quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ogin-sama (1962) de Kinuyo Tanaka



por Alexandra Barros

No século XVI, o Japão vive um período de grande instabilidade política. Dividido em centenas de territórios feudais (daimiados[1]) o país está mergulhado em guerras entre dáimios[2]. O xogum Toyotomi Hideyoshi procura unificar o país, mas os dáimios convertidos ao cristianismo representam uma ameaça à hierarquia social tradicional, fortemente ligada à religião xintoísta e cuja figura suprema (equivalente ao “Papa” cristão) é o Imperador. 

Takayama Ukon, dáimio e samurai cristão, é um nobre ostracizado pelo xogum e tornado alvo da sua perseguição. Ukon mantém uma forte e longa amizade com Sen Rikyû, famoso mestre da Cerimónia do Chá, com quem estudou as sofisticadas artes do ritual. Nessa altura, conheceu Ogin, filha adoptiva de Rikyû. Ogin alimenta desde então uma intensa e obstinada paixão por Ukon, mas ele é casado e muito devoto. 

A história do amor proibido entre Ogin e Ukon é o fio condutor do filme, mas nessa história cruzam-se outras linhas: a própria História do Japão, questões de fé e a identidade e cultura nipónicas. Tal como em filmes anteriores, a presença de elementos culturais e históricos da sociedade japonesa não é mera decoração. É através destes elementos que a realizadora expressa reflexões, preocupações, posicionamentos e estados de alma, tanto das personagens como próprios. Aliás, Tanaka está entranhada nas mais notáveis personagens dos seus filmes. O que é da primeira derrama-se nas segundas; interligam- se, confluem, confundem-se. 

Em Para Sempre Mulher, filme que fechou o primeiro ciclo que dedicámos a Tanaka, a realizadora deu um lugar central à poesia tanka, estilo clássico da literatura japonesa. Agora, neste seu sexto e último filme, esse lugar cabe à Cerimónia do Chá, ritual de grande importância na cultura tradicional japonesa. Kinuyo Tanaka respeita os tempos da cerimónia e dedica grande atenção às suas particularidades: gestos, objectos, significados. Serve-se dessa tradição para colocar em confronto duas visões e formas de estar no mundo. De um lado, o humanismo, simplicidade e sintonia com as leis da natureza de Rikyû; do outro, o despotismo, crueldade, presunção e vaidade ostensiva do xogum. A opulenta sala de chá de ouro de Hideyoshi ou a escolha criteriosa de convidados para a cerimónia do chá de Rikyû são particularmente eloquentes. 

Senhora Ogin contém, além do olhar para a identidade nipónica, outros assuntos recorrentes nas obras da realizadora: a condição e (sobretudo) a sexualidade feminina, casamentos arranjados, romances proibidos, mulheres que recusam conformar-se às convenções sociais e procuram viver de acordo com as suas convicções ou vontade individual. Partilha ainda, com o já referido Para Sempre Mulher, a atenção aos detalhes e o simbolismo associado a objectos, gestos, lugares e paisagens. Além dos objectos envolvidos na Cerimónia do Chá, uma cruz e um leque expressam, em diversos momentos, sentimentos não verbalizados ou acções que adivinhamos, mas a que não assistimos. A cruz, que vemos inicialmente no pescoço de Ukon, será transferida pelo mesmo para Ogin, “amarrando-a” à abstinência sexual e à fidelidade aos mandamentos cristãos. Ogin, porém, reiteradamente rejeitada por Ukon, virá a arrancar violentamente a cruz do pescoço. Mais do que às boas-venturas celestiais, Ogin aspira à felicidade terrena. Mais tarde, uma outra cruz caída no chão, revelará o que Kinuyo Tanaka decide deixar fora de campo. 

Tal como os objectos, também a luz, as cores e os trajes estão carregados de forte simbolismo, espelhando emoções ou antevendo destinos. Visualmente, o filme é belíssimo: admiráveis cores e efeitos de luz, paisagens notáveis, jardins meticulosamente concebidos, interiores minimalistas sofisticadamente apurados, esplêndidos quimonos. 

O uso da luz é especialmente simbólico numa cena premonitória do filme. Ogin assiste ao “calvário” de uma rapariga, que será crucificada por não se ter submetido aos desejos de um dáimio. A serenidade que transparece no rosto da rapariga impressiona Ogin que, num momento de epifania, decide tomar o controlo do seu próprio destino. A morte de Cristo na cruz é denominada Paixão e é vista como um exemplo supremo de amor altruísta. Jesus escolheu voluntariamente sofrer e morrer na cruz para salvar a humanidade e reconciliá-la com Deus, seu Pai. Morte voluntária, paixão, e amor altruísta fecham a história de Ogin. Ela escolhe a morte para salvar o pai; para não se submeter a um homem que não deseja e que despreza; para se manter fiel a uma inabalável, ainda que impossível paixão. Ogin morre, enfim, sob o signo da sua audaz fúria de viver[3].

[1] Daimiado - território governado por um dáimio.
[2] Dáimio - Senhor feudal, possuidor de terras e líder de hostes militares. Os dáimios, sob a dependência do xogum, controlaram grande parte do território do Japão, num modelo de governo que se manteve vigente entre cerca do século X até à segunda metade do século XIX. (Fonte: infopedia.pt)
[3] Fúria de Viver – Filme de Nicholas Ray, já apresentado pelo Lucky Star, sobre um grupo de jovens à procura do seu lugar num mundo de grande violência física e psicológica e, principalmente, absurdo. Voltamos a este grande realizador no próximo mês, com um ciclo que lhe é inteiramente dedicado.



domingo, 25 de fevereiro de 2024

332ª sessão: dia 27 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


O último filme realizado por Kinuyo Tanaka, terça-feira na BLCS 

Em Fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga dedica as suas terças-feiras à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, de quem já exibiu três filmes em Novembro do ano passado. As sessões realizam- se às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Kinuyo Tanaka foi uma actriz e realizadora nascida em 1909, na cidade de Shimonoseki, e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa.

O ciclo dedicado à cineasta, intitulado “Voltar a Tanaka - A Mulher de Quem se Fala”, termina Terça-Feira às 21h30 com a exibição de Senhora Ogin, de 1962, a última longa-metragem realizada por Kinuyo Tanaka, uma adaptação do romance homónimo de Tōkō Kon protagonizada por Ineko Arima e Tatsuya Nakadai. 

A obra ambienta-se no final do século XVI, no Japão. O cristianismo vindo do Ocidente é banido no país, mas a Senhora Ogin (Ineko Arima) apaixona-se por um samurai devoto, Ukon Takayama (Tatsuya Nakadai). O guerreiro decide dedicar-se à sua fé e Ogin casa com um homem que não ama. Alguns anos depois, o samurai regressa e confessa-lhe o seu amor. Ela quer libertar-se, mas iniciam-se as perseguições anti-cristãs... 

“Gin não é uma excepção na galeria das personagens em busca do seu lugar,” escreveu Mario Vitale sobre este filme em 2015. “É a última de uma série de personagens femininas na filmografia de Tanaka com sentimentos e desejos constantemente adiados e submetidos a sucessivos códigos de conduta que têm de ser desafiados.” 

“Há aqui, de novo, um combate íntimo entre religião e blasfémia que não deixou de surgir desde o primeiro filme que Tanaka realizou,” continuava Vitale. “Em Carta de Amor, cujas últimas palavras são os famosos versículos de João 8:7, conviviam a idealização e a prostituição. Para Sempre Mulher renunciava o consolo religioso perante o avanço do cancro e do desejo sexual. Senhora Ogin é o último eco do “God isn’t enough” que a devota e excitada Agatha Andrews murmurava na última obra-prima que Ford rodaria quatro anos depois.” 

“Repleta de cenas de simbologia cristã,” terminava, “Tanaka é capaz de as combinar de forma tão harmoniosa como ousada: o único encontro sexual dos protagonistas é precedido de uma lavagem dos pés e sucedido por um banho quase baptismal; a cruz, o símbolo supremo do cristianismo, aparece e reaparece para ser escondida, arrancada raivosamente, observada em procissão ou orgulhosamente colocada...” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Onna bakari no yoru (1961) de Kinuyo Tanaka



por Estela Cosme

Como se pode escapar ao passado quando ele é ilegal? Como se pode refazer uma vida que o estado considera imoral? As mulheres que lideram o centro de reabilitação de Shiragiku parecem pensar que é através do trabalho árduo, submetendo as ex-prostitutas a tarefas domésticas e manuais que visam transformar as suas vidas, afastando-as assim da profissão que estão agora proibidas de exercer. A lei implementada em 1957 surgiu do boom que a atividade teve no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, levando à pressão da sociedade para legislar medidas de proteção e reabilitação para as trabalhadoras, evitando a sua persistente exploração. Contudo, ao perder a sua única forma de sustento, estas mulheres não têm alternativa a não ser submeter-se a estes centros corretivos e aprender a distanciar-se de uma vida criminal. Mas a adaptação não é minimamente fácil pois fora do seu reformatório a sociedade continua a julgá-las e a desdenhar as suas tentativas de conversão. É Kuniko, a protagonista de Mulheres da Noite, quem descobre isso repetidamente, levando-a a um destino turbulento e amargo. 

A profissão mais velha do mundo é também aquela que mais dá que falar. Debatida pela sua moralidade (ou falta dela), não é de surpreender que seja retratada no cinema de forma tão variada, do mais banal ao mais sóbrio (isto quando não é adereço para as mulheres na vida de protagonistas masculinos). A romantização da prostituta Vivian em Um Sonho de Mulher (1990) e a glamourização de Satine em Moulin Rouge! (2001) em nada representam as realidades das profissionais do sexo. A inocente Iris de Taxi Driver (1976) existe quase apenas para alimentar o delírio do protagonista que decide salvá-la. Já Séverine de A Bela de Dia (1967) leva uma vida dupla, na qual encontra na prostituição uma libertação das suas fantasias sexuais e dos seus problemas matrimoniais. Bella Baxter no recente Pobres Criaturas (2023) vê na atividade uma continuação da sua exploração do mundo e do seu interior feminino. No anterior ciclo de Fassbinder, vimos como a protagonista de Lola (1981) aproveita a sua profissão para manipular as pessoas à sua volta. Quase todas elas apresentam algum grau de influência que as permite progredir social ou economicamente ou até ter algum proveito pessoal, romântico ou sexual. Perante estas representações ilusórias, as mulheres de Tanaka surgem como uma verdadeira antítese e talvez por isso seja um filme tão doloroso de presenciar, embora seja um antecessor a todos os aqui mencionados. 

Este filme foi escrito por Sumie Tanaka (adaptando um romance de Masako Yana) e certamente não será surpresa descobrir que também foi a guionista de Para Sempre Mulher (1955) de Kinuyo Tanaka, talvez o filme mais perturbador da realizadora até este. Todas as suas obras são centradas em mulheres, com vertente feminista, mas os dois filmes que fez com Sumie Tanaka são-no de forma mais vincada. Já tínhamos também assistido ao retrato de prostitutas em Carta de Amor (1953), mas este é apenas o ponto de partida para explorar o trágico romance entre os protagonistas. Certamente não é tão gráfico e realista na forma como retrata as trabalhadoras, sendo o seu contexto histórico muito diferente. Mulheres da Noite surge uns meros quatro anos após a implementação da lei anti-prostituição japonesa e tanto realizadora como escritora certamente detetaram uma urgência em retratar a nova realidade. O resultado é ferozmente comovente e talvez seja a lição mais empática que Tanaka nos ilustra. 

Kuniko não é uma personagem livre de defeitos. Afinal, ela reverte para os seus velhos costumes como forma de escapar à humilhação da sua primeira patroa, seduzindo sem remorsos o seu marido influenciável. Cansada de se esconder, no seu seguinte emprego decide assumir quem foi, uma honestidade que a aliena das suas novas colegas de trabalho. Kuniko rejeita os seus pedidos de prostituir-se e como tal vingam-se nela fisicamente. A violência ilustrada é de tal magnitude que se torna um tormento assistir à sua brutalização, sendo o momento de mutilação para além de agonizante. A agressão é ainda perpetrada por outras mulheres semelhantes a ela, que se julgam dignas de imputar e executar a Kuniko o castigo mais horrendo. Numa cena realizada de forma sucinta mas altamente eficaz, Tanaka roga-nos que não sejamos indiferentes aos infortúnios que acodem a mulheres como Kuniko. 

Já as cenas em que vemos Kuniko no seu terceiro emprego parecem etéreas, como se estivéssemos a ver outro filme, aliviados de ver Kuniko rodeada por filas e filas de flores na qual surge um novo amor, delicado e fugaz após tanto sofrimento. Contudo, é bom demais para durar e o passado volta a assombrá-la mais uma vez quando descobre que ela e o seu amado não podem casar, uma vez mais pelos seus crimes imorais. Por momentos pensamos que isto a levou a regredir para o lugar onde começou mas respiramos de alívio quando a vemos numa praia, com uma rede às costas, bem longe do seu passado, quer recente quer distante. Ela agora é uma ama, profissão japonesa de pescadores de pérolas e mariscos, uma humilde profissão para quem ainda anseia recomeçar outra vez. Esta é a sua quarta tentativa. 

Talvez seja aqui que o seu passado possa ser finalmente lavado, expurgado, um renascer assegurado como o sol que nasce todas as manhãs sobre o mar em que agora mergulha. Talvez aqui se aperceba que uma mulher tem sempre o poder de se reconstruir, uma e outra vez. E a vontade de uma mulher resiliente nunca ninguém pode ilegalizar.



domingo, 18 de fevereiro de 2024

331ª sessão: dia 20 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Penúltimo filme de Kinuyo Tanaka para ver na BLCS 

Em Fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga dedica as suas terças-feiras à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, de quem já exibiu três filmes em Novembro do ano passado. As sessões realizam-se às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Kinuyo Tanaka foi uma actriz e realizadora nascida em 1909 e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa. 

O ciclo dedicado à cineasta, intitulado “Voltar a Tanaka - A Mulher de Quem se Fala”, continua terça-feira às 21h30 com a exibição de Mulheres da Noite, filme que marca a segunda colaboração de Kinuyo Tanaka com a argumentista Sumie Tanaka, depois de Para Sempre Mulher

O filme centra-se numa jovem japonesa, chamada Kuniko, que tenta recompor a sua vida num centro de reabilitação para ex-prostitutas. Arranja emprego numa mercearia, mas o casal que a contratou descobre a antiga profissão dela e ela acaba por voltar para o centro. Depois doutro emprego gorado numa fábrica, consegue ser contratada para trabalhar numa estufa de rosas, onde parece correr tudo bem até o passado voltar para a atormentar. 

“Tanto Kinuyo Tanaka como Sumie Tanaka nasceram no final da era Meiji (1868–1912),” escreveu Ayako Saito no livro colectivo Tanaka Kinuyo - Nation, Stardom and Female Subjectivity, de 2018, “mas as suas educações e contextos sociais eram contrastantes.” 

“Kinuyo nasceu em 1909 na cidade de Shimonoseki,” continua Saito, “e foi criada em Osaka durante grande parte dos anos de formação. Nascida no seio de uma família respeitável, mal foi capaz de frequentar o ensino básico devido à morte prematura do pai e às subsequentes dificuldades financeiras que a família enfrentou.” 

“Embora a informação sobre a sua vida privada seja escassa,” termina ela, “sabe-se que Sumie Tanaka nasceu em Tóquio em 1908, um ano antes de Kinuyo. Frequentou a Escola Superior Feminina de Tóquio (antiga Universidade de Ochanomizu, uma das universidades para mulheres mais prestigiadas do Japão), o que indica uma origem de classe média independente da situação financeira da família.” 

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Ruten no ôhi (1960) de Kinuyo Tanaka



por João Palhares

Três ideias na retina enquanto as semanas nos vão desafiando a sair de casa para às vezes fazer coisas que não temos grande vontade de fazer ou ouvir coisas que não queremos ouvir. “Podem dizer o que quiserem da ditadura, mas desde que eu tenha o meu dinheiro tanto me faz se vivo numa democracia ou numa ditadura.” O estado do mundo também não ajuda, os temas parecem invadir tudo e o facto de uma melodia nos dizer alguma coisa ou um plano nos deixar boquiabertos pode parecer para os outros a coisa mais insignificante do mundo. Uma das reacções possíveis talvez seja ir gritar “DARIO ARGEEEENTO!” para o meio da rua, só que convertidos nem vê-los. A ideia de que se partilha um segredo ou se vislumbra um mistério também pode ser suficiente, mas se calhar é um bocado perigoso. Por sabermos por exemplo que às vezes se anuncia cinema às segundas-feiras, mas o cinema infelizmente não sai à rua connosco. Por concordarmos ainda com Manoel de Oliveira, que quando foi acusado de reaccionário pelos colegas de profissão por se ter fechado num estúdio durante o 25 de Abril e ter feito Benilde, lhes respondeu que “o cinema revolucionário está atrasado em relação à revolução.”

O tema não é tudo. Quando as legendas não eram prática corrente e os filmes se viam na mesma, Jacques Rivette lembrou-se de escrever que Mizoguchi não era um nome próprio, mas sim uma “língua familiar. Qual? A única que almeja qualquer cineasta: a da mise en scène.” Um encadeamento de imagens, se trabalhado, pode ser suficiente para nos situar e nos fazer perceber certas coisas mesmo que não entendamos japonês, ou chinês, ou até italiano, espanhol ou inglês. Isto foi há sessenta e seis anos, portanto não é de admirar que hoje baste para um cineasta grego esquecer totalmente a sua língua, contratar actores americanos, ingleses, alemães e até fadistas portuguesas e pô-los a dizer as coisas certas com os planos errados para ser levado a sério e conquistar o mundo e os seus pares. É uma grande chatice, para quem nunca viu o filme, saber que houve um cientista que trocou o cérebro duma mulher pelo duma criança, que se fala de filosofia e de socialismo e que alguém morre no fim, porque o tema é tudo.

Mas felizmente as ideias, de alguma forma, vão passando. Wyatt Earp, vindo de nenhures como um pequeno ponto no horizonte, chega à cidade de Wichita. Apreensivo, aceita o cargo de xerife e proíbe o porte de armas nessa pequena cidade no oeste americano. Toda a história do filme nos é contada no genérico pela voz de Tex Ritter numa bela canção escrita por Hans Salter e Ned Washington, pelo que sabemos que as descobertas terão de ser outras. Entre mais de cem ideias, uma que fica: num dos momentos mais tensos do filme, Wyatt Earp sai de uma confrontação com um velho aliado que agora é seu inimigo e a esposa deste último segue Wyatt até à porta para ver se há hipóteses de reconciliação. Não há. Wyatt sai de casa deles e é atacado por homens a cavalo que disparam na sua direcção. Ele baixa-se e corta para um plano de uma porta crivada de balas. Num instante percebemos que a esposa morreu, noutro intuímos que quanto mais uma pessoa se arma e se protege e se encerra e se ressente maiores são as probabilidades de que o mundo lhe bata à porta e ela vá desta para melhor. É em Wichita, do grande Jacques Tourneur, e foi possível vê-lo no canal Fox Movies na tarde de dia 3 de Fevereiro de 2024.

Uma viúva paga os estudos da filha com o seu negócio de gueixas, o que causa um distanciamento triste e trágico entre as duas. Há um médico jovem por quem ambas se interessam até se conseguirem encontrar uma à outra. A certa altura, vêem os três uma peça. Entre possivelmente cem ideias, das quais fazem parte o labirinto dos sentimentos demonstrado no labirinto da casa que os três percorrem perto do final do filme e a apresentação da dita peça com um travelling para a frente que encontra os actores e um travelling para trás que encontra os três apaixonados, uma que fica: dois dos actores da peça falam de uma terceira, uma velha apaixonada, e apontam para ela dizendo, “olhem para ali. É a velha nos auges da loucura.” E não a vemos a ela, mas à viúva, num plano mais aproximado, e o teatro sai dos seus palcos para o teatro da vida através do cinema. É em A Mulher de Quem se Fala, do grande Kenji Mizoguchi, e foi possível vê-lo no auditório da BLCS na noite de 6 de Fevereiro de 2024.

Uma jovem japonesa é escolhida através de uma fotografia pelo irmão do imperador da Manchúria, sendo obrigada a abandonar a família e a casar com ele sem encontrar uma vida melhor ou propriamente imperial. O exército do império japonês controla tudo e tinha a esperança de que a jovem actuasse pelos interesses deles, mas ela acaba por se afeiçoar ao marido. Entre praticamente cem ideias, pois talvez não estejamos nas alturas de A Lua Ascendeu ou Para Sempre Mulher, mas das quais fazem parte o belíssimo prólogo do filme, depois o genérico com a jovem esmagada e siderada pelas imagens dos soldados que passam por ela e o final misterioso e poético em que as palavras obedecem a um tempo e as imagens a outro tempo, uma que fica: por um enquadramento pelos pés, que à primeira vista até pode ser confundido com uma dança inocente, vemos uma arma que cai e um corpo que se põe por cima dela em posição horizontal. As implicações tornam-se óbvias mesmo antes da princesa dizer, “Podes sempre morrer mais tarde, mas não abandones o teu imperador.” É em A Princesa Errante, da grande Kinuyo Tanaka, e será possível vê-lo hoje, dia 13 de Fevereiro de 2024, no auditório da BLCS.



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

330ª sessão: dia 13 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


“A Princesa Errante” para ver no cineclube 

Em Fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga dedica as suas terças-feiras à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, de quem já exibiu três filmes em Novembro do ano passado. As sessões realizam-se às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

Kinuyo Tanaka foi uma actriz e realizadora nascida em 1909, na cidade de Shimonoseki, e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa. 

O ciclo dedicado à cineasta, intitulado “Voltar a Tanaka - A Mulher de Quem se Fala”, continua esta terça-feira às 21h30 com a exibição de A Princesa Errante, com Machiko Kyô no papel principal, a quarta longa-metragem realizada por Kinuyo Tanaka, em 1960, primeira a cores e em scope. 

Este filme de Kinuyo Tanaka passa-se em 1937, durante a ocupação japonesa da Manchúria. Escolhida através de uma fotografia, Ryuko (interpretada por Machiko Kyô), uma jovem japonesa, é convidada a ir para a Manchúria para se casar com o irmão do Imperador, tendo que se habituar a uma nova vida como princesa. Mas quando os soviéticos invadem, Ryuko foge com a filha e com a própria Imperatriz. 

“Poucas carreiras na interpretação se podem igualar à de Tanaka Kinuyo,” escreveu Mario Vitale em 2015. “Na excelente pedreira do cinema japonês, muito poucas como ela - na parte da sua enorme filmografia que sobreviveu, e dentro desta, a parte que ultrapassou as fronteiras japonesas com as imprescindíveis legendas - conquistaram a câmara transmitindo autenticidade e emoção, modernidade e classicismo, oferecendo ao ecrã uma poderosa combinação de fragilidade sobre-humana que para mim só permite comparação com Lillian Gish.” 

“A sua imensa popularidade e o seu prestígio como actriz deixou demasiadas pessoas cegas e surdas,” continua Vitale. “Felizmente vão caindo quase todos os véus para que possamos ir descobrindo o seu talento descomunal como realizadora de cinema.” 

Graças à distribuidora lisboeta The Stone and the Plot, toda a obra de Kinuyo Tanaka como realizadora está agora disponível em Portugal. Para a semana, dia 20 de Fevereiro, o cineclube exibe o seu quinto filme, Mulheres da Noite

As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Uwasa no onna (1954) de Kenji Mizoguchi



por António Cruz Mendes

No mês de Fevereiro, vamos passar um novo ciclo de filmes consagrados a Kinuyo Tanaka. No primeiro, na sua condição de actriz, desta vez num filme de Mizoguchi; nos seguintes, A Princesa Errante, Mulheres da Noite e Senhora Ogin, na de realizadora. Não por acaso, todos eles têm mulheres como protagonistas. 
 
A Mulher de quem se Fala foi o último dos dezassete filmes que Kinuyo Tanaka fez com Mizoguchi. Dele se diz que foi um filme “mal-amado” pelo próprio realizador, que embirrou com os argumentistas (“uma merda de história, sem interesse”) e o considerou como “um compasso de espera” que precedeu as obras-primas que se lhe seguiram. Recorde-se que, ainda em 1954, realizou O Intendente Sanshô e Os Amantes Crucificados. Mas, o facto do filme que exibimos hoje não se encontrar à altura destes ou de outros dos seus melhores filmes, não significa que estejamos na presença de uma obra depreciável. Parece-me mesmo notável a sequência onde Yukiko se apercebe de que Matoba, com quem se prepara para ir viver para Tóquio era, afinal, o amante da sua mãe, alguém que explorava os seus sentimentos para conseguir o dinheiro que necessita para abrir uma clínica. O filme atinge, então, o seu climax quando as personagens deste triângulo amoroso percorrem os espaços labirínticos da casa, que podemos ver como a expressão plástica da teia de enganos onde Hatsuko e Yukiko se enredaram, ora surpreendendo conversas que lhes revelam a verdade, ora isolando-se para decidir o rumo das suas vidas. 
 
Kinuyo Tanaka interpreta em A Mulher de quem se Fala a figura de uma dona de uma casa de gueixas. Aparentemente, é uma pessoa dura, que gere o seu negócio de uma forma pragmática. Porém, alimenta um sonho de amor. Foi casada pelos pais com um desconhecido, mas tem ainda a esperança de o poder encontrar na companhia de Matoba. Essa ilusão vai ser posta à prova quando assiste a uma peça de teatro que satiriza os amores de uma velha por um homem mais jovem. 
 
Mizoguchi frequentava aquelas tradicionais “casas de prazer” e a sua irmã mais velha foi vendida pelo seu pai para ser explorada como uma gueixa. Talvez por esse motivo e também porque desaprovava a forma como o seu pai tratava a sua mãe, o tema da condição feminina vai ser recorrente na filmografia de Mizoguchi. Nos filmes realizados por Kinuyo Tanaka, ele vai ser dominante. 
 
O filme inicia-se com a chegada de Yukiko a casa da mãe e as primeiras imagens mostram-nos que ela se encontra ali como um corpo estranho. As gueixas usam quimono, uma maquilhagem pesada e penteados tradicionais. Yukiko, com uma postura discreta, roupas ocidentais e cabelo curto, faz-nos lembrar uma Audrey Hepburn deslocada dos EUA para um outro tempo e espaço. Pertence, como nota uma das gueixas, a uma “outra classe”. Enoja-a a boçalidade dos clientes da casa da sua mãe, muitas vezes embriagados, e a forma como as raparigas se deixam usar por eles. Isola-se no seu quarto e sofre quando pensa que o dinheiro que lhe permitiu estudar teve origem no negócio da sua mãe. 
 
Mas, a sua perspectiva começa alterar-se quando Usugumo adoece. Começa, então, a vê-las como pessoas dignas da sua afeição. No bordel, viram-se reduzidas a meros objectos do desejo masculino, mas continuam a ser fiéis aos seus deveres familiares e sujeitos dos seus próprios sonhos. Foi o seu desejo de amor que levou Kisaragi a fugir com um cliente que apenas a pretendia explorar. E, quando Chiyo lhe pede para a aceitar como gueixa, substituindo a sua irmã, porque só assim poderá ajudar o seu pai, doente, compreende que aquela profissão pode ser, por vezes, uma solução para a miséria a que se viram condenadas. 
 
Por fim, desfeitos os seus sonhos de regressar aos estudos em Tóquio e de casar com Matoba, é Yukiko que substitui a mãe na gerência do negócio. O pragmatismo impôs-se ao seu idealismo, as velhas tradições ao sonho de novos tempos. Na cena final, uma gueixa apresenta-se ao olhar submisso de Chiyo, a jovem e ingénua camponesa, magnificamente adereçada, um objecto de luxo, uma soberba oferta destinada a um cliente mais endinheirado. E pergunta: “Até quando, haverá necessidade de raparigas como nós?”



domingo, 4 de fevereiro de 2024

329ª sessão: dia 06 de Fevereiro (Terça-Feira), às 21h30


Kinuyo Tanaka, “A Mulher de Quem se Fala”. 
 
Em Fevereiro, o Lucky Star – Cineclube de Braga dedica as suas terças-feiras à cineasta japonesa Kinuyo Tanaka, de quem já exibiu três filmes em Novembro do ano passado. As sessões realizam-se às 21h30 no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 
 
Kinuyo Tanaka foi uma actriz e realizadora nascida em 1909, na cidade de Shimonoseki, e falecida em 1977. Como intérprete, foi mesmo uma das mais famosas actrizes do Japão e apareceu em mais de 200 filmes, trabalhando com cineastas tão importantes como Yasujiro Ozu, Hiroshi Shimizu, Kenji Mizoguchi, Mikio Naruse e Akira Kurosawa. 
 
O ciclo dedicado à cineasta, intitulado “Voltar a Tanaka - A Mulher de Quem se Fala”, começa hoje às 21h30 com a exibição de A Mulher de Quem se Fala, filme de Kenji Mizoguchi em que Tanaka é a protagonista, no papel de uma viúva que se quer aproximar da filha. 
 
O filme foi lançado em 1954, ano em que Mizoguchi realizou também os muitíssimo famosos e celebrados O Intendente Sansho e Os Amantes Crucificados, que não é pouco comum verem-se em listas dos melhores filmes de sempre. Faria mais três até 1956, morrendo em Agosto desse ano com cerca de cem filmes em seu nome e cinquenta e seis anos. 
 
“Só há duas actrizes no Japão,” disse Mizoguchi a Tsuneo Hazumi nos anos cinquenta, “Kinuyo Tanaka e Isuzy Yamada. Embora o público as critique de um ponto de vista relativamente artístico, pode-se dizer que estão na fase absoluta em que impõem as suas personalidades por si sós e são capazes de actuar seguindo as suas próprias naturezas. Passa-se o mesmo com os actores de teatro quando chegam a determinado ponto.” 
 
“Uma vez trabalhei com Shotaro Hanayagi,” continuava o cineasta. “Reparei que, para actores tão experientes como ele, actuar é viver completamente com a personagem. Isto é muito diferente do método de um actor de cinema banal que só sabe actuar no pequeno espaço marcado pela câmara. Do mesmo ponto de vista, tenho uma grande admiração por Louis Jouvet, o famoso actor francês.” 
 
“Quando eu dirigia Tanaka ou Yamada” concluía ele, “percebi que era inútil apresentar explicações minuciosas sobre os papéis delas. Tudo o que podia fazer era submeter-me ao seu estilo de representação e encontrar o ritmo exacto das suas acções.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem sempre às terças-feiras, às 21h30, e a entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do Lucky Star têm entrada livre.

Até Terça!