por Marta Ramos
O céu é lume, a terra é lume,
O ar rareia.
Inferno, que até o canto da cigarra afugenta,
E a água que bebemos incendeia,
No louco pulsar de cada veia,
Aflita, incontrolada, a dor rebenta.
Versos de uma amiga, camponesa alentejana, chamada Virgínia Dias, ela que, também criança, se tornou à força crescida, como a voz que nos conta a história neste filme. Voz de ambígua idade, criança ainda e já mais qualquer coisa, de tal forma que de início nem consigo destrinçar de qual das duas raparigas se trata.
Apaixonei-me por essa narração tão crua e selvagem, de quem diz as coisas apenas uma e pela primeira vez.
Respondi com Days of Heaven por instinto, sem saber muito bem porque o escolhi para este ciclo de quarentena, como quem nega e se defende do momento presente.
Há qualquer coisa na forma de filmar de Malick que me faz sentir cúmplice do maravilhamento face ao mundo. Corridas pelo meio do trigo, jogar às apanhadas com o vento, tantos animais filmados como se, paralelamente à história dos humanos, assistíssemos por momentos aos enredos, acções e movimentos desses outros seres, que reverberam os sentimentos humanos, visceralmente. A natureza como cúmplice e testemunha das emoções que não são apenas humanas afinal.
(...)
«He told me the whole earth was going up in flames. There's gonna be creatures running every each way, some of them burned, half their wings burning. People are gonna be screamin' and hollerin' for help.»
E em várias cenas sentimos esse fogo anunciado no início, as fornalhas industriais, as várias fogueiras de celebração, aquela outra em que se lançam inutilmente os gafanhotos e o imenso incêndio final purgando o campo e a alma.
Há uma crueza, a matéria em bruto. Tudo é um sol-pôr.
«Style of leaving things as they are, as much as possible» refere Almendros (director de fotografia do filme) que juntamente com o realizador Terrence Malick tantas vezes exasperavam alguns membros da equipa, por esperarem pelo momento certo do dia para filmar. A hora mágica entre o sol se pôr e a noite cair, essa exigência que fosse a luz da natureza a pintar os quadros, como se o tempo e a luz natural a entrar pela objectiva - a revelar porque a ocultar, a ocultar porque a revelar os seres e as coisas - fosse a matéria de um poema de fogo.
Diz o Bénard que a menina fala à amiga e que o plano final assim o revela, mas tenho para mim que esta história é contada ao trigo, ao fogo e ao vento, companhias eternas deste filme.
“Days of Heaven” ou “days of hell” é um grito, continua o Bénard, e o que a menina conta lembra-me as palavras do «blue eyed son» na canção do Bob Dylan, A Hard Rain's A-Gonna Fall*. O mesmo sufoco: na canção uma «hard rain», o frio e a humidade de uma tempestade prestes a cair, no filme as “flames”, os entardeceres, o fogo; e embora contrastem nas temperaturas a que nos expõem, e nos ambientes que evocam, a menina irmã ou o rapaz de azuis olhos falam-nos na mesma voz, donde estiveram, o que viram, o que ouviram e quem encontraram.
Sejam de paraíso ou de inferno, feitos afinal do que é a vida, são estas vozes-poema que emanam uma estranha energia e é com ela que quero ficar:
(...)
And I'll tell it and think it and speak it and breathe it
And reflect it from the mountain so all souls can see it
Then I'll stand on the ocean until I start sinkin'
But I'll know my song well before I start singin'
And it's a hard, it's a hard, it's a hard, it's a hard
It's a hard rain's a-gonna fall
* Há duas versões imperdíveis desta canção: quando a Patti Smith a cantou na cerimónia do Nobel a Bob Dylan, e a da dupla Tom Russell e Lucinda Williams.
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