quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra



por João Palhares

Havia um rio chamado Lete, na mitologia grega. Ficava no submundo junto ao palácio de Hades, sob um cipreste. Dele bebiam os mortos para se esquecerem da vida terrena. Os romanos chamavam-lhe Lethes, ou flumen oblivionis, e localizaram-no geograficamente durante a conquista da Península Ibérica. Numa expedição liderada por Décimo Júnio Bruto em 137 a.C., os soldados, receando perder a memória, disseram ao comandante que não atravessariam o rio, o que levou o centurião romano a percorrê-lo até à outra margem para provar aos seus homens que as águas não tinham poderes místicos ou demoníacos, gritando os nomes de cada um deles do outro lado do rio para também eles o atravessarem. Esse rio era o Rio Lima, escondido numa névoa que ocultou também uma aldeia, um povo e um país.

Colheitas, desfolhadas e cerimónias com a idade do mundo, a vida e a morte, o trabalho e a diversão, o dia e a noite, as mulheres e os homens, a lua e o sol, o campo e as fábricas, a música e as canções que os acompanham, restos de milho a planar como halos sobre as meninas que trabalham, decanas a rirem-se de forma indulgente dos jovens quando dançam e bebem por já terem passado por tudo aquilo, entregas de sopa em termos no meio da praça, olhares de amor não dissimulados de uma mulher quando o homem, depois de se queixar da vida e dos filhos, lhe elogia a comida que cozinhou.
 
Manuela Serra, depois de estudar na Bélgica no Institut des Arts et Diffusion (IAD), de trabalhar na montagem de Deus, Pátria e Autoridade (1974) e fundar com os seus colaboradores e cúmplices de trabalho de então a Cooperativa Virver (onde foi produzido Bom Povo Português, em 1980), partiu para Lanheses ainda nos anos setenta, antes que os ventos do progresso levassem as memórias desses ritos ancestrais, deixando-as impressas no filme que resultou da sua vontade, da sua paciência e do seu labor, O Movimento das Coisas, terminado em 1985 mas estreado comercialmente em Portugal apenas este ano. 
 
Em entrevista a Ilda Teresa de Castro[1], em 2000, a realizadora confessou que "viajei sozinha de carro à procura da minha aldeia. No Alentejo não sentia empatia com as pessoas e senti algum preconceito por ser uma mulher sozinha. No Norte senti-me mais confortável enquanto mulher sozinha nas minhas visitas solitárias aos espaços comunitários. No Minho há uma alegria que falta em Trás-os-Montes e nas Beiras. Apetecia-me aquela alegria do colorido do Outono no Minho. Por coincidência, eu queria uma aldeia com rio e aquela, Lanheses, tinha um. Uma antropóloga que conheci falara-me dessa aldeia. Isso também me favoreceu, porque ela tinha estado por lá a fazer uma investigação e, portanto, as pessoas estavam um pouco mais receptivas à presença destas mulheres curiosas, que ali vinham." 
 
Com banda sonora de José Mário Branco, o filme nunca é apenas um registo de actividades e costumes antigos, abraçando cada aldeão e cada família, cada vida e cada gesto com uma imensa generosidade. Tempo para mostrar uma criança a tentar fazer a sua parte nas colheitas, para ver num rosto de uma mulher sonhos e ambições que vão para lá do Minho, para sintetizar num jantar e com muito humor os confrontos geracionais que se intrometeram entre tantas famílias portuguesas nesses anos de transição. Três dias em Lanheses, que já foram tantas Sextas-Feiras, Sábados e Domingos das nossas vidas passadas. 

Quando o nevoeiro mítico pousa sobre a aldeia com os sintetizadores de Mário Branco como música de fundo, com fábricas e tempos novos a assolar a paisagem, percebemos que vão ser muitas e terríveis as mudanças a atingir essa pequena povoação do norte de Portugal. Até já aconteceu. Mas como o centurião romano desses tempos idos que também são evocados pelo filme nas travessias plenas de névoas pelo Lima, nada esqueceremos graças a Manuela Serra. Atravessou o nevoeiro da memória e chamou toda a gente pelo nome. Arriscou tudo e mostrou-nos o movimento das coisas.

[1] Castro, I. T. de. (2012). À Volta d'O Movimento das Coisas - conversa com Manuela Serra. artciencia.Com, Revista De Arte, Ciência E Comunicação, (15).

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

212ª sessão: dia 27 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


Foi este ano que estreou finalmente um filme talvez apenas conhecido pelo público regular da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema e dos Encontros Cinematográficos do Fundão (cuja edição deste ano começa já na Sexta-Feira). O único e belíssimo filme de Manuela Serra, O Movimento das Coisas, é a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation.

No Jornal dos Encontros de 2011, o realizador Manuel Mozos introduz a obra "citando João Bénard da Costa sobre o filme O Movimento das Coisas: das múltiplas singularidades do cinema português, este filme e o seu destino são um dos casos mais singulares, aplicaria este pressuposto a Manuela Serra, a sua realizadora. 

"Nascida em Lisboa a 31 de Maio de 1948, estudou psicologia, curso que abandonou para, em Bruxelas – cidade a que chegou em 1971 – ingressar no Institut des Arts et Difusion (IAD), onde estudou cinema durante um ano e meio. Com o 25 de Abril de 1974, decidiu regressar a Portugal, abandonando o curso e, a convite de Rui Simões, que também frequentara o IAD, trabalhou como assistente de realização, e na montagem de Deus, Pátria, Autoridade (1975), por este realizado. 

"Entre 1975 e 1976, fundou, juntamente com Antónia Seabra e os ex-colegas do IAD – Rui Simões, João Brehm, Dominique Rolin, Gérard Collet e Richard Verthé – a Cooperativa de Cinema VIRVER. Participou nos trabalhos desenvolvidos pela Cooperativa, nos mais variados sectores: argumento, assistência de realização, produção, montagem, bem como animações culturais. No filme Bom Povo Português (1980), de Rui Simões, para além de ter sido assistente de realização, e ter participado no argumento, na produção e na montagem, teve também um breve desempenho como atriz, numa das raras sequências encenadas desse filme. 

"Em 1979 partiu para a rodagem da sua primeira e única obra enquanto realizadora: O Movimento das Coisas."

Em entrevista ao mesmo Manuel Mozos e para o mesmo jornal, a realizadora Manuela Serra admitiu que "Lanheses foi a minha aldeia eleita. Depois de Alentejo, Beira e Minho, verifiquei que no Norte as pessoas eram mais abertas, respeitavam-me quando entrava sozinha num café ou restaurante, ao falar da ideia do filme manifestavam recetividade e interesse. O Minho é mais alegre que a Beira e no Alentejo olhavam-me com desconfiança. Encontrei em Lanheses uma harmonia entre o rio, o largo, a igreja, o entrecruzamento da população, uma arquitectura ainda preservada, e também uma simpática pensão com abertura para aceitar uma equipa de filmagem um pouco excêntrica. Ficção, documentário, acho que fiz um bom casamento. Dando exemplos talvez seja mais fácil. Quando fiz a Isabel olhar para trás ao descer da camioneta (no largo) no regresso da fábrica, foi ficção pura, não foi pedir-lhe que representasse o seu próprio papel, foi para servir a minha ideia, olhar para trás, que sublinhei com o paralítico. Também a velhota que, sentada à mesa, bebe uma malga de vinho e olha a câmara é ficção. Quando se colocou a câmara fixa em tripé no largo e se esperou que acontecesse, uma mulher de trocha à cabeça, uma carroça que vem do campo e atravessa o largo, grupos de homens à conversa aqui é documentário, não houve planificação, só montagem."

Para o Ípsilon, por alturas da estreia tardia do filme, o José Oliveira escreveu que "O Movimento das Coisas, concretizado entre 1978 e 1985, nunca chegou a estrear comercialmente em Portugal. Manuela Serra, a realizadora, faz parte de um grupo muito estrito no mundo do cinema, ao lado de nomes como Charles Laughton, Barbara Loden, Peter Lorre ou Marlon Brando, entre outros muito raros, por demais corajosos. Ou seja, assinou só um filme, mas tocou em tudo o que importa no Cinema como na Vida, matéria e espírito – «um filme que vale por muitas vidas e múltiplos filmes» disse recentemente uma jovem admiradora a Manuela Serra na sessão de apresentação da cópia restaurada na Cinemateca Portuguesa. A história é conhecida por alguns: depois do 25 de Abril e na febre de liberdade e de cooperativas que pudessem alcançar e manejar tal sede, Manuela Serra, sempre valente, meteu-se num automóvel e, depois de tentar o Sul, os Centros e outras latitudes, foi parar ao Norte a conselho de uma sua conhecida antropóloga chamada Carol, encontrando o seu Paraíso numa pequena terra encravada entre Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo. 

"Lanheses, assim se chama esse Paraíso Perdido em relação ao caos do nosso dia-a-dia que aprendemos a abraçar como habitual, encerra ainda hoje uma beleza original que parece conservada desde os inícios da criação, e Manuela obteve-a imediatamente e em estado de graça por uma limpidez de aproximação e de olhar que todos os segredos e essências lhe retribuiu. Lanheses aparece na tela como lugar de beleza desmesurada, carregada de tempo sem tempo, espaço para todos os encantamentos e harmonias, numa abstração sem idade. Toda a inocência, as brumas e as águas densas e claras, os sentimentos e sentidos belos que inundam o filme, não são criação e forçamento da maquinaria, imaginação ou da técnica do cinema, mas estão lá, de raiz, emergindo em abundância numa única e fulgurante comunhão entre o que se filma e como se filma, quem representa e quem apreende, natureza e intenção. Para quem, como eu, nasceu e cresceu nessa zona, a experiência é de absoluta fidelidade e novidade, as coisas vistas e escutadas de muito perto ou de muito longe, olhadas como eu as conheço e como nunca as vi, tão nítidas ou finalmente libertas das ideias feitas ou do fenómeno das coisas. Lembro-me de a minha mãe cantar a música popular A Chibinha na cozinha ou a cortar feno, mas quando ela aparece no filme tudo se volve união estelar, transfiguração e catarse."

Até Quarta!

India: Matri Bhumi (1959) de Roberto Rossellini



por André Miranda

O filme a que hoje vamos assistir, que em português se chama simplesmente Índia, tem como título original India: Mathri Bhumi. Estas últimas duas palavras, Mathri Bumi, traduzem-se em português como Mãe Terra. Bhumi também é a deusa hindu da Terra, por vezes representada sobre as costas de quatro elefantes que significam as quatro direcções do mundo. 
 
A ideia do documentário surgiu de um convite feito pelo primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, a Roberto Rossellini, para que este gravasse um documentário sobre o país. O objetivo era o de mostrar a modernização e o florescimento da nação que há dez anos se havia libertado do jugo colonialista britânico. O pedido foi feito em 1957 e o filme apenas foi terminado e exibido em 1959. Pelo meio, Rosselini envolveu-se com a argumentista do seu filme, Sonali Senroy DasGupta, casada e vinte e cinco anos mais nova do que o realizador. O caso foi um escândalo na sociedade indiana. Mais tarde, Rosselini e Sonali casaram-se em Itália e permaneceram juntos até à morte do realizador italiano. 
 
Índia começa com imagens de Bombaim, a atual Mumbai, uma metrópole atarefada e moderna, símbolo de um novo país em construção. O narrador assume um tom propagandístico, quase ingénuo. Mas depressa ingressamos numa outra Índia, uma Índia vasta, rural, repleta de tradições. Surge um cinema híbrido, em que ao documentário se junta a ficção, a voz da narração muda, as personagens dos quatro contos assumem o destino das imagens e contam a sua história. 
 
A barragem construída pelo engenho humano, domina as monções e afoga o antigo templo. Uma Índia, que na visão de Rossellini, caminha no sentido do progresso, abandonando a tradição e substituindo a comunhão pelo conflito com a natureza.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

211ª sessão: dia 26 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Índia, de 1959,  surge no rescaldo de uma grande crise na vida pessoal e criativa de Roberto Rossellini. Foi o primeiro filme depois de um vazio de cinco anos e pode ser visto como um segundo nascimento na obra do italiano. É a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

No ano de estreia do filme, Jean-Luc Godard escreveu nos Cahiers du Cinéma que "enquanto não chega um estudo mais pormenorizado, algumas palavras de passagem: India é um filme de técnico apresentado em Cannes, juntamente com Hiroshima, mon Amour. Os outros, Nazarin e Les 400 Coups, eram filmes de aventureiros da película. India é o contrário de Orfeu Negro, no sentido em que o filme de Rossellini continuaria a ser belo, mesmo que tivesse sido rodado em Joinville. Mas isso não tem qualquer importância porque, como diz já não sei que livro da sabedoria, a verdade está em tudo, mesmo, parcialmente, no erro. Acho este "parcialmente" sublime. Explica tudo. Explica que o plano sobre o tigre seja em 16 mm ampliado e o contracampo sobre o velho em 35 mm. India segue a direcção oposta de todo o cinema habitual: a imagem nada mais é que o complemento da ideia que a provoca. India é um filme de uma lógica absoluta, mais socrático que Sócrates. Todas as imagens são belas, não por serem belas em si, como um plano de Que Viva Mexico, mas porque reflectem o esplendor do que é verdadeiro e porque Rossellini parte da verdade. Já lá chegou, a esse ponto a que outros só chegarão dentro de vinte anos, eventualmente. India engloba o cinema mundial, tal como as teorias de Riemann e Planck englobam a geometria e a física clássica. Num próximo número, demonstrarei por que razão India equivale à criação do mundo."

Explicando as suas novas ideias em entrevista a Fereydoun Hoveyda e Jacques Rivette, Roberto Rossellini declarou que "não quero deixar de dizer quais são as minhas preocupações de ordem moral. A arte abstracta passou a ser a arte oficial. Consigo compreender um artista abstracto, mas não consigo compreender que a arte abstracta se transforme em arte oficial, porque é, verdadeiramente, a arte menos inteligível. Fenómenos como este nunca se reproduzem sem razão. E qual é a razão? É para que se procure esquecer o homem o mais possível. Na sociedade moderna e no mundo inteiro, excepto, provavelmente, na Ásia, o homem passou a ser a engrenagem de uma máquina imensa, gigantesca.

"Transformou-se num escravo. E toda a história do homem é feita de passagens da escravatura à liberdade. Sempre existiu um determinado momento em que a escravatura foi preponderante; depois, a liberdade voltava a impor-se: muito raramente, ou durante períodos muito breves, porque, mal se alcançava a liberdade, imediatamente se reinstalava a escravatura. No mundo moderno, criou-se uma nova escravatura. E o que é essa escravatura? É a escravatura das ideias. E isso acontece através de todos os meios, desde o romance policial, à rádio, ao cinema, etc.. Graças ao facto, também, de que as técnicas se desenvolveram extraordinariamente e que os conhecimentos profundos que estão ao nosso alcance num domínio restrito, para serem eficazes do ponto de vista social, impedem o homem de adquirir outros conhecimentos. Já não sei quem dizia: "Vivemos no século da invasão vertical dos Bárbaros". Quer isto dizer: um extremo aprofundar do conhecimento em determinada direcção e uma imensa ignorância em todas as outras.

"Sempre ouvi dizer, desde que faço cinema, que é preciso fazer filmes para um público com a mentalidade média de uma criança de doze anos. É um facto que o cinema (falo do cinema em geral), tal como a rádio, a televisão ou todos os espectáculos dedicados às massas, dá origem a uma espécie de estupidificação dos adultos e, em contrapartida, acelera enormemente o desenvolvimento das crianças. Daí vem essa falta de equilíbrio que constatamos no mundo moderno: da impossibilidade que há de nos compreendermos."

Já João Bénard da Costa, para o catálogo «Roberto Rossellini e o Cinema Revelador», publicado pela Cinemateca Portuguesa em 2007, pediu-nos para retermos "estas ideias: penetrar no interior das coisas; importância das ideias sobre a importância das imagens; dizer e explicar e não apenas mostrar; numa palavra, - palavra que ele disse - pedagogia e não arte.

"Eis reunidas, a meu ver, todas as chaves para India, primeiro passo para dar a conhecer à humanidade "um sexto do género humano", primeiro passo para a luta contra o que chamou "a invasão vertical dos Bárbaros".

"Como tantos outros, Rossellini fez da sua viagem à Índia uma demanda espiritual, busca das origens, busca da mãe. Desesperando encontrar uma solução no Ocidente, julgou entrevê-la no Oriente, ou, pelo menos, na Índia como parte dele. Se assumiu o didactismo - ou se pôde parecer didáctico - foi porque queria ensinar a todos essa lição. India é o prefácio à educação integral que ele veio a preconizar, no fim da vida, num livro de 1976."

Até amanhã!

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Apresentação de "Terra", por Matheus Cartaxo

Terra (2018) de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres



por Alexandra Barros

Há um monte de terra: castanho-avermelhado, ocre, sangue-de-boi, canela, terracota, almagre, tamarindo. Há outro monte de terra com as mesmas cores. Há dois montes, portanto. Têm buracos e têm portas. São as casas dos fornos. Os buracos são chaminés. O fumo que sai é muito branco e nunca pára. Quando as portas são abertas, também sai fumo branco. Sai apressado, em nuvens branquíssimas e espessas e infinitas. Muito. 

Há um homem que coloca madeira e fogo dentro dos montes de terra. Os montes de terra e o tempo fazem o seu trabalho. 

Há um carrinho de mão da cor da pêra-rocha, um rio sempre a mudar de cor, uma floresta verde e cinza, um charco cor de ferrugem, troncos carbonizados, pedacinhos de carvão negro amontoados na erva verde-primavera, pilhas de madeira de azinheira, um tractor vermelho-pálido, sobreiros, pinheiros mansos, campos verdes e amarelos, um lago onde os homens se lavam. 

Há um teatro de sombras, sem ninguém a controlar marionetes. Há a sombra do homem que controla o fogo. Há a sombra do fumo desse fogo. 

Os montes de terra e o tempo fazem o seu trabalho. Os homens retiram do interior dos montes de terra o carvão que estes fizeram. 

Há luz matinal, sombras que tapam o dia e destapam a noite, caçadores que falam com pássaros, o som de ovelhas, chocalhos e trovoada, bandos de aves que voam em V. 

O lusco-fusco. 

É tudo muito bonito.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

210ª sessão: dia 20 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


À terceira é de vez. Depois de duas tentativas frustradas pela evolução da pandemia, podemos anunciar Terra de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres como a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation. Contaremos com a presença dos realizadores para uma pequena conversa sobre o seu filme no final da exibição.

Por ocasião da Mostra Perspectivas do Cinema Português, em que além de Terra também foi exibido Wolfram, Bruno Andrade, Matheus Cartaxo e Yuri Lins salientaram que "para fazer Wolfram – A saliva do lobo (2010), Joana Torgal e Rodolfo Pimenta levaram dois anos se familiarizando com a rotina das Minas de Panasqueira, no centro de Portugal, conhecendo os ritmos e a respiração própria de alguns dos maiores corredores subterrâneos do mundo e desenvolvendo técnicas especiais para registrá-los em vídeo. A câmera, apenas uma, e os microfones, instalados nas minas pelos cineastas como se fossem eles mesmos mineradores, acompanham máquinas que devoram a terra como monstros de alguma mitologia desconhecida, mas agora documentada. 
 
"A extração do minério em Wolfram é marcada por uma violência que faz os planos vibrarem, se chocarem, e que tem a sua contraparte em Terra (2018), de Hiroatsu Suzuki e Rossana Torres. À beira de um lago, trabalhadores fabricam carvão em fornos artesanais, num demorado processo filmado como um ritual quase panteísta em que a presença do mundo e a metamorfose de seus elementos são celebradas. A luz natural, os estalos da brasa e o sopro do vento preenchem os longos planos e a banda sonora, como também acontece, de forma menos concentrada, mais desprendida, nos dois outros filmes da dupla, Cordão verde (2009) e O sabor do leite creme (2012)."

Em entrevista a Daisuke Akasaka, em 2019, no âmbito dos Encontros Cinematográficos do Fundão, e quando este pergunta qual foi o ponto de partida do filme, Hiroatsu Suzuki respondeu que "quando eu vivi em Okinawa, vi o processo completo da feitura do carvão nas montanhas. Lá, normalmente, os fornos de carvão são perto da floresta, perto da lenha. Mas quando vi os dois fornos do Nuno perto do lago, eu senti que aquele lugar era único. Sempre tive um grande fascínio por fornos de todo o tipo: fornos de cerâmica, fornos de cal, fornos de pão… Tive a experiência de trabalhar num forno de cerâmica coberto de terra; ajudei a manter o fogo continuamente, durante mais do que uma semana, e, depois, a fechá-lo para arrefecer. Quando assisti à abertura do forno e se retiraram as peças lá de dentro… Parecia mesmo que se estava a retirar um tesouro do forno! Foi algo de mágico, alquímico, toda aquela transformação da terra em peças lindas. As peças nasceram do forno, e em mim nasceu também qualquer coisa de muito especial… 

"Desde os tempos de Okinawa que me interesso pela arquitectura que utiliza materiais naturais, como terra e cal. No Alentejo, há ainda muitas casas em taipa — uma técnica tradicional de construção com terra comprimida entre caixilhos de madeira (taipais). Visitei muitas casas em taipa. Toca-me ver na paisagem alentejana as ruínas dessas casas que com o tempo se desfazem e desaparecem, regressando de novo à terra. Os fornos de carvão estão cobertos com terra, terra do local, e isso também me despertou muito interesse."

Respondendo à mesma pergunta, Rossana Torres disse que "nesta zona, predominam os montados de azinheira, uma espécie de árvore que leva muitos anos a crescer, e que pode tornar-se muito grande. As azinheiras são óptimas para dar sombra nos verões quentes do Sul. Normalmente são podadas, e os ramos cortados fazem boa lenha e bom carvão. Ultimamente, com o despovoamento e o abandono das terras, muitas delas têm ficado doentes, acabando por morrer. 

O Nuno vive numa pequena aldeia perto de Mértola, podando azinheiras e cortando as que estão mortas. Aproveita toda a madeira, quer para lenha e carvão, quer para criar peças de mobiliário. Aprendeu a técnica de fazer carvão com um vizinho que, por sua vez, aprendeu com outras pessoas mais velhas. Trata-se de uma prática artesanal, hoje em dia quase extinta, que utiliza a terra para cobrir os troncos de madeira, mantendo alguns orifícios para controlar o fogo. Como é um trabalho que requer muito esforço, principalmente no empilhamento da madeira dentro do forno e na recolha do carvão, nessas alturas, o Nuno combina com amigos e familiares, e trabalham todos juntos."

Até logo!

Dodeskaden (1970) de Akira Kurosawa



por Alexandra Barros

Kurosawa fez Dodeskaden durante um período de crise na sua vida pessoal. Sem conseguir trabalhar com os estúdios cinematográficos, formou uma companhia de produção com três amigos - o Clube dos Quatro Mosqueteiros - a qual produziu este filme. A rodagem foi rápida e económica, contrariamente ao que lhe era habitual. Utilizou a cor pela primeira vez e afastou-se do estilo e temas habituais. Não há heróis, nem histórias inspiradoras, nem mensagens morais. Também não há uma narrativa central. O filme é composto por um conjunto de episódios sobre os habitantes de um bairro de lata. 

Todos os dias um “comboio” percorre o bairro. O condutor do "comboio" é Rokuchan, um rapaz cuja imaginação o coloca ao volante de um veículo fictício. O filme começa e acaba na casa de Rokuchan e nas suas paredes forradas a desenhos infantis e muito coloridos de comboios. A casa espelha o seu mundo de fantasia tal como as casas cinzentas e degradadas dos vizinhos espelham as suas vidas. Rokuchan percorre, durante o filme, um circuito fechado. Em circuito fechado estão também os vizinhos: Masuo e Hatsu, dois amigos, em estado permanente de embriaguez, e as suas mulheres, sujeitas às atribulações dos maridos alcoolizados; Ryotaro, um pai devotado a diversos filhos, nascidos de relações extra-conjugais da sua mulher, novamente grávida; um sem-abrigo e o filho, mendigos e habitantes da carcaça velha de um carro, alimentando-se com os restos recolhidos pelo rapaz em restaurantes, enquanto o pai “projecta” uma mansão luxuosa; Katsuko, uma jovem forçada a trabalhar até à exaustão, por um tio alcoólico com quem vive; Hei, um homem abalado pela traição da ex-mulher, Ochô, que cedeu a um impulso, apesar de nem sequer gostar especialmente do homem que a seduziu; .... 

Embora estas personagens vivam em condições penosas, que as conduzem por vezes a acontecimentos trágicos, o filme não se instala nesse registo dado que é pontuado por episódios cómicos ou ternurentos. Estação 1: Masuo e Hatsu, incapazes de reconhecer as suas casas quando a elas regressam embriagados, trocam casas e mulheres entre si, sem que isso cause qualquer transtorno a nenhum deles/as. Estação 2: A dor de Hei lançou-o para um limbo. Fechou-se a este mundo, vagueando nele como um morto-vivo. Ochô lamenta o que aconteceu e procura o perdão de Hei. Também ela sofre por causa do seu acto irreflectido. Hei, no entanto, é como o tronco de uma árvore morta. O tronco parece, mas já não é, uma árvore. No entanto, ainda é considerado um belo homem pelas mulheres do bairro que se divertem com as tentativas de aproximação de uma delas. Estação 3: Katsuko é violada pelo tio num leito de flores vermelhas artificiais, as mesmas que é obrigada a fazer, para o sustentar. Num episódio anterior tinha desfalecido sobre um tapete de flores azuis, que fazia enquanto o tio dormia descansadamente. Katsuko, transtornada pelo abuso e maus-tratos que sofre em silêncio, acaba por esfaquear o seu único amigo, Okabe. Recuperado do ataque, Okabe recusa-se a acusá-la, sabe que não houve maldade no acto. A amizade sai fortalecida deste incidente, depois de Katsuko confessar quão importante Okabe é para ela. Num filme em que as cores têm significado, e em que a maior parte das roupas se limita a tons de cinzento, Okabe apresenta-se sempre de branco. Katsuko também usa roupa clara, incluindo um casaco rosa pálido. 

A amizade de Okabe alivia o sofrimento de Katsuko, mas para os habitantes do bairro, distanciados física e socialmente do Japão que floresce economicamente, é maioritariamente a alienação - através do álcool, sonhos, imaginação, ... - que proporciona esse alívio. Contudo, esses espaços de fuga também podem vir a revelar-se impiedosos, quando quem os habita neles fica enredado. Estação 4: O pai sem-abrigo evade-se da realidade imaginando construir uma casa de sonho para o seu filho e para si. Porém, quando fica aprisionado no sonho, convencido que tudo vai ficar bem, acaba por deixar morrer o filho, devido a uma intoxicação alimentar em que não quis acreditar. O nível cultural deste par é nitidamente distinto do dos outros habitantes do bairro. São possivelmente os únicos que tiveram uma vida fora deste meio, num passado bastante diferente do actual, que transparece na linguagem, reflexões e sensibilidade estética das conversas do pai com o filho. Esta diferença é sublinhada pelo facto de serem os únicos cujo nome nunca é referido. O pai é considerado pretensioso e Tanba, um ancião sábio, é o único no bairro que com ele interage, tentando chamá-lo à razão. 

Estação 5: Tanba é bondoso, mesmo com quem tenta agredi-lo, e utiliza uma estratégia peculiar para lidar com a violência e o desespero dos vizinhos: torna-se cúmplice em actos condenáveis para conseguir sabotá-los. Ao oferecer-se para colaborar em tais actos, confunde os seus “parceiros”, conseguindo que estes reavaliem os propósitos iniciais. 

Neste filme, a imaginação, a sageza, a amizade e a bondade, utilizadas como estratégias (in)conscientes para atenuar o sofrimento, surgem como reflexo da capacidade humana para perseverar mesmo nas mais duras condições. Devido às circunstâncias pessoais de Kurosawa durante este período da sua vida, várias leituras têm apontado para um jogo de espelhos entre Dodeskaden e a sua vida privada, leituras essas ancoradas nos temas da imaginação, instabilidade mental, criatividade, loucura, sofrimento e superação. Certo é que, neste filme, Kurosawa se reinventou para poder continuar a fazer o que dava significado à sua vida: transformar histórias em filmes, fazer cinema!

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

209ª sessão: dia 19 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na terceira semana do "Génesis", visitamos os bairros de lata do Japão, com as lutas e os sonhos de todos os dias, o embate do ser humano com a sociedade no seu estado mais premente e essencial. Dodeskaden, vigésimo sexto filme de Akira Kurosawa, é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

No último capítulo de The films of Akira Kurosawa, Donald Richie escreve que "Kurosawa disse que lhe era impossível definir o próprio estilo, que não sabe em que é que consiste, que nunca lhe ocorre pensar nele. Embora perfeitamente disposto a falar sobre lentes, ou interpretação, ou o melhor tipo de gruas para a câmara, ele recusa-se a discutir significados ou estética. Uma vez perguntei-lhe sobre o que uma certa cena era mesmo. Ele sorriu e disse: "Bom, se conseguisse responder a isso, não teria sido necessário filmar a cena, pois não?" 

"A razão para a relutância dele em falar sobre significados e sobre estética talvez seja o facto de não serem reais, de não terem uma realidade visível. A estética presume um sistema, e o estilo presume uma expressão e uma reflexão do próprio homem. Nenhum deles tem qualquer interesse quando comparados com a realidade do novo filme a ser feito, o novo guião a ser escrito. Um homem preocupado com o seu próprio estilo é um homem inseguro, e Kurosawa é contido. Cada filme é uma expressão directa de si mesmo, é verdade, mas, longe de querer traçar paralelos ou procurar comparações entre os seus filmes, ele tem uma aversão relativamente a ver-se a si próprio como era. Tal como insiste que os seus heróis descuram o passado deles e vivem permanentemente no presente, também ele próprio não tem interesse no que quer que lhe tenha acontecido. "Um realizador gosta sempre mais do filme actual. Se não for assim, não o consegue realizar," disse ele uma vez, e como o presente é de tanta importância, a atitude dele em relação a feitos passados tem sido omissa e realista ao mesmo tempo."

Em entrevista à Criterion em 2009, Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, referindo-se aos actores do filme, disse que "(...) muitos dos actores nunca tinham entrado antes num filme de Kurosawa. Um deles, Junzaburo Ban, estava habituado a fazer comédia. Ficou com o papel difícil de Shima. Ban tinha dificuldades em memorizar diálogos longos, mas havia uma cena de nove minutos que tinha de ser filmada num só take. É a cena em que Shima convida pessoas a sua casa para beber saqué. Os convidados queixam-se que a mulher de Shima se está a comportar de forma arrogante, e as coisas descambam a partir daí. É uma boa cena, mas o Ban estava tão nervoso que eles tiveram de fazer novos takes continuamente. A cada momento, um assistente de produção tinha que substituir o rolo de película. O velho Kurosawa teria perdido a paciência e começaria a gritar, mas em vez disso, e de todas as vezes, disse apenas gentilmente, “Muito bem, vamos tentar outra vez.” Quando chegaram finalmente ao fim dos nove minutos, Kurosawa foi ter com Ban e disse, “Bom trabalho.” Ban afundou-se no chão como se toda a sua força lhe tivesse sido sugada, e apertou a mão ao realizador com lágrimas nos olhos. 

"Outro exemplo: Kamatari Fujiwara interpretou um velho que diz que quer morrer, que não quer viver mais um dia, e Atsushi Watanabe interpretou um velho perspicaz que lhe oferece um digestivo, dizendo-lhe que é veneno. Tiveram os dois uma grande cena de oito minutos, repleta de diálogos formidáveis, mas Fujiwara era famoso pela sua incapacidade em memorizar as falas; parecia simplesmente não se conseguir lembrar delas. Por fim Kurosawa ficou farto e mandou-me dar-lhe indicações. Isso estava óptimo enquanto ensaiávamos, mas se o fizesse durante um take, a minha voz também seria gravada. Ainda assim, sem as indicações, o Fujiwara enganava-se sempre nas falas, portanto no final eu tive que as fornecer numa voz alta que foi gravada junto com as dos actores’. Lembro-me que depois disso eles tiveram uma dificuladade dos diabos em apagar a minha voz da fita."

Já Jacques Lourcelles, no seu Dictionnaire, escreve que "este microcosmo da angústia humana é também um microcosmo da condição humana, moldada por Kurosawa com uma compaixão infinita e uns tesouros de humor. Esse humor tem qualquer coisa de hugoliano e prende-se particularmente com o imaginário de certas personagens, a bondade radiosa de outras, como que sobrenatural nesta fossa. Um ritmo lento, repetitivo e comovente entrelaça as histórias umas às outras e encerra as personagens tanto nos seus sonhos como na realidade. Para elas é uma e a mesma prisão de que não se conseguirão erradicar. A maior parte nem sequer quer. Imaginário e real, miséria atroz e tolice, hiper-realismo e lirismo fantástico (especialmente nos cenários e no emprego da cor, que Kurosawa utiliza aqui tardiamente pela primeira vez) são enredados pelo autor com uma ousadia tranquila com a qual poucos cineastas poderia disputar: trata-se de alcançar, com a ajuda de tantas personagens e tons diferentes, essa visão global da humanidade que também se encontrará em Viver, O Barba Ruiva e Dersu Uzala. O microcosmo toma então aparência de fresco. É aí que é preciso apreender o génio específico de Kurosawa, muito mais que nas grandes máquinas de Kagemusha ou Ran

"BIBLIO.: argumento e diálogos in «Complete Works of Akira Kurosawa», vol. 1, Kinema Jumpo-sha, Tóquio, 1971. Edição bilingue japonesa e inglesa. Descrição minuciosa das personagens e dos locais. Cada plano é ilustrado por um ou vários fotogramas."

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Germania anno zero (1948) de Roberto Rossellini



por António Cruz Mendes

De acordo com o tema “Génesis” dos Encontros da Imagem de 2021, o Lucky Star-Cineclube de Braga apresentou já O Crime do Sr. Lange (Jean Renoir), o esperançoso e hipotético nascimento de uma sociedade mais solidária, A Gruta dos Sonhos Perdidos (Wernor Herzog), o nascimento da arte nas pinturas de uma gruta, e Pedro, o Louco (Jean-Luc Godard), um filme emblemático da Nouvelle Vague do cinema francês. Hoje, vemos Alemanha, ano zero e, a seu propósito, poder-se-ia, talvez, falar do renascimento da vida numa cidade destruída pela guerra. Rossellini afirmou mesmo que, com este filme, gostaria de ter deixado essa mensagem de esperança. Porém, a Berlim reduzida a um monte de escombros que descobrimos no longo travelling da abertura ainda é habitada pelos fantasmas do passado e estes continuam a fazer as suas vítimas. 

Alemanha, ano zero é o terceiro filme, depois de Roma, cidade aberta e de Paisà, da trilogia da guerra de Rossellini. A questão que o motivou, conta-nos o próprio realizador, foi esta: sendo os alemães pessoas como todas as outras, o que é que os terá levado a cometer tamanhas atrocidades, o que é que os levou àquele desastre? A sua resposta é de ordem moral e reflecte a sua formação cristã: a essência do nazismo está na troca da humildade pelo culto da heroicidade, na exaltação da força sobre a fraqueza, do orgulho contra a simplicidade, e é desta perversão moral e das suas consequências que nos fala a história de Edmund, o jovem rapaz que se encontra no centro da história. 

O neo-realismo e, em particular, o entendimento que dele tem Rossellini, encontra, em Alemanha, ano zero, uma clara enunciação: sobriedade, perspectiva documental, ausência de sentimentalismo, são os traços fundamentais do seu estilo. Uma narrativa concisa, uma apresentação crua dos factos e uma confiança na maturidade do espectador, na sua capacidade de inteligir e reter a mensagem do filme sem que haja necessidade de recorrer a rebuscados artifícios retóricos. 

Os atores não são profissionais, mas pessoas comuns. Particularmente difícil parece ter sido a escolha do rapaz que encarnou a figura de Edmund e dizem aqueles que conheceram o filho de Rossellini que morreu poucos meses antes das filmagens, que a semelhança entre os dois era extraordinária. Foi ao seu filho que Rossellini dedicou este filme. 

É em Edmund que todo o filme se centra. A câmara segue-o em sequências com poucos cortes, na sua casa, habitada por várias famílias, em companhia dos amigos com quem busca dinheiro e comida ou vagueando entre ruínas pelas ruas de Berlim. É pelos olhos desta criança de 13 anos que conhecemos o estado e a vida da antiga capital do Reich imediatamente depois da guerra. O pai de Edmund, doente e acamado, recebe uma parca pensão; a irmã frequenta os bares onde procura obter alguns favores dos estrangeiros que conhece, mas recusa prostituir-se; o irmão, um veterano da Wehrmacht, refugia-se em casa com medo de ser internado num campo de concentração. A sobrevivência exige uma luta diária. Edmund sente que depende dele o sustento da família e recorre ao mercado negro para negociar seja o que for. 

O momento chave do filme é o do seu encontro com um antigo professor, agora afastado do ensino por causa das suas convicções nazis. É ele quem lhe explica que não pode continuar a sacrificar-se pelo seu pai. “Olha para a natureza”, diz-lhe. “Os fracos têm que morrer para que os fortes possam viver. É preciso ter a coragem de permitir que os fracos morram. Tudo se resume a salvar-nos a nós mesmos”. As suas palavras calam fundo na mente do jovem Edmund e vão levá-lo a envenenar o pai. 

Culpa, arrependimento e expiação é o leitmotiv do filme. Já o tínhamos visto enunciado pelo pai que, deitado na cama onde morrerá pouco depois, considera estar a pagar, impotente perante a fome que ameaça a família, o facto de não ter tido a coragem de se ter oposto a Hitler. Afinal, a culpa dele é a culpa de Edmund, é a culpa de toda a Alemanha. 

Em face do final trágico do filme, do suicídio de Edmund, em que medida podemos compreender a mensagem de esperança que Rossellini diz ter querido transmitir? Apenas na medida em que, mesmo num mundo onde o homem se transformou no lobo do homem, a luz bruxuleante da moral cristã nunca se apagou e é ela quem, por fim, acabará por prevalecer.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

208ª sessão: dia 13 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


Rossellini, o grande aventureiro, o grande inventor de formas e um dos homens livres do século XX. Dele exibir-se-ão duas obras durante este ciclo de Outubro, sendo a primeira Alemanha, Ano Zero, último volume da famosa trilogia da Guerra e a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation.

Num mesa redonda publicada na revista Cinéfilo, em 1973, e quando se começa a falar de Alemanha, João César Monteiro diz que "eu queria, antes de mais, mencionar uma história que o Rossellini conta acerca da sua chegada a Berlim, pouco antes de iniciar a realização do filme. Os escombros da cidade estavam mergulhados numa luz uniforme e cinzenta, numa aparência desoladora, portanto, e o único sinal de cor era fornecido por um longínquo ponto amarelado que os olhos de Rossellini detectaram, de pronto. O tipo sentiu-se atraído por essa nota insólita no décor e verificou que se tratava de um enorme cubo de pedra, no cimo do qual se lia a seguinte inscrição: Bazar Israel. Era um marco da reconstrução. Graças a esta presença, Rossellini descobre repentinamente o filme que era preciso fazer. É evidente que, ao contar esta história, Rossellini propagandeia um superinstinto que enche um espírito céptico, como o meu, das mais sombrias desconfianças, até porque eu não acredito que essa espécie de veni, vidi, vinci, face ao cinema, possa normalmente dar resultados muito satisfatórios. Sucede que, como o resultado é, neste filme, surpreendente, a minha perplexidade me deixa um pouco boquiaberto e sem norte."

Num texto publicado no volume «Roberto Rossellini. Le Cinéma Révélé», Alain Bergala escreve que "independentemente do que o próprio Rossellini tenha tido [Cf. Table Ronde], as contingências da História tiveram sem dúvida um papel biográfico decisivo nesta descoberta do poder de revelação que têm as coisas filmadas, na sua literalidade, na sua nudez. No momento em que filmava a «trilogia neo-realista»: Roma, Città Aperta, Paisà e Germania, Anno Zero, a guerra, momentaneamente, tinha destruído em Itália até a possibilidade mesma, para um cineasta, de filmar a partir de uma realidade já re-elaborada. Já não há estúdios, já não há cenários, já não existe nada daquilo que possibilitava a reconstrução de uma realidade cinematográfica ao abrigo da realidade nua. Apenas havia o mínimo (a câmara, alguns pedaços heterogéneos de película) e Rossellini não terá tido outra hipótese senão recomeçar, a partir dessa tábua rasa, e confrontar o cinema com essa realidade de ruínas, de caos e de decadência moral dos tempos imediatos à guerra.

"A partir dessa descoberta, Rossellini vai adquirir uma convicção inabalável: o cinema tem a vocação ontológica de se ligar à literalidade das coisas e somente a ela, e essa é, de facto, a via para a emergência (ou reforço) de uma verdade que é apenas devedora dos poderes do cinema. Essa foi a convicção de todo o cinema moderno que sempre foi um cinema do primeiro grau, da denotação, das coisas na sua nudez. Na definição de modernidade em Roland Barthes, entrava uma componente essencial essa «conformidade plana da representação à coisa representada». O cinema moderno, herdeiro de Rossellini, teve sempre um santo horror a sobre-significações de símbolos, ao enchimento, à gordura, ao ligamento, ao tecido conjuntivo."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles apresenta-nos o filme como o "terceiro volume da trilogia de Rossellini sobre a guerra (depois de Roma, Cidade Aberta e Paisà). Alemanha, Ano Zero faz admiravelmente a ligação entre essas duas obras essencialmente documentais e a série dos filmes intimistas com Bergman. Na verdade, e situada num contexto em que o estado presente duma sociedade é descrito com uma intensidade extraordinária, aquilo que Rossellini quer contar é acima de tudo a história de uma personagem, o pequeno Edmund. Neste sentido, o filme representa a quintessência do neo-realismo de acordo com o método rosselliniano. «O neo-realismo», escreveu ele, «consiste em seguir um ser, com amor, em todas as suas descobertas, todas as suas impressões. É um ser muito pequeno sob algo que o domina e que, de súbito, o atingirá de uma forma terrível, no momento preciso em que ele se encontra livremente no mundo, sem esperar o que quer que seja. O que importa acima de tudo, para mim, é essa espera; é isso que é preciso desenvolver, tendo a queda que permanecer intacta.» («Cahiers du cinéma», Agosto-Setembro. 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révélé».) Esse acompanhamento minucioso de um ser vulnerável pela câmara implicou aqui a utilização de planos bastante longos e Alemanha, Ano Zero é um filme muito menos decupado (248 planos) do que Roma, Cidade Aberta ou Paisà. Da Itália à Alemanha, a obra de Rossellini estende o seu território, que em breve estará à escala da Europa e depois de um continente (a Índia). Como sobre todos os seus temas e as suas personagens, Rossellini quer lançar sobre a Alemanha um olhar social que também seja moral. Para ele, o campo de investigação social e o campo de investigação moral sobrepõem-se de forma exacta. Ele expressou as suas intenções com uma clareza tal que não se pode fazer melhor do que citar as suas palavras: «Os alemães eram seres humanos como os outros ; o que é que poderia tê-los levado a este desastre? A falsa moral, essência do nazismo, o abandono da humildade, a exaltação da força em vez da fraqueza, o orgulho contra a simplicidade? Foi por isso que decidi contar uma história de uma criança, um ser inocente cuja distorção de uma educação utópica leva a perpetrar um crime, acreditando estar a cumprir um acto heróico. Mas, nele, a pequena centelha da moral não se tinha apagado: suicida-se para fugir a essa angústia e a essa contradição.» («Cahiers du cinéma», Novembro de 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révelé».) Em relação à ficção, longe de a desprezar, Rossellini utiliza-a para designar o escândalo onde quer que se tenha instalado: aqui no crime e no suicídio da criança, ou então no internamento final de Irene, em Europa 51. As características do seu estilo – sobriedade a beirar a impassibilidade (aí, Rossellini junta-se a Mizoguchi), brutalidade documental, por outras palavras arte do documento em bruto, ausência de sentimentalidade, atenção extrema ao próximo –, à medida que o destino do pequeno Edmundo se encerra sobre ele, tornam-se cada vez mais avassaladoras. É preciso acrescentar aqui uma concisão e uma rapidez de evocação (comparável àquilo que é a rapidez de elocução num narrador oral) que provêm simultaneamente do seu grande pudor, do conhecimento íntimo que tem do seu tema e da confiança que deposita na maturidade do espectador; essa confiança virou-se por vezes contra ele.

"BIBLIO. : planificação (248 planos) no volume « Roberto Rossellini : la trilogia della guerra », Bolonha, Cappelli Editore, 1972 (traduzido para inglês pela Grossman, Nova Iorque, 1973)."

Até logo!

Pierrot le Fou (1965) de Jean-Luc Godard



por Joaquim Simões

Pierrot Le Fou é um filme que conta a história do “último casal romântico”, segundo as palavras do realizador, Jean-Luc Godard. Famoso por quebrar radicalmente com as convenções do cinema tradicional da altura, polémico pela forte carga política e analisado pela sua inovadora estética influenciada pela arte pop, o filme é por vezes também aplaudido por ser belíssimo, uma profunda exploração do amor romântico, uma ode genuína à literatura, à pintura e ao cinema, e uma aventura inesquecível. 
 
Ferdinand, representado pelo recentemente falecido Jean-Paul Belmondo (e imortalizado como pouca gente tem a honra de poder ser) é um homem casado e infeliz. Foi despedido de um trabalho de que não gostava. Sabemos isto depois de sermos introduzidos a ele na banheira, a fumar, enquanto lê à filha um excerto didático sobre Velasquez. Quando Ferdinand encontra, ou antes, reencontra, nessa mesma noite a sua ex-namorada, Marianne, representada por Anna Karina, deixa a mulher e a filha e vai com Marianne para o seu apartamento. No dia seguinte, após uma cantiga amorosa, tudo muda. Ouvimos a frase: “Eu vou-te explicar tudo”, dita repetidamente por Marianne em voz off, enquanto percorremos um apartamento em construção, repleto de armas e caixas de munições, malas de viagem, poltronas amarelas, quadros impressionistas, um fogão, um frigorífico e um homem morto deitado de costas na cama com o que parece ser um pincel espetado nas costas e uma forte mancha de sangue (aliás, tinta vermelha). E é precisamente quando ela diz esta frase que o filme deixa de dar explicações: começa então a aventura do casal, a sua fuga da sociedade e a tentativa de viver uma vida contida na esfera do seu amor intenso e destrutivo. 
 
A famigerada máxima de Godard, que diz que as histórias devem ter um princípio, um meio e um fim, mas não necessariamente por essa ordem, parece um eufemismo se aplicada a Pierrot, cuja narrativa serve quase como desculpa para uma atividade criativa sem limites. E, no entanto, esta ausência de estrutura narrativa pressupõe um amor e respeito enormes pelo ato de contar histórias, amor que aliás permeia todo o filme: a dada altura os dois personagens recorrem até a este recurso para fazer dinheiro, e perto do final do filme temos o prazer de ouvir a história comovente de um casal que nunca se separou, e certo dia o homem tem de partir numa viagem – mas não é aqui o lugar para a contar. O melhor é mesmo ver o filme.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

207ª sessão: dia 12 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na segunda semana do nosso ciclo com os Encontros da Imagem, voltamos a Jean-Luc Godard, depois de O Acossado e O Livro da Imagem, e relembramos Jean-Paul Belmondo, falecido o mês passado. É ele o Pierrot de Pierrot le Fou, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

Em entrevista a Jean-Louis Comolli, Michel Delahaye, Jean-André Fieschi e Gérard Guégan, para os Cahiers du Cinéma, e quando estes afirmam que há quem considere diletantismo misturar cinema e política, Godard diz que "a resposta a isso é simples: pode-se ler o Le monde de forma séria ou como diletante. De qualquer forma, o facto é que se lê, e isso faz parte das nossas vidas. No cinema, no entanto, se se estiver num quarto, não é suposto abrir simplesmente a janela e filmar o que está a acontecer lá fora. Os resmungões vêem isto como uma ruptura na unidade, mas por causa disso tudo não conseguem ver onde está a unidade. Pode-se sentir que em Pierrot a unidade é puramente emocional, e salientar que há algo que não se enquadra nesta unidade emocional; mas dizer simplesmente que a política não tem direito a estar lá não tem sentido, uma vez que faz parte da unidade emocional. Aqui volta-se à velha classificação por géneros: um filme é poético, psicológico, trágico, mas não lhe é permitido ser simplesmente um filme. Naturalmente que se fosse fazer um filme sobre o caso Dreyfus, ia-se ver muito pouco sobre o caso e bastante coisa sobre as pessoas e as suas relações pessoais. Outra das coisas fascinantes para fazer hoje em dia seria a vida  de um estenógrafo em Auschwitz (Mikhail Romm fez uma compilação documental nestes moldes chamada Obyknovennyy fashizm). Mas um filme sobre um estenógrafo em Auschwitz ia ser odiado por toda a gente. A pretensa esquerda sempre foi a primeira a criticar os verdadeiros cineastas de esquerda, tanto Pasolini e Rossellini na Itália, como Dovzhenko e Eisenstein na Russia. Só se pode falar sobre o meio que se conhece, ao princípio; mais tarde, com a idade e com a experiência, este meio abre-se. É muito curioso que não tenha havido filme nenhum sobre a Resistência, em França. Claro que os italianos lidaram com o problema da Resistência e da libertação em termos políticos, porque os tinham vivido de forma muito mais óbvia, e o fascismo tinha afectado mais a Itália do que a França. Ainda assim, de um ponto de vista emocional, as vidas da geração anterior à nossa foram totalmente alteradas pela guerra. Mesmo agora ainda vivem nos dias anteriores à guerra e não emergiram no período do pós-guerra. Mas também não há filmes sobre isto. Nenhum filme sobre as aventuras dos irmãos Ponchardier, os verdadeiros Frank e Jesse James da Resistência. Na América ou na Rússia teria havido vinte filmes sobre Moulin, o Maquis des Glières, e por aí fora. Em França, houve um filme que tentou evocar a atmosfera de 1944, Les honneurs de la guerre de Dewever. Foi quase banido. Assim que aparece um filme que é mais ou menos honesto, surge um clima de suspeita e depreciação."

O filme de Godard foi uma experiência transformadora para Chantal Akerman, que confessou que "quando vi Pierrot le Fou pela primeira vez tinha 15 anos e não sabia quem era Godard, mal sabia que havia um cinema de autor. Quando ia ao cinema ia ver La Grande Vadrouille e os filmes de Walt Disney; era só para me divertir, para sair em grupo e comer gelados, não era certamente para ter um choque emocional ou para ver uma obra de arte. Não sabia que o cinema podia ser uma obra de arte. Portanto fui ver este filme porque o título me agradou, Pierrot le Fou... e vi esse filme e foi para mim uma coisa tão diferente, tão outra. Fiquei com a impressão que falava comigo, que era poesia. E como antes de fazer filmes sempre tinha querido escrever, senti neste filme qualquer coisa que alcançava os grandes cumes da escrita, mas por uma outra via e essa outra via pareceu-me ainda mais fascinante. E quando saí do cinema disse: eu também quero fazer filmes"

Já o célebre crítico e pensador do cinema Alain Bergala assistiu às rodagens do filme, dizendo que "eu era estudante de Letras - porque não havia curso de cinema - e para nós, Godard era O grande cineasta, era um deus. A própria ideia de o ver era uma coisa estranha. Além disso, eu nasci precisamente no Var e aprendi a na- dar na península de Giens, onde íamos com os meus pais; esse território, onde parte do filme foi rodado, é o meu, o da minha infância. Foi um primo, cozinheiro num hotel da ilha de Porquerolles, que sabia que eu me interessava muito por cinema que me telefonou e disse: ‘Vem aí um cineasta realizar o filme, chama-se Godard...’ Não o larguei mais, pedindo que me avisasse quando eles chegassem, e um dia ele telefonou-me a anunciar-me a sua chegada. 

"Pedi emprestada uma câmara 16 mm a um amigo, comprei uma bobina e levei a minha pequena máquina fotográfica. Postei-me onde os barcos acostam, assim tinha certeza de não falhar a sua chegada. E eles chegaram... vi Raoul Coutard descer com o material, etc. Eu estava um pouco afas- tado, depois fui para as redondezas do hotel, era um pouco como se os estivesse a perseguir... Eles saíram, vi Anna Karina, Belmondo, Godard. O primeiro plano que filma- ram foi o desembarque na ilha, os planos dos pés. Mas na praia não havia ninguém, por isso eu dava muito nas vistas. Reconheci Jean-Pierre Léaud, que era uma espécie de assistente. Perguntei-lhe: ‘Pode perguntar a Godard se posso ficar aqui e tirar fotografias?’ Léaud foi perguntar a Godard, voltou e disse: ‘Godard disse que sim, mas com uma condição: é que não fume...’ O que não fazia qualquer sentido. Assim eu pude filmar - material que infelizmente se perdeu - e tirar fotografias. 

"Não fiquei mais que meio-dia mas é evidente que foi uma coisa que me marcou muito - vi toda a gente, vi Godard instalar um travelling, vi como trabalhava, etc. É uma coisa que voltei a fazer muitas vezes depois disso, e que data desta experiência fundadora: ir às rodagens, regressar aos lugares para confrontar a representação do filme com uma reali- dade geográfica. Foi também extremamente forte o facto do artista que eu mais admirava no mundo vir ao ‘meu’ território.”

Até Terça-Feira!

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Cave of Forgotten Dreams (2010) de Werner Herzog



por João Palhares

Werner Herzog interessou-se pela caverna de Chauvet através de um artigo de Judith Thurman, «First Impressions», escrito para a New Yorker em 2008. Esse grupo de túneis e grutas no sul de França deve o seu nome a Jean-Marie Chauvet, um dos três espeleologistas que o descobriram em Dezembro de 1994. No seu interior estão as pinturas rupestres mais antigas do mundo que, graças a um deslizamento de terra que vedou a entrada principal, se mantêm num estado de conservação pouquíssimo habitual para o que é esperado para este tipo de achados arqueológicos. Herzog teve acesso limitado ao local (quatro horas por dia, durante seis dias) e, apesar de não o irmos ver dessa forma, decidiu filmar o documentário em 3-D. “O 3-D era imperativo,” disse ele à revista Archaeology, “porque eu ao início pensava que havia paredes e pinturas planas na caverna. Mas não havia áreas planas. O drama dos arqueamentos e das cavidades foi mesmo utilizado pelos artistas. Fizeram-no com uma habilidade fenomenal, com grande habilidade artística, e havia algo de expressivo nisso, um drama de rocha transformado e utilizado no drama das pinturas. É por isso que era imperativo filmar em 3-D.” 
 
Com esse tempo e essa decisão tomada, além de questões de acesso e limitações de movimento explicadas no próprio documentário, muito do material de filmagem teve que ser improvisado no sítio. “Levamos connosco o equipamento espelhado tosco fornecido pela British Technical Films,” escreveu o director de fotografia Peter Zeitlinger[1]. “Tinha sido utilizado antes em vários anúncios em condições de estúdio. Depois de apenas alguns metros no interior da gruta decidimos deixá-lo para trás, porque não era possível encaixá-lo pelo túnel estreito. 
 
“Uma vez que só tínhamos umas horas para rodar o filme todo tivemos que rodar fosse como fosse. O Werner disse, "Pega em fita adesiva e cola ou qualquer coisa do género. Põe as câmaras lado a lado e vamos a isso.” “Consegui construir uma macro-extensão com um rolo de papel higiénico numa tenda no Antárctico para filmar dentro de um microscópio científico,” respondi eu, “mas devíamos voltar e tentar no dia que vem.” 
 
“Passado um momento, o Werner passou-me dois suportes de braços mágicos para a câmara. "Não consegues usar isto?" Arranquei as câmaras do equipamento espelhado e fixei-as lado a lado nos braços mágicos. 10 minutos depois começámos a rodar as pinturas secretas da caverna. Filmei da anca sem visor. Passámos por cima do alinhamento complicado das câmaras 3-D e resolvemos o assunto à noite em Cineform (Software).” 
 
É possível que o 3-D acrescente muito a esta Gruta dos Sonhos Perdidos, até porque foi assumidamente a única e última vez que o realizador de Aguirre e Fitzcarraldo rodou nesse formato, para mostrar ao mundo uma caverna totalmente inacessível ao público em geral e para respeitar os traços de movimento pensados pelos nossos antepassados mais remotos, os jogos entre superfícies e protuberâncias, as camadas sobrepostas de pintura ou as sombras primordiais que nos levam a Fred Astaire mas também a Platão, só que a beleza e o deslumbramento também passam na versão mais reproduzida que vamos ver. Não é nada comum ver um filme dos nossos tempos que nos garanta que ainda não sabemos tudo, que há um mundo a ser desbravado e que precisa de pessoas para o desbravar, que nos traga de volta a aventura, a descoberta e o maravilhamento, e que proponha timidamente que a meta e o fim da estrada estão no princípio de todas as coisas. Ou que para sair da caverna talvez tenhamos que lá entrar.

[1] in «3D in the 21st Century. On Shooting Cave of Forgotten Dreams», 2 de Maio de 2015, Notebook, MUBI.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

206ª sessão: dia 6 de Outubro (Quarta-Feira), às 21h30


Na segunda sessão do nosso novo ciclo com os Encontros da Imagem viajamos com Werner Herzog até ao Sul de França, até às grutas de Chauvet-Pont-d'Arc, berço da arte humana milagrosamente conservado por um deslizamento de terra. Desta feita no GNRation, A Gruta dos Sonhos Perdidos é a nossa próxima sessão.

Sérgio Alpendre, que nos apresentou filmes de Cecil B. DeMille, Martin Scorsese e Charles Chaplin no passado, escreveu sobre o realizador para a Mostra Ecofalante em 2018, dizendo que "pensar nas linhas de força no cinema de Werner Herzog não é tarefa fácil. Com carreira de meio século, mais de meia centena de longas-metragens e variações de registros que o acompanham desde o início, qualquer historiador sente-se intimidado e ao mesmo tempo desafiado. Pode-se apontar o caráter obsessivo de grande parte de seus personagens (de Aguirre a Fitzcarraldo, mas também personagens de filmes como Strozsek, O Grito da Montanha, Invencível, The White Diamond, Grizzly Man, Polícia sem Lei), uma obsessão que não raramente leva à loucura (os delírios de Aguirre, sozinho com os macacos e a morte na jangada são inesquecíveis) e é herdada claramente das obsessões do homem que está por trás da câmera. Ou o fato de que alguns deles, talvez os mais notórios, apresentem um grau elevado de autismo (Sinais de Vida, Coração de Gelo, Stroszek, Woyzeck, Nosferatu, Meu Filho, Olha o que Fizeste!), ou sejam vítimas de um cruel e desumano isolacionismo causado por deficiência física ou mental (Letzte Worte, No País do Silêncio e da Obscuridade, O Enigma de Kaspar Hauser). Pode-se, também, como nove entre dez críticos que se debruçam sobre sua obra, falar da potente relação do humano com a natureza, e da maneira como essa relação por vezes envolve um confronto extremo e audacioso (novamente Aguirre, a cólera de Deus, FitzcarraldoGrizzly Man, mas também Fata Morgana, La Soufrière, Wo die grünen Ameisen träumen, Lektionen in Finsternis, Julianes Sturz in den DschungelThe White Diamond, Encounters at the End of the World e A Gruta dos Sonhos Perdidos). E pode-se, de modo mais sucinto, resumir toda sua obra cinematográfica de ficção (e boa parte dos documentários) a uma única e taxativa palavra: loucura. De que outro modo, que não louco (no bom sentido, porque no sentido artístico), classificar o diretor que faz Os anões também crescem de baixo (1970), um dos filmes mais insanos de que se tem notícia? De que modo entender sua atração por atores que compartilham com ele o mesmo tipo de loucura, de ir até o fim em seus papéis e de agir como verdadeiros maníacos na frente da câmera: após Klaus Kinski, podemos lembrar de Peter Blogle (o personagem que enlouquece em Sinais de Vida chama-se Stroszek), Bruno Ganz, Nicolas Cage e Michael Shannon, além da atração pelo trabalho de Bruno S, ator que serve perfeitamente a Herzog em dois filmes marcantes (O Enigma de Kaspar Hauser e Stroszek)."

Num especial do site Mubi sobre o cinema em 3-D no século XXI, o director de fotografia do filme, Peter Zeitlinger, escreveu que "na primeira vez que entrámos na gruta tivemos que filmar imediatamente. Não houve reconhecimento. O Werner Herzog tinha sido a única pessoa da equipa a ver a gruta uns meses antes. Levamos connosco o equipamento espelhado tosco fornecido pela British Technical Films. Tinha sido utilizado antes em vários anúncios em condições de estúdio. Depois de apenas alguns metros no interior da gruta decidimos deixá-lo para trás, porque não era possível encaixá-lo pelo túnel estreito. 

"Uma vez que só tínhamos umas horas para rodar o filme todo tivemos que rodar fosse como fosse. O Werner disse, "Pega em fita adesiva e cola ou qualquer coisa do género. Põe as câmaras lado a lado e vamos a isso." “Consegui construir uma macro-extensão com um rolo de papel higiénico numa tenda no Antárctico para filmar dentro de um microscópio científico,” respondi eu, “mas devíamos voltar e tentar no dia que vem".

"Passado um momento, o Werner passou-me dois suportes de braços mágicos para a câmara. "Não consegues usar isto?" Arranquei as câmaras do equipamento espelhado e fixei-as lado a lado nos braços mágicos. 10 minutos depois começámos a rodar as pinturas secretas da caverna. Filmei da anca sem visor. Passámos por cima do alinhamento complicado das câmaras 3-D e resolvemos o assunto à noite em Cineform (Software)."

Em entrevista à revista Archaelogy, e quando lhe perguntam o que é que o atraiu na caverna de Chauvet, Herzog responde que "é uma das maiores e mais sensacionais descobertas na cultura humana e, claro, o que é tão fascinante é que ficou preservada como uma cápsula do tempo perfeita durante 20,000 anos. A qualidade da arte, que é de um tempo tão distante e tão secreto na história, é assombrosa. Não é que tenhamos o que as pessoas poderão chamar de começos primitivos da pintura e da arte. Está ali mesmo como se tivesse irrompido em cena perfeitamente acabado. Isso é o que é assombroso, entender que a alma humana moderna acordou de alguma forma. Não foi um longo sono e um despertar lento, lento, lento. Acho que foi um despertar bastante repentino. Mas quando digo "repentino" pode ter durado mais de 20,000 anos ou assim. O tempo não é um factor quando se retrocede a uma pré-história tão profunda."

Até logo!

Le crime de Monsieur Lange (1936) de Jean Renoir



por António Cruz Mendes

Para François Truffaut, O Crime do Sr. Lange é “o mais espontâneo, o mais vivo em milagres de câmara, mais cheio de pura beleza e verdade” dos filmes de Jean Renoir. 
 
O ritmo da narrativa, as histórias que se entrecruzam, os repetidos quid pro quo, as situações dramáticas envoltas numa atmosfera jubilosa, os problemas amorosos que se resolvem entre lágrimas e sorrisos, o olhar terno e irónico do realizador – conhecemos tudo isso, por exemplo, de A Regra do Jogo. Mas se, então, a acção decorre num contexto aristocrático e burguês, desta vez, os protagonistas são gente do povo. 
 
A excepção é Batala, o proprietário da pequena editora que edita uma revista de cordel, que gosta de exibir um estilo de vida muito diferente daquele que o seu pequeno negócio lhe poderia permitir e que, por isso, se vê endividado e perseguido pelos credores. Hitchcock dizia que “quanto pior é o vilão, melhor é o filme” e Batala faz jus a essa afirmação. Sem escrúpulos, mas sedutor e bem-falante, é em torno dele que gira toda a história. E a sua morte acaba por ter um valor metafórico: é o velho mundo burguês que morre na personagem da Batala para que um novo mundo, personificado na cooperativa dos trabalhadores que tomam nas suas mãos o destino da editora se possa afirmar. 
 
A cena da morte de Batala é um prodígio de humor negro. O cínico bon vivant, disfarçado de padre, sabendo-se ferido de morte, pede um padre. Mas o único que o ouve é, perdido de bêbado, o porteiro dos prédios onde está sediada a editora e vivem os protagonistas desta história, o pequeno mundo onde tudo se passa. Entretanto, prossegue ruidosa a festa onde todos celebram o sucesso da cooperativa e a possível adaptação para o cinema das aventuras de Arizona Jim. 
 
A história é-nos contada pela voz de Valentine, aquela mulher livre e auto-determinada que conhecemos já de outros filmes de Renoir. É ela quem adopta Lange como companheiro, que o acompanha na fuga e que reúne aquela espécie de “tribunal popular” que o iliba do seu crime e lhe oferece a liberdade. 
 
Uma outra personagem muito “renoiriana” é Meunier, burguês frívolo, diletante, mas com bom coração, que, aqui, assume, quase como que por acaso, o papel de compagnon de route dos camaradas trabalhadores. 
 
E temos, por fim, Lange, o tímido e eterno sonhador. É ele o autor das aventuras de Arizona Jim que vão salvar a editora da falência e é ele o autor do crime que vai impedir que ela regresse à posse do malvado Batala. Mas, mais do que um herói consciente da importância dos seus actos, ele é o veículo de um Deus ex machina que vai permitir a vitória do bem sobre o mal. 
 
O filme data de 1936, ano da vitória eleitoral, em França, da Frente Popular que reuniu socialistas, comunistas e radicais. Foi nos anos 30, tempos de crise e de recessão económica, mas também de uma nova esperança num futuro melhor, que surgiu, no cinema francês, o realismo poético que tem, neste filme, um dos seus melhores exemplos. E, nas palavras do próprio Jean Renoir, foi também “o momento em que os franceses acreditaram verdadeiramente que se iam amar uns aos outros”. 
 
O Crime do Sr. Lange é o primeiro de um ciclo de oito filmes que decorrerá no mês de Outubro na Biblioteca Lúcio Craveiro e no GNRation, organizado pelo Lucky Star – Cineclube de Braga e pelos Encontros da Imagem que, este ano, foram dedicados ao tema “Genesis”.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

205ª sessão: dia 5 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Neste mês de Outubro, o Lucky Star volta a associar-se aos Encontros da Imagem e promove um ciclo de cinema subordinado ao tema "Génesis 2:1". Serão quatro semanas com sessões todas as terças e quartas-feiras. À terça na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS) e à quarta no gnration, sempre às 21:30. Já esta terça, dia 5, exibimos O Crime do Sr. Lange, a nossa próxima sessão no auditório da BLCS.

Em Jean Renoir vous parle de son art, em depoimento posteriormente transcrito e publicado em Jean Renoir: entretiens et propos e traduzido para português por Júlio Bezerra para o catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil, A vida lá fora: O cinema de Jean Renoir, o realizador francês admitiu que "O crime do Sr. Lange, é, acima de tudo, uma bela colaboração com Jacques Prévert. Não começamos a trabalhar juntos no filme. Inicialmente, comecei com um amigo chamado Castanier, e nós escrevemos uma história que não era ruim, eu acho, e algum produtor tinha decidido filmar. Mas, ainda assim, não estávamos muito seguros de nós mesmos e eu tive a ideia de pedir gentilmente a um amigo que desse uma breve olhada em nosso trabalho; este amigo era Jacques Prévert. E Jacques Prévert trabalhou o filme comigo, e algo muito diferente acabou saindo. Isso não quer dizer que este filme tenha sido escrito com antecedência – isso não aconteceu muitas vezes na história dos meus filmes, de ter um roteiro que segue exatamente tal como escrito, talvez nunca tenha de fato acontecido. Em O crime do Sr. Lange aconteceu o que acontece com frequência comigo. Nós temos um roteiro muito bem escrito. Nós o sabemos e dizemos a nós mesmos: “Oh, podemos filmá-lo”. E então chegamos ao set. Ensaiamos os atores e vemos que algo não funciona ou que existem formas de vida mais próximas do espírito desses atores, mais próximas dos figurantes, do cenário, do que se passa ao redor. Não foi diferente com O crime do Sr. Lange. Perguntei a Prévert se ele gostaria de ficar comigo no set todos os dias. Prévert foi muito gentil e concordou. Ele não gostava muito de acordar cedo, mas mesmo assim esteve comigo em todas as fases da filmagem. E muito do diálogo do filme, por vezes extremamente brilhante, foi elaborado através desta colaboração e com esta improvisação. Há um exemplo sobre o qual estávamos falando agora a pouco com Jacques Rivette, quando Jules Berry, que está vestido como um padre, volta para a casa que ele fundou e encontra Lefèvre instalado em seu lugar. Lefèvre diz a ele: “Se eu te matasse, quem sentiria falta de você?” E o padre, Jules Berry, responde: “As mulheres, meu querido!” Eu conto muito mal essa história, não consigo torná-la divertida, mas quando Jules Berry diz isso, é algo notável. Bem, isso é improvisação. Estávamos conversando quando, de repente, Prévert teve essa ideia, e foi assim. O filme foi realizado nesta atmosfera divertida e de colaboração. Éramos um grupo de amigos, de modo que se há um filme de amigos, este era um deles."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, João Bénard da Costa escreveu que "(...) alguns aspectos fundamentais deste filme, desde a concepção do personagem de Lange até a sequências como a do jantar, são mais de Prévert do que de Renoir e reflectem mais, com o seu idealismo e populismo, o universo do primeiro? A atenta visão do filme e a comparação com outras obras de Renoir provará que essa hipótese não tem grande razão de ser. Para falar apenas de filmes mais conhecidos, Lange não é muito diferente do primeiro Legrand de La Chienne (o Legrand de antes do sexo e do crime) como não é muito diferente de Toni ou do Jurieu de A Regra do Jogo: limita-se a evoluir num outro contexto e numa outra direcção. A sua fuga para a ficção e para o mundo do Arizona Jim corresponde ao mesmo impulso que levou Legrand a pintar ou Jussieu a voar. Todos eles são exemplos flagrantes dessa impotência masculina frente à força das mulheres, tão típica do universo de Renoir. Repare-se que Lange é conquistado por Estelle e Valentine e que esta última é motor fundamental do seu sucesso e do seu crime." 

Já Jacques Lourcelles, no seu Dictionnaire du Cinéma, escreve que "disse-se e repetiu-se: o filme está totalmente impregnado com o espírito da frente popular. Camaleão ideológico, Renoir escolhe expressar esta ideologia sob a forma idealizada mas contundente de uma espécie de conto de fadas, segundo a expressão de François Truffaut. A Fada Má surge aqui com os traços do ignóbil Batala (Jules Berry no seu papel mais famoso, mas não o mais subtil nem o mais completo). Contra ele ligam-se como um todo os bons, os simpáticos e os generosos : trabalhadores, proletários e até herdeiros abastados quando são loucos o suficiente para aderir aos ideais da cooperativa sem sequer saber o que é uma cooperativa (a personagem de Henri Guisol, filho do principal credor). O filme rodado sem improvisação respeita à letra o argumento mais militante e mais combativo que Prévert escreveu. A mensagem libertária do filme não se contenta em exaltar os méritos e a perfeição moral do empreendimento autogerido; justifica o assassinato do vilão santificando-o por assim dizer com a aprovação de um júri popular (encarnado simbolicamente pelos clientes do bar a quem a intriga é contada). Formalmente, Renoir traz ao credo de Prévert a efervescência de vida suscitada nomeadamente pelo emprego de uma técnica de planos longos, movimentos de câmara de trajectória sinuosa e imprevisível onde se vêm cruzar os diferentes tipos de humanidade que se movem pelos corredores, os ateliers, o alojamento e o pátio do pequeno prédio que abriga a tipografia Batala. Todos os actores – um bando de admiráveis colegas vindos em parte do grupo «Outubro» – são excelentes. No plano da interpretação, Renoir consegue reunir um lirismo espontâneo, obtido mais especialmente pelas actrizes, e um sentido da caricatura excêntrico ou mordaz. Para além de todo o realismo, a síntese destes dois tons comunica uma impressão de verdade preciosa e inesquecível."

Até Terça-Feira!

Em Outubro, no Lucky Star: