de uma terra e, através dela, da presença de Deus. O título italiano Stromboli, terra di Dio deve ser tomado à letra. Rossellini é o cineasta da encarnação por excelência e essa descoberta só se pode realizar numa dimensão cósmica, fundamental ao filme. Intimismo e intuição cósmicos, ligados entre si por uma vontade visceral em apreender a realidade no que tem de mais concreto, são os dois eixos do cinema moderno do pós-guerra de que Rossellini é simultaneamente o fundador e o melhor representante. A modernidade de Stromboli e dos outros filmes da série não seria nada, ou melhor, não existia, se não fosse também fruto das pesquisas de um artista admirável, tão grande pintor como grande dramaturgo e no qual o suposto amadorismo encontra uma capacidade fulminante de conceder à sua visão um carácter de novidade absoluta e universalidade, ao mesmo tempo. Só Walsh e Murnau é que foram capazes, por exemplo, de integrar tantas camadas de realidade numa só sequência – integração que consegue ligar o cosmos inteiro a uma experiência individual (cf. a sequência da pesca do atum em que à espera e ao silêncio se sucedem o contentamento e o júbilo antes de irromper essa violência de pânico que vai concluir a cena). A acção do filme também é toda de uma peça só, de uma fundição apenas, que visa fazer passar a heroína sem transição, nem progressão, nem dialéctica, de uma recusa total da realidade que a rodeia para uma aceitação quase milagrosa desse ambiente, apreendido então como um meio divino. Sob o plano formal, essa fundição única refere-se à mesma ambição de um Preminger, por exemplo, ou de todos os cineastas que desejam que os seus filmes dêem a impressão de ser constituídos apenas de um plano longo único. Essa exigência de unidade caracteriza esta modernidade do cinema que surgiu depois da guerra. Stromboli beneficiou, se assim se pode dizer, do escândalo, nascido durante a rodagem, da revelação dos amores entre a actriz, casada e mãe de uma menina de dez anos, e o realizador, esposo de Anna Magnani num país em que o divórcio não existia. Isso não impediu o filme de conhecer um fracasso notório e de ser massacrado pela crítica internacional. Na sua autobiografia, Ingrid Bergman evoca de maneira apaixonante a rodagem do filme, que se estendeu por cento e dois dias, os métodos de trabalho insólitos de Rossellini, que a irritavam frequentemente, e sobretudo a sua própria tensão interior. De alguma forma exilada, encurralada pelo seu isolamento e pelas responsabilidades que os produtores americanos tentavam fazer pesar sobre ela (não hesitando em argumentar, por exemplo, que se ela não mudasse de comportamento, os seus últimos três filmes, Joana d'Arc, Sob o Signo de Capricórnio e este arriscavam ser banidos para sempre), como é que ela não se havia de sentir irmã da heroína que interpretava? E ao longo do filme essa proximidade parece dar uma intensidade suplementar ao génio da actriz. Bergman e Rossellini, produtores do filme, desentenderam-se com a RKO, a companhia de distribuição, durante a rodagem. Rossellini montou a sua própria versão do filme (de 106'), explorada apenas em Itália e naturalmente dobrada em italiano, enquanto os americanos fabricaram uma versão de 77' distribuída nos Estados Unidos e na Europa. (Em 1982, o Cineclube da Antenne 2 mostrou uma versão fiel pelas imagens à montagem de Rossellini e que continha o som inglês original, o que faz dela indubitavelmente a melhor versão possível deste filme.) A comparação entre a montagem de Rossellini e a montagem americana (acessível em cassetes comerciais inglesas e americanas) oferece a oportunidade de uma extraordinária lição de cinema, sendo o trabalho dos montadores americanos tão detestável e ao lado do alvo, e reforça assim a de Rossellini de forma espectacular. Além da adição de uma pequena apresentação documental (em estilo « travelogue ») da ilha no início do filme, além da supressão de uma das mais belas cenas (a errância de Bergman pelo labirinto da aldeia e o seu encontro com os velhos trabalhadores que lhe restauram a casa), além da intervenção por duas ou três vezes de uma voz off explicativa que cria o seu próprio final feliz em vez do fim em suspenso que Rossellini queria (de facto, a voz diz que Karin compreendeu que só encontraria paz de alma se regressasse para o lado do seu marido), todas as escolhas pontuais dos montadores americanos são catastróficas. Por vezes suprimem pedaços de planos (ex: a chegada do marido na cena da serenata, que agora parece cair do céu) ou planos inteiros (ex: a admirável abertura da sequência em que Karin, deitada nas rochas, vê um bando de miúdos a correr) ou séries de planos (o início do interrogatório de Karin no campo), por vezes acrescentam um plano geral para concluir uma sequência da forma mais convencional (ex : a da missa), etc. Única adição interessante da versão americana : uma sequência curta em que Antonio obriga a mulher dele a ajoelhar-se diante do túmulo de sua mãe. 

"BIBLIO.: Rossellini comentou o seu filme («O que me interessava tratar, era o tema do cinismo, o sentimento que representava o maior perigo do pós-guerra...») em diversos textos e entrevistas dadas aos «Cahiers du Cinéma» em 1954 e 1955. Foram retomados no volume «Rossellini : le cinéma révélé» (Éditions de l'Étoile, 1984) que contém uma notável filmografia do cineasta que devemos a Adriano Apra, Philippe Arnaud e Marco Giusti. (Reedição pela Flammarion, 1988.)"

Até Quinta!

Fängelse (1949) de Ingmar Bergman



por Ingmar Bergman

Se se fizer um filme barato, o filme mais barato alguma vez feito num estúdio sueco, tem-se a enorme liberdade de trabalhar totalmente como ditam a consciência e a invenção. Por esse motivo, decidi reduzir os custos a torto e a direito. O plano foi-se formando da seguinte maneira: Reduzir o número de dias no estúdio. Construção limitada de cenários. Sem figurantes. Sem música, ou uma quantidade mínima. Banir as horas extraordinárias. Acesso limitado à celulóide. Planos de exteriores sem som ou iluminação. Todos os ensaios se devem realizar fora do período de rodagens. Começar cedo nas manhãs. Garantir que se evita a filmagem de material desnecessário. Aperfeiçoamento meticuloso do argumento. [...] 

Obviamente que nem todos os filmes podem ser feitos num orçamento tão mínimo. Mas mesmo assim tenho a impressão de que as disposições externas são frequentemente sobrestimadas, e de que a organização e a execução técnica de uma rodagem de cinema podia ser realizada de forma mais inteligente e prática nos filmes suecos. 

Olhando para dentro, Hitchcock fez uma contribuição importante em termos de revolucionar a tecnologia do cinema, trabalhar de forma mais premeditada e compacta. Eu próprio acredito que aquilo que ele alcançou nesta área vai ser gradualmente reconhecido pelas pessoas no lado técnico dos filmes, e que o vão pôr ao lado dos pioneiros entre os quais pertence justamente. 

Foi a trabalhar desta forma que ele acabou de terminar um filme chamado A Corda (proibido pelos censores na Suécia e condenado na América, mas pode ser bom de qualquer forma), que é o resultado concentrado de uma experiência técnica longa e paciente. (Para quem estiver interessado, pode-se acompanhar isto de filme para filme.) O processo em si mesmo dificilmente parece digno de nota: ele usa cenas longas. Mas: usa cenas longas que ninguém repara que sejam especialmente longas. 

Como toda a gente sabe, um filme é composto à volta de trezentos e quinhentos fragmentos que são colados para formar uma tira longa (o próprio filme). Actualmente, Hitchcock não utiliza trezentos fragmentos, mas antes dez, onze ou quinze. No entanto, isto requer uma abordagem completamente nova e diferente ao planear uma rodagem, uma sincronização e um acordo entre o realizador, o director de fotografia, o cenógrafo e o engenheiro de som que ultrapassam qualquer compreensão. O que se precisa de alcançar é uma coordenação meticulosa entre os movimentos da câmara e dos actores, por um lado, e por outro a adequação da cenografia. 

Com um acordo como este, o realizador ganha bastante tempo (tempo é dinheiro, no estúdio), continuidade e concentração. Ele perde certas oportunidade para cortar uma passagem aborrecida, encurtar uma pausa ou mexer no ritmo. A montagem realiza-se na câmara, e como se pode perceber, não se recomenda o processo ao realizador que quer uma vida fácil, a actores que sofrem de má memória, ou ao director de fotografia cujos nervos não sejam os mais fortes. Eu pratiquei esta técnica de Hitchcock na medida do aplicável. Acho que o resultado foi bem sucedido. Quer dizer, não se nota nada de inconveniente. 

in «Stockholms-Tidningen», Março de 1949.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

146ª sessão: dia 15 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Para o início desta semana voltamos atrás no tempo até à sexta realização de Ingmar Bergman, considerada por muitos como o primeiro grande trabalho de fôlego do realizador. Sobre um realizador de cinema a quem é proposto, por um antigo professor saído recentemente de um hospício, fazer um filme sobre a realidade do inferno na terra, Prisão, de 1949, é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em Bilder, e sobre a génese deste filme, Bergman escreveu que "durante o Verão anterior eu tinha escrito a história de Birgitta Carolina na forma de um conto longo com o título de "História Verdadeira", aludindo a um género muito popular nas revistas semanais da altura que se chamava 'histórias verdadeiras da vida'. Eu queria que a minha história fosse assim: com balanços inibidos entre o sentimentalismo descarado e os sentimentos genuínos. Estava extremamente satisfeito com o título do filme, achando-o adequadamente irónico. Mas o meu produtor, Lorens Marmstedt, que sabia tudo o que havia para saber sobre o público de cinema sueco, disse que as pessoas não percebiam a ironia; iam só ficar zangados como o diabo. Pediu-me para arranjar outro título. Primeiro, pensei em A Prisão e depois Prison, simplesmente, que era típico dos anos 40 e, na verdade, um título muito pior do que História Verdadeira.

"Quando entreguei o argumento a Lorens Marmstedt, hesitei, e disse qualquer coisa como, "Não te tens de incomodar com isto. Mas se a dada altura tiveres tempo e disposição, dá uma vista de olhos". Nem sequer dei uma oportunidade à Svensk Filmindustri para o ter em consideração, percebendo totalmente que seria inútil. Dois dias depois, Lorens telefonou-me e disse na sua forma evasiva, "Muito tocante... Não sei... talvez... no fim de contas. Tocante, mas não comovente! Não se consegue dizer. Talvez? Quão rápido consegues trabalhar?". "Dezoito dias. Menos que dezoito dias, não", disse eu. Depois discutimos actores, e ele foi ligando e disse a cada um deles, "Não conte receber o seu salário normal porque isto é um filme artístico e tem de se sacrificar alguma coisa pela Arte!" Eu próprio não recebi um tostão, só 10 por cento dos lucros. Nunca houve quaisquer lucros!"

No seu blog, o amigo Sérgio Alpendre diz que "num dos momentos brilhantes da mise en scène bergmaniana, estamos num set de filmagem e prepara-se uma cena que mostra um casal conversando dentro de um barco e no meio de um lago. Só que eles estão num estúdio, a água é retro-projetada e o reflexo no rosto deles é dado por um pequeno rebatedor. Quando o diretor diz ação, a câmera do filme se movimenta para a frente até se confundir com a câmera do filme dentro do filme, e o que temos é o processo inverso do que faria Jerry Lewis anos depois em The Ladies Man e The Patsy: Bergman começa nos entregando a mentira, o artificialismo do estúdio, para terminar com o fruto dessa mentira, tornado verdade pela representação cinematográfica. O filme dentro do filme se transforma no filme, e o que vemos é o mesmo que verá esse hipotético espectador do filme que estão fazendo. 

"É brilhante, mas também é um sinal de que Bergman tem plena consciência de que a grande força de Prisão é esse embaralhamento de instâncias. Embaralhamento reforçado, no mesmo sentido, na cena em que Birgitta observa a conversa de um outro casal da escada da pensão onde mora. Graças a um falseamento do cenário, Bergman nos mostra que ela acompanha a conversa de um lugar privilegiado, quase um camarote de um teatro, enquanto o casal não percebe que ela continua ali. Ou não pode ver, já que nesse momento Birgitta deixa de ser personagem para ser também uma espectadora, e volta a ser personagem quando o plano acaba, ela vira o rosto na nossa direção e o foco de luz surge para percebermos sua expressão desolada."

Já Robin Wood, menos generoso no seu livro de 1969 sobre o cineasta, acha que "Prisão é um filme empolado e entediante invalidado no fim das contas pela tendência para inflacionar uma neurose pessoal numa Visão de Vida. A sua tese explícita é a de que a vida na terra já é o Inferno, que o diabo comanda. Mas tudo o que se pode deduzir a partir das provas que apresenta é que algumas pessoas são muito sujas e outras muito ineficazes. Nesta fase do seu desenvolvimento, Bergman estava demasiado preso às suas obsessões para ser capaz de uma compreensão genuína das personagens e situações a que dão origem. No entanto, a intensidade da expressão que as obsessões produzem é já impressionante e pessoal. Prisão parece o trabalho de um estudante talentoso e tecnicamente muito precoce a quem foi concedido o tipo de recursos com que os estudantes sonham mas raramente têm: tecnicamente, é um trabalho muito ambicioso e elegante.

"As pretensões do filme são sugeridas de forma clara e bastante desarmante pelo famoso pastiche de comédia muda - o filme que Birger Malmsten e Doris Svedlund projectam para si próprios durante o seu breve período de felicidade sentenciada num sótão. (é citado um fragmento em Persona.) Tem uma função dupla: por um lado, é a ocasião para um momento partilhado de relaxamento e divertimento inocente enquanto as duas pessoas são retiradas de si próprias e das suas respectivas "prisões"; por outro, e paradoxalmente, o filme resume a ideia da vida-como-inferno numa forma burlesca esquemática. Se a minha memória de dez anos está correcta (tendo desaparecido inexplicavelmente tudo menos o início do pastiche da cópia de 16 mm disponível na Grã-Bretanha), a sequência mostra actos burlescos característicos de agressão mútua e de superação febris, até aparecer a morte na figura de um esqueleto e derrotar toda a gene. A ideia é original e arrojada, mas falha por duas razões: 1) Assim que se percebe o objectivo da sequência-pastiche, a sua inclusão parece irritantemente arbitrária e intrusiva. Bergman resolveria o problema de forma brilhante, depois, com o número dos Palhaços em Noite dos Saltimbancos e a canção dos bobos sobre "O Preto na Costa" que acompanha a sedução mútua de Skat e Lisa em O Sétimo Selo, ambas das quais têm uma função igualmente simbólica ao mesmo tempo que surgem naturalmente da acção dramática. 2) Dada a desproporção e o artifício do contexto em que nasce, as pretensões generalizantes da sequência tornam-se inaceitáveis. A asserção de que a vida é insuportavelmente dolorosa é uma a que Bergman regressou posteriormente; mas é uma coisa no contexto de Persona, outra bem diferente no contexto de Prisão."

Até Terça-Feira!

domingo, 13 de outubro de 2019

Raiku Samuwan in rabu (2012) de Abbas Kiarostami



por João Palhares

«Lately, I find myself gazing at stars» 

Johnny Burke, in «Like Someone in Love». 

Copie Conforme, que era para ser exibido neste ciclo (chegou mesmo a ser anunciado até uma reviravolta inesperada nos obrigar a substituí-lo por Santiago, Itália de Nanni Moretti), já parecia tocar na ferida. Uma mulher e um homem que podem ou não ser um casal percorrem a Toscana cheios de rancores, dúvidas e arrependimentos. Se forem mesmo um casal, a distância e os ressentimentos afastaram-nos tanto que se tornaram estranhos um para o outro. Se forem estranhos, o fechamento e a solidão corroeram-nos tanto que à primeira oportunidade se tentam fazer um casal. Apesar da aparente predominância da questão estética, artística e filosófica das cópias e dos originais, que é um gimmick, mas permite a Kiarostami transformar tudo constantemente (ilustrações notáveis: o plano em que Jean-Claude Carrière parece estar a gritar com a mulher no meio da praça, mas quando se vira o vemos ao telefone; o plano longo fabuloso em que Juliette Binoche e William Shimell saem do café e se tornam um casal), desemboca tudo no sentimento, no nosso mundo e na realidade. Não há saída de nós nem do eu. 

Que mais podia experimentar um cineasta que, como Rossellini, parecia ter experimentado de tudo, dos avanços e recuos de um rapaz com um cão pela frente (Nan va Koutcheh, que exibimos em 2016) às simples expressões de caras de mulheres a ver um filme (Shirin), passando pelos cinco planos de dezasseis minutos que compõem Panj? A resposta pode ser uma produção europeia com uma actriz francesa que, como Ingrid Bergman, disse que não a Hollywood e escolheu o seu próprio realizador. Fora do Irão, com um guião de rodagem, actores profissionais, uma equipa técnica e um plano de trabalho. “Com os meus últimos filmes, Dez, Panj e Shirin”, disse Abbas Kiarostami a Jacques Mandelbaum em 2009[1], “cheguei ao final de qualquer coisa. Só me podia repetir. A passagem a um nível mais profissional pode ter um grande benefício para mim, mesmo que não pretenda romper com a minha ideia de cinema.” E claro que os métodos não mudaram e o realizador iraniano pôde repetir cenas e planos até ficar completamente satisfeito. Por isso é que a estranheza do já referido plano da transformação de Binoche e de Shimell, em que falam em francês juntos pela primeira vez, transcende toda a filosofia e toda a semiótica das suas conversas – é uma revelação alcançada com um trabalho muito concreto.[2]

***

Porque é que estamos tão sozinhos? Porque é que às vezes somos os nossos piores inimigos? Porque é que mesmo havendo saúde e alguma estabilidade, que sempre nos disseram ser o mais importante, nos deixamos ser invadidos pelo maldito pica-pau da consciência? Frases que se repetem na mente e nos assombram os dias só a torcer por um esgotamento ou uma crise de ansiedade, prelúdios para a bipolaridade ou para a esquizofrenia. E vai-se repetindo que “tens a tua saúde, que é o que é importante,” e vai mais um. “Há pessoas a passar fome, os teus problemas não são nada,” e vai outro. Milhões de pessoas assim, a tentar gerir as suas inseguranças e receios, sonhos e esperanças, mundos em si próprias à espera de desbravar outros mundos. Um plano aparentemente muito mal enquadrado de um bar com a voz de uma rapariga ao telefone. Há uma mulher que se vira e vai olhando: o que é que se passa? Fala para alguém, preocupada. Levanta-se e senta-se à nossa frente. Corta e somos situados na acção, mas o mote já está lançado. Confusão, colisões e sonhos perdidos, esperanças furadas. Começa assim, Like Someone in Love

Uma rapariga que se vê obrigada a trabalhar como acompanhante para pagar os estudos em Tóquio, cidade de doze milhões de habitantes. Mente ao namorado, que começa a achar que se passa alguma coisa. Uma amiga que a cobre e a ajuda. Um chulo que lhe diz que tem um cliente muito importante. Uma avó que veio a Tóquio e a quer ver, tem-lhe telefonado o dia inteiro, sem sucesso. Um escritor e tradutor com uma certa idade que quer companhia para o jantar - tem saudades da família. Um rapaz ciumento e obsessivo que mostra cedo ao que vem, com pouca cabeça e bom senso. São as pessoas que povoam este filme, que não vem reconfortar ninguém. E por muito que Kiarostami experimente, seja com ângulos fixos de câmara dentro de carros ou reflexos e transparências em capôs ou janelas, é sempre o sentimento que fica connosco. Sete mensagens de voz ouvidas em auriculares, com a vida nocturna de Tóquio a passar-nos à frente dos olhos. Uma rotunda circundada duas vezes a deixar-nos com o coração nas mãos: técnica e emoção. Um cerco a uma rapariga e a um velho só com passos e pancadas na banda-sonora, provando que é possível expressar o maior perigo e a maior tensão com os menores meios. Seja no Irão, na Toscana ou no Japão.

[1] in «Kiarostami fait sa révolution en tournant un film en Italie avec Juliette Binoche», Jacques Mandelbaum, Le Monde, 4 de Julho de 2009.
[2] Pode-se voltar a citar o artigo de Mandelbaum: “Dois dias passados no local, 29 e 30 de Junho, são suficientes para constatar que toda a rodagem é imprevisível e misteriosamente inspirada. Uma espécie de destruição graciosa do plano de trabalho. Assim, são dedicados dois dias à realização de um plano-sequência de apenas dez minutos: as duas personagens saem de uma ruela e depois discutem na praça central da vila, à sombra de uma verdadeira igreja barroca e de uma falsa escultura no estilo antigo. 
“O número de tomadas é incalculável, assim como as variações introduzidas progressivamente pelo cineasta: diálogos, figurantes, cenários, movimentos, posições da câmara, e até a presença de uma flor em campo. Tudo é sujeito a uma recomposição constante e minuciosa sobre a matéria.”

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

145ª sessão: dia 10 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Sem o Kiarostami inaugural, o passeio transformador de Juliette Binoche e William Shimell em Copie Conforme, ficamos com o Kiarostami de Like Someone in Love. Fábula urbana passada no Japão entre uma estudante com vida dupla, o namorado agressivo e desconfiado dela e um senhor cujo único pecado talvez tenha sido ouvir música a mais, é a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em entrevista ao Notebook, e quando lhe falaram do primeiro plano do filme, Abbas Kiarostami disse que "tanto com a sequência final como com a sequência de abertura, mesmo depois do processo de escrita e durante todo a rodagem, fiquei realmente a pensar se eram apropriadas. “Apropriadas” não quer dizer que não sejam apenas boas—porque eu tinha a certeza de que eram uma boa forma de abrir o filme, para o meu gosto—“apropriadas” significa se é aceitável para o público. Algo não invulgar em demasia para as pessoas perceberem ou seguirem. As aberturas são difíceis, dá para ver com os romances: se se for verificar as bibliotecas das pessoas vêem-se muitos livros cujas primeiras dez páginas foram lidas e as restantes estão novinhas em folha e intocadas. Portanto as aberturas são difíceis, muitas vezes as pessoas saem depois do início porque ficam desconcertadas e não conseguem aderir à coisa. Finalmente decidi fazê-lo, embora soubesse que podia ser difícil e se algumas pessoas como vocês pudessem gostar e achar uma boa forma de começar o filme, outras podiam-se sentir desconfortáveis durante o filme todo por causa da forma como começava. Mas mais uma vez, eu sabia que era fiel à realidade—a história já tinha começado. Quando se apanha uma conversa num café, as coisas começaram antes de se ouvir, e não sabemos para onde vamos e ainda temos de nos pôr a par com a realidade, e era assim que eu o espectador se sentisse. Mesmo para a mise en scène dessa sequência, sabia que à medida que ia, menos gostava de cortes, não gosto de sequências montadas em que a câmara aparece e procura a pessoa, a pessoa com quem é suposto a personagem estar a falar. Eles têm de vir para a câmara, não é suposto a câmara aparecer e encontrá-las. Portanto decidi ter esta cadeira [vazia] e ter o casaco do chulo na cadeira para sabermos que era esta a cadeira para onde as pessoas vinham. E as pessoas viriam umas atrás das outras para ter uma conversa com a personagem principal. Estava consciente desses aspectos todos, sabia que talvez fosse um pouco desconcertante; mais uma vez, é pouco comum. Mas acho que está certo para uma conversa e uma história que tinham começado antes de nós. Quando se está a ouvir, quando se está a ser indiscreto, não se pode pedir às pessoas para virem ter connosco e nos explicarem. Juntam-se as peças para perceber o que é que está a acontecer."

No seu blog, por alturas do lançamento do filme em Portugal, Carlos Melo Ferreira assumiu que "(...) devo sublinhar a ousadia de Abbas Kiarostami em não nos dar "mais do mesmo" e se reinventar contra as expectativas dos seus incondicionais admiradores. Na idade dele e com a obra que ele tem atrás de si, mudar de rumo e enveredar pelo inesperado, contra toda a sinalização deixada atrás de si, significa inconformismo e manter à distância os que, dando-o precipitadamente por acabado, lhe queriam erigir um monumento definitivo em vida. Contudo, e se bem nos lembrarmos e repararmos, ele foi sempre, mesmo na sua obra anterior a Dez/Ten (2002), um cineasta inquieto, em cujos filmes a pacificação, quando aparecia, era após um árduo percurso, como em Através das Oliveiras/Zire darakhatan zeyton (1994), o que em O Vento Levar-nos-á/Bad ma ra khahad bord (1999) já só acontecia de maneira muito problemática.

"Sei de quem tenha ficado decepcionado, o que compreendo mas não é o meu caso. Quanto menos previsível e menos feito a um lugar na história mais eu gosto dele e o aprecio. Não é de cineastas ou artistas pacificados que eu gosto, mas dos que se rebelam contra si próprios com novas propostas que não sabemos, como eles não sabem onde os vão conduzir. É com inconformismo consciente que um grande cineasta como Kiarostami se reinventa e do mesmo passo reinventa o cinema."

Já o saudoso Pierre Rissient, em 2012, escreveu que "sem dúvida, havia uma sensação subjacente de depravação corrosiva que vinha à tona em Copie Conforme e me apanhou de surpresa. Eu tinha a certeza de que já tinha um bom entendimento do trabalho deste cineasta com quem tenho tido a sorte de me cruzar tantas vezes nos últimos 25 anos. Portanto não estava à espera que o seu último filme fizesse aumentar a opinião já elevada que tinha do seu trabalho. Algumas pessoas gostam de achar que podem descrever e arrumar os seus filmes como ‘modernismo pseudo-simplista’. Mas os filmes de Abbas nunca deixaram de surpreender e agora aqui, não pela primeira vez, eis uma nova chamada de atenção, para mim, e tenho a certeza que para muitos outros. Com este filme, Abbas leva o seu cinema para outra dimensão. 

"Like Someone In Love disseca o próprio espírito dos seres humanos, sonda os seus sentimentos mais privados, sentimentos que nem eles conhecem e que revelam o destino que toma conta de cada um deles de forma inextricável. Um destino que os parece ter levado a todos na mesma onda de alta rotação, antes de os cuspir a todos, nus e gelados. Eu já tinha sentido estas marés de emoção quando lia as páginas de Alfred Hayes. As palavras dele conseguiam-me absorver, levar-me com elas e deixar-me desnorteado. Assustavam-me, e quanto mais era tomado pelo medo, mais lúcido ficava. Também devia mencionar a luz negra com que Carco pensava conseguir espectrografar a vida interior das suas personagens e a vida em torno delas."

Até Quinta!

Santiago, Italia (2018) de Nanni Moretti



por Inês Lourenço

Cineasta que nos habituou a uma marcada atitude política, o nome do italiano Nanni Moretti antecipa alguma informalidade. Vem logo à memória Palombella Rossa (1989) e a sua metáfora aquática da então conjuntura do Partido Comunista Italiano, ou o "diz qualquer coisa de esquerda", que ele pronuncia enquanto assiste a um debate televisivo entre Berlusconi e o socialista Massimo d"Alema, no filme Abril (1998). O que esperar deste Santiago, Itália? Tudo menos isenção. 

Antes de mais, a pergunta deve ser: porquê um documentário sobre o golpe de Estado chileno? Moretti não é homem de se meter num projeto por mero desígnio pedagógico. E a prova disso é que Santiago, Itália – como o título sugere – tem um caminho a fazer, não apenas geográfico mas de relação com a atualidade. Entenda-se: sondar os eventos dos anos 1970, no Chile, significa chegar à importante ação de acolhimento que a Embaixada de Itália teve, na altura, para com os refugiados políticos. Um elogio que se impõe ser feito em plena era da política anti- imigração do governo italiano. Eis o "golpe" cívico de Moretti. 

Com um vasto painel de entrevistados, entre os quais os realizadores chilenos Patricio Guzmán (Nostalgia da Luz) e Miguel Littín (Actas de Marusia) – cujas filmografias estão intimamente ligadas à história política do país –, o documentário segue os relatos da alegria gerada pela eleição de Salvador Allende e a subsequente queda trágica do regime democrático, com a atmosfera que se gerou e os ataques àqueles que advogavam ideias de igualdade e liberdade, num genuíno espírito coletivo. As histórias pessoais de tortura misturam-se com uma visão mais abrangente dos acontecimentos, e então chega-se ao essencial: o modo como estes opositores das forças de Pinochet foram recebidos na Embaixada italiana num ambiente de solidariedade e confraternização. Encontraram no asilo uma nova esperança. 

Intercalando os depoimentos com algumas imagens documentais, é sobretudo desse fluxo de palavras ("as palavras são importantes", já gritava Moretti em Palombella Rossa) e, por vezes, de silêncios comovidos, que se faz Santiago, Itália. Um documentário que começa por dar uma falsa sensação de abordagem convencional para afinal se revelar no percurso e nos detalhes. Veja-se, por exemplo, a maneira como Moretti capta a "personagem" que existe num ser humano: uma mulher, com jeitos de diva, que relata o seu caso de tortura como quem está a falar de manicura... Essa não formatação da vítima, essa atenção ao diverso, é também uma qualidade de quem sabe observar o outro. Porém, é ainda noutra particularidade que a índole do cineasta se estabelece. Dando voz a dois militares, isoladamente, para ter também o seu ponto de vista nesta recolha, a certa altura, um deles indigna-se com as perguntas e diz que tinha sido convocado para uma entrevista imparcial. Ao que Moretti, na sua assertividade refrescante à frente da câmara (na única vez que o faz), responde: "Eu não sou imparcial". 

Este é também o desafio que se lança ao espectador, medir o grau de (im)parcialidade para com o que acontece à sua volta. E a beleza de uma tomada de posição é quanto basta para tornar Santiago, Itália um documento pleno de fraternidade, contra o veneno das sociedades individualistas. 

in «Santiago, Itália. O olhar não isento de Moretti sobre o golpe chileno», Diário de Notícias, 12 de Setembro de 2019.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

144ª sessão: dia 8 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Como no ano passado, com o ciclo dedicado ao "Belo e a Consolação", este ano voltamo-nos a associar aos Encontros da Imagem. A temática deste ano, "What Now", alusiva ao estado actual do mundo, permitiu-nos escolher oito filmes. Nanni Moretti surge em substituição de última hora de Abbas Kiarostami e, assim, Santiago, Itália tornou-se a nossa próxima sessão na Casa do Professor.

Em entrevista ao L'express no início deste ano, e quando lhe perguntam porque escolheu uma história tão antiga para o seu filme, Nanni Moretti responde que "primeiro, descobri durante uma conferência que dei há dois anos, em Santiago, uma bela história italiana de que nos podemos orgulhar. Mas percebi o motivo da minha abordagem quando a situação política e social mudou, com a chegada ao poder de Matteo Salvini [vice-presidente do Conselho de Ministros]. Grande parte da nossa sociedade tomou uma direcção contrária aos valores da solidariedade e da compaixão para com o outro."

Quando lhe perguntam, na mesma entrevista, porque é que acha que os embaixadores italianos fizeram mais do que os outros na situação chilena, ele diz que "são os indivíduos que fazem a diferença, não o país. Nessa altura, houve dois jovens diplomatas italianos que tomaram imediatamente a decisão certa. O Chile de Allende era observado com muito interesse daqui. O partido comunista italiano estava-se a livrar de forma penosa e lenta da sua dependência da União Soviética. Ora, a chegada de Allende ao poder era uma experiência de socialismo democrático, um socialismo novo que não tinha nada que ver com a URSS de Nikolaï Podgorny, a Cuba de Fidel Castro ou a China de Mao Tsé-Tung. Também havia analogias: sob o plano político, a Itália e o Chile funcionavam com um partido de democracia cristã, um partido comunista, um partido socialista, radicais, católicos de esquerda, uma esquerda revolucionária... Forçando as coisas, podia-se ver uma simetria entre os dois países mesmo se as desigualdades sociais e económicas fossem mais importantes no Chile."

Para o Le Monde, Jacques Mandelbaum escreve que "é uma «bela história italiana», como adora repetir o seu autor. Essa história, é o papel exemplar de alguns jovens diplomatas da embaixada italiana em Santiago, no Chile, durante o golpe de Estado liderado especialmente pelo general Pinochet em Setembro de 1973. Há cerca de seiscentos opositores, a fugir da ditadura sangrenta de que o presidente socialista democraticamente eleito Salvador Allende vai ser uma das primeiras vítimas, a encontrar refúgio por trás das paredes da embaixada, onde se instaura ao improviso uma vida comunitária antes desses homens e dessas mulheres serem finalmente acolhidos pela Itália.

"O homem que evoca esta história, é o cineasta Nanni ­Moretti, que só muito raramente se aventura no terreno do documentário. Foi preciso que essa história, de que tomou conhecimento como todos os jovens italianos da sua idade solidários com a luta do povo chileno, lhe fosse lembrada por terceiros, durante um encontro um bocado ao acaso, para que se lançasse nesta aventura pouco habitual. Mas o acaso existe mesmo? Pode-se colocar a questão mesmo agora que a situação política italiana, virando para uma direita em parte fascista, alcança no fim do caminho o próprio tema do filme."

Para a Visão, Manuel Halpern escreve que "Santiago, Itália, o documentário de Nanni Moretti, é justamente feito do lado das vítimas. Conta-nos as histórias e o sofrimento de uma das mais atrozes ditaduras da América Latina. Começa, claro, em Allende, na esperança democrática e progressista, prontamente minada pelos grandes interesses, ao ponto de ser deposto e morto num golpe de Estado, fomentado, entre outros países, pelos EUA. Aos momentos de festiva liberdade dos tempos de Allende contrapôs-se o regime de sinistra crueldade de Pinochet, que perseguiu de forma obsessiva todos aqueles que apoiavam o deposto Presidente.

"A Embaixada de Itália, uma das poucas que mantiveram as portas abertas em Santiago, serviu de asilo para cerca de 750 refugiados, que saltavam clandestinamente o muro em busca de abrigo. Moretti conta, essencialmente, as histórias dos refugiados chilenos, que se estabeleceram em Itália à espera da queda do regime. Santiago, Itália é um Moretti atípico, puro documentário, em que o realizador assume uma espécie de missão, um serviço público, contra o esquecimento da História. Ao enaltecer o papel de Itália durante a ditadura chilena, quando o país se tornou um porto de abrigo, Moretti faz implicitamente um contraponto com o radicalismo do ex-ministro Salvini, perante a crise do Mediterrâneo."

Até Terça-Feira!