quarta-feira, 30 de outubro de 2024

368ª sessão: dia 31 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Ciclo termina com longa-metragem de Inês T. Alves
  
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira, às 19h, exibe-se Águas do Pastaza (2022), primeira longa-metragem da realizadora Inês T. Alves, que nos revela o dia-a-dia das crianças de uma aldeia que vive em simbiose com a natureza indomável da selva Amazónica. O filme faz-nos reflectir sobre o nosso modo de vida, numa perspectiva decolonial, e confronta-nos com os nossos preconceitos em relação à “alteridade”. 

Águas do Pastaza foi nomeado para os prémios Sophia de 2024, na categoria de longas de documentário. A realizadora estará presente na sessão para uma pequena conversa com o público.

Em entrevista ao site C7nema, relatando a génese do seu filme e a sua partida para a floresta da Amazónia, Inês T. Alves disse que "levei para lá material de cinema muito básico, até porque não sabia as condições que ia encontrar. Inicialmente, a minha intenção não era fazer o filme, mas depois de passar tanto tempo com as crianças, ficar fascinada com a vida lá e a forma como eles se relacionam com a floresta e recursos, o que captei começou a fazer sentido como um filme. 

"Tinha terminado o mestrado em cinema documental em Londres," continua a realizadora na mesma entrevista. "Fiquei um pouco farta da cidade, do meio urbano. Queria sair de lá e até da Europa, mas gostava de ir para algum lado onde pudesse aprender. Tinha o sonho da Amazónia e encontrei um casal que tinha começado um projeto educativo independente no local. Escrevi-lhes, eles explicaram-me como o projeto funcionava, o intuito dele, e como chegar lá. O mínimo de permanência nesta comunidade eram dois meses. (…) Fiz uma curta antes em Moçambique e foi muito intenso, por isso agora queria um sítio onde não tivesse de pensar em fazer um filme. Além disso, era um espaço desconhecido. Por isso, nem tinha uma ideia prévia de fazer qualquer projeto cinematográfico lá. Porém, depois de estar lá, do encontro com aquela comunidade, tive de o fazer."
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, esta quinta excepcionalmente às 19h. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Fordlandia Malaise (2019) de Susana de Sousa Dias



por Alexandra Barros

Fordlândia é uma cidade fundada por Henry Ford, no Pará (norte do Brasil), no final dos anos 1920, para os trabalhadores (agricultores, operários, engenheiros, ...) de um megalómano projecto agro-industrial da Ford Motor Company, cujo objectivo era produzir borracha, a partir do látex extraído de milhares de seringueiras. Cerca de um milhão de hectares da selva amazónica foi concedido pelo Estado Brasileiro à Ford. Centenas de hectares foram arrasados por fogos colossais, para o plantio massivo das árvores. A finalidade desta gigantesca operação era cortar os custos de produção dos novos automóveis Ford Modelo A. Ao tomar em mãos a produção da borracha necessária para o fabrico próprio de pneus, Ford contornava o monopólio que os ingleses e os holandeses tinham sobre essa matéria. Na época, a Grã-Bretanha e a Holanda dominavam o ciclo da borracha, a partir das suas colónias asiáticas, onde tinham vastas plantações de seringueiras, graças a dezenas de milhares de sementes que tinham sido retiradas furtivamente do Brasil (num tremendo caso de biopirataria, que viria a revelar-se extremamente ruinoso para a economia deste país). De acordo com Henry Ford, Fordlândia constituía uma missão civilizadora, um projecto que traria o progresso e um futuro melhor a um território remoto e aos seus habitantes, chegando a proclamar: “Não vamos para a América do Sul para ganhar dinheiro, mas sim para ajudar a desenvolver essa terra maravilhosa e fértil.”[1] A cidade foi dotada de boas infraestruturas e casas nos moldes das pequenas cidades dos Estados Unidos. Foi concebida para ser uma cidade-modelo (de uma sociedade estratificada), mas a população indígena não se adaptou: quer ao estilo de vida regrado que lhe tentaram impor (proibição de álcool, danças e outros costumes locais; vigilância omnipresente, ...); quer à comida enlatada enviada dos EUA, e servida dia após dia; quer à rotina de trabalho, sincronizada com os horários das fábricas dos EUA. Múltiplos choques culturais e biológicos (monocultura: “Plantaram as árvores muito próximas. Bastava uma ser atacada por parasitas, para a plantação toda ir por água abaixo, que foi o que aconteceu”[2]) conduziram o ambicioso projecto ao fracasso. 

A história de Fordlândia envolve algumas das grandes matérias de convulsão e reflexão dos séculos 20 e 21: colonização, lutas sociais, globalização, exploração do terceiro mundo pelo primeiro, ambientalismo, sustentabilidade, utopias que se transformam em distopias. O seu carácter extraordinário tem atraído, ao longo dos anos, a atenção de académicos, artistas[3] e um vasto público curioso. Por isso, é possível encontrar na web uma enorme quantidade de informação sobre o tema. De acordo com Susana de Sousa Dias, existem duas narrativas dominantes sobre o projecto: cidade utópica e cidade-fantasma. A realizadora foi tentar descobrir o que há para além destas narrativas, continuando a trabalhar as questões-chave das suas obras anteriores[4]: memórias fortes - as alimentadas pelo poder e fixadas em narrativas oficiais - versus memórias fracas - que tanto incluem as memórias das personagens consideradas “secundárias” ou “menores” (pertencentes, geralmente, às classes sociais mais desfavorecidas), como as narrativas incómodas, proibidas, polémicas. 

As primeiras imagens do filme são registos fotográficos dos primeiros tempos da cidade-modelo: os edifícios, as infraestruturas, fotos de grupo de colonizadores e colonizados, em poses canónicas. Estes registos foram realizados por fotógrafos ao serviço da Ford e fazem parte do respectivo arquivo. Inicialmente, cada imagem dá pausadamente lugar à seguinte. Ouvem-se trinados de pássaros e insectos florestais. Pouco a pouco, insinuam-se batucadas longínquas na banda sonora. Voltamos a ver as mesmas imagens, mas agora sucedem-se cada vez mais velozmente, em sincronia com a (agora tornada predominante) batucada brasileira. Quando o ritmo se acelera vertiginosamente, intercaladas com as imagens iniciais, entrevemos novas imagens: animais selvagens ameaçadores e hostis; rostos de indígenas, individualizados, em grande plano, em atitude desafiadora ou ganhando movimento (em câmara lenta); folhas de árvores salpicadas com as marcas de infecções letais; um veículo enterrado na lama; ... Uma encenação assombrosa da distopia latente na utopia de fachada. 

Seguem-se encantadoramente serenas imagens da cidade actual, vista do céu, produzidas por um drone que a sobrevoa. As imagens são acompanhadas de testemunhos orais de habitantes da cidade, que nunca vemos. Nestes testemunhos (recolhidos in loco), cruzam-se mitos ancestrais, lendas locais e histórias pessoais, que se vêm reivindicando como alternativas às narrativas dominantes. Para sublinhar a manipulação que sempre ocorre na construção da História oficial e “a natureza contraditória e enganadora do aparelho de poder”, Susana de Sousa Dias diz ter decidido “tirar partido do sentido de irrealidade do drone”, articulando “imagens que parecem fotografias mas afinal são imagens em movimento” com “imagens que parecem estar em movimento mas que afinal são fixas”[5].
 
Descemos então do céu para o cemitério. O cemitério de Fordlândia é uma imagem icónica das narrativas referentes à cidade-fantasma que prevalecem na web. Algumas dessas narrativas visuais são exemplos paradigmáticos do chamado “ruin porn”. Este termo designa um género de fotografia baseado no fascínio estético por ruínas. A fetichização de locais degradados, assente puramente na estética, ignora habitualmente o respectivo contexto e pouco ou nada revela dos motivos que conduziram à actual decadência, desvalorizando a história dos homens que os povoaram ou povoam. No caso de Fordlândia, as reportagens fotográficas contam sistematicamente uma meia-história, mesmo quando acompanhadas por uma (mais ou menos adequada) contextualização histórica. Atraídos pela fotogenia das ruínas de Fordlândia, são as imagens mais óbvias que os fotógrafos procuram, ignorando tudo o que é marginal à narrativa da cidade-fantasma. Nada nessa prevalecente representação de Fordlândia alude aos seus actuais 3000[6] habitantes. Para quem vê as imagens, sempre desprovidas de pessoas, é como se elas não existissem. No entanto, alguns trabalhadores da Ford decidiram permanecer após o colapso do projecto e os seus descendentes foram ficando. Foram-se-lhes juntando outras pessoas, de parcos recursos, vindas de localidades próximas, atraídas pelas casas abandonadas. Sobrevivem à custa de agricultura de subsistência, pesca e criação de animais. A economia local tem vindo, porém, a transformar-se, dado que nos terrenos da plantação falhada foram cultivadas grandes (e polémicas) áreas de soja, que se têm expandido desmesuradamente[7]. 

No final, o filme - até então a preto-e-branco - ganha cor. Uma criança dança num campo desportivo (a precisar de reparação) de Fordlândia, rodeado por campos verdejantes e árvores frondosas. A canção que se ouve é “Beija-Flor Verde”, de Marco Júnior Monteiro Brito, um dos habitantes da cidade, que tenta recuperar a abafada História e identidade cabocla. A canção integra os mitos e lendas escutados anteriormente. 

Prosseguindo o seu trabalho de confronto entre memórias fortes e memórias fracas, uma vez mais, a realizadora, deu palco às histórias que estão por contar, expondo os embaraços que a História construída pelos poderes dominantes sempre tenta ocultar.
 
[3] Fordlândia e Henry Ford foram inspiração para alguns elementos do futuro distópico descrito no livro Brave New World, de Aldous Huxley (1932). | O músico Jóhann Jóhannsson inspirou-se no projecto de Henry Ford, no álbum “Fordlandia” (2008, 4AD), que tem a ideia de utopia falhada como uma das suas principais linhas de criação. 
[4] Processo-Crime 141/53 – Enfermeiras no Estado Novo (2000); Natureza Morta: Visages d’une Dictature (2005), já exibido pelo Lucky Star; 48 (2010); Luz Obscura (2016). 
[5] Fordlandia Malaise: memórias fracas, contra-imagem e futurabilidade, Susana de Sousa Dias, Revista de Comunicação e Linguagens, 23/5/2020, https://rcl.fcsh.unl.pt/index.php/rcl/article/view/37 



Abrir Monte (2021) de Maria Rojas Arías



por Alexandra Barros

Em 1926, foi criado, na Colômbia, o Partido Revolucionario Socialista (PRS). O seu objectivo era começar a preparar uma revolução nacional para transferir o poder das mãos dos grandes proprietários de terras e meios de produção para o proletariado e camponeses, à semelhança do que se passara na União Soviética, em 1917. No início de 1929, os líderes do PRS acordaram que nesse verão tomariam o poder, actuando conjuntamente nas respectivas regiões. Numa povoação da região de Tolima, denominada Líbano, um grupo de revolucionários, auto-intitulado Los Bolcheviques del Líbano, em Tolima, prepara-se para participar no golpe. Por fim, o PRS decide que a revolução se iniciará no final de julho. Vem, no entanto, a saber que as autoridades nacionais estão ao corrente dos planos e a postos para neutralizar a insurreição; então, decide suspendê-la. O grupo de Líbano, Tolima é supostamente avisado, através de um telegrama, mas nunca chega a recebê-lo. Trezentos homens avançam para os principais postos do poder local, em 29 de julho, crendo que movimentos semelhantes estão a ocorrer em todo o país. Acto isolado, a rebelião não dura mais que um dia, logo vencida pelo poder vigente e dela “não reza a História”. Maria Rojas Arías fez este filme para resgatá-la do esquecimento e dar-lhe a relevância que acredita merecer. Foi a primeira guerrilla da América Latina de inspiração comunista, e além deste valor histórico, a realizadora considera que essa revolução seminal prossegue ainda o seu curso. 

Além de não haver um arquivo oficial sobre a insurreição, a população de Líbano, Tolima parece ter feito um pacto de silêncio sobre a mesma, na sequência do falhanço. Maria Rojas tenta descobrir os factos a partir de actas de reuniões do grupo de guerrilheiros e das memórias fragmentadas de quem viveu esses tempos. 
 
No filme, imagens de arquivo cruzam-se com imagens a preto e branco captadas pela realizadora em locais de alguma forma relacionados com o golpe. Mas ao transfigurar inusitadamente as imagens que captou - ora aplicando um intenso filtro vermelho (evocando as lanternas vermelhas usadas pelos revolucionários para se reconhecerem); ora introduzindo movimentos trepidantes ou giratórios; ora dando a ver apenas “pedaços” de imagens, descontextualizados; ora abstratizando as imagens (contraste de claros e escuros levados ao limite, por exemplo); ora recorrendo a enquadramentos tão fechados que deixam praticamente tudo fora de campo, ... - Maria Rojas constrói uma obra expressionista, em lugar de uma peregrinação guiada a lugares emblemáticos. Na impossibilidade de reconstituir de forma clara os acontecimentos, Maria Rojas criou uma colagem caótica de imagens obscuras que, na forma, reflecte as dificuldades da sua pesquisa e os resultados, necessariamente nublados, da sua investigação. Quando as imagens são acompanhadas por música, esta é áspera, dissonante, estranha, acentuando o carácter inquietante, fragmentário e impenetrável das composições visuais. A banda sonora é maioritariamente da responsabilidade de Sara Fernández, com contribuições de Lucrecia Dalt, duas artistas colombianas que fazem arte sonora e música experimental. 

As declarações que se ouvem em voz-off, foram escritas por Maria Rojas, entrelaçando testemunhos que recolheu in loco e dados recolhidos nas já referidas actas de reuniões. As palavras são ditas por vozes femininas para assinalar que as mulheres, geralmente omitidas das narrativas das revoluções, desempenham nelas imprescindíveis e meritórios papéis[1]. 

A simultaneidade de tempos que advém da forma como Maria Rojas mistura os seus diversos materiais (visuais, orais, auditivos, textuais, ...) é significativa. Através dela ressoa a convicção da realizadora: a revolução continua. Alexandra Barros 
 
[1] Fonte: entrevista a Maria Rojas Arias conduzida por Raquel Schefer, para DAFilms Conversations, 13/4/2023, https://www.youtube.com/watch?v=O2N2TyFsDrs



sábado, 26 de outubro de 2024

367ª sessão: dia 29 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


América do Sul em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Na próxima sessão desde ciclo, na terça-feira, exibem-se dois filmes, o primeiro Fordlandia Malaise de Susana Sousa Dias, cineasta que realizou vários documentários que exploram a temática da memória, tais como Viagem ao Sol, Luz Obscura, 48 e Natureza morta, este último exibido este ano pelo cineclube no âmbito do ciclo "50 Anos de Liberdade - Onde Estamos Nós no 25 de Abril". 
 
Fordlandia Malaise (2019) explora a decadência do empreendimento megalómano que a Empresa Ford implementou no Brasil em 1928, no seio da Amazónia, junto ao rio Tapajós. O plantio massivo de seringueiras e a construção de uma cidade obrigou à devastação da floresta, implantando-se um modo de vida e cultura hostil. Susana Sousa Dias explora a memória deste passado, recorrendo à imagem de arquivo e aos testemunhos dos habitantes actuais da cidade. 

"O filme tem uma história particular," disse Susana de Sousa Dias a Julia Fagioli em 2020, "porque foi um convite que me fizeram. Eu nunca tinha filmado fora de Portugal, e foi um coletivo artístico francês, o Suspended Spaces, que me convidou para ir com eles à Amazónia e, designadamente, a Fordlandia. Eles costumam trabalhar sobre o que chamam de espaços suspensos, espaços que foram edificados na modernidade e que não cumpriram propriamente os desígnios para os quais foram edificados e ficaram naquilo que eles designam por um estado de suspensão. Eu aceitei imediatamente o convite porque pareceu-me muito interessante o projeto, sobretudo porque no meu trabalho tenho me interrogado sobre aspectos ditatoriais ligados à ditadura portuguesa, mas também sempre na perspectiva de uma reflexão mais ampla, e aspectos do colonialismo. Nesse caso, estaríamos perante um empreendimento neocolonial, portanto isso interessou-me desde logo, trabalhar essa matéria. E depois, também, eu tenho – e esta é uma razão mais pessoal, mas eu tenho ascendentes na Amazónia, uma trisavó indígena, e precisamente daquela zona, ou seja, do triângulo Manaus-Belém-Fordlandia. Portanto, interessou-me muito, e foi a primeira vez que fui à Amazónia."
 
O segundo filme da sessão é uma curta-metragem de Maria Rojas, Abrir Monte, de 2021. O filme retrata a primeira guerrilha colombiana (1929), composta por um grupo de trabalhadores auto-nomeados “Los Bolcheviques del Líbano Tolima”, que se opôs ao governo conservador e à brutalidade policial, cuja violência espectral sombreia os planos de imagem em 16mm, narrados em voz-off pela anciã da vila e um grupo de mulheres no tempo presente, deixando transparecer que a luta não terminou. Esta sessão contará com a presença do produtor Ansgar Schaefer. 
  
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, esta terça às 21h30 e na quinta excepcionalmente às 19h. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Mandabi (1968) de Ousmane Sembène



por João Palhares

Percorrendo toda a história do cinema, se é que isso é possível, não se encontram muitos casos de realizadores cujos filmes tenham sido escritos por eles adaptando os seus próprios romances. Houve muitos romancistas que se tornaram argumentistas, houve muitos realizadores que escreveram os próprios argumentos, ainda há, mas a combinação romancista-argumentista-realizador é rara. Elia Kazan, com America, America e The Arrangement, adaptações dos seus livros homónimos dos anos sessenta, terá sido um dos primeiros, se descontarmos Marcel Pagnol e Jean Cocteau, que adaptaram algumas das suas peças ao cinema. Samuel Fuller escreveu e realizou os seus filmes, também escreveu romances, mas não realizou nenhuma adaptação de um romance seu, fez o contrário, novelizou uma obra que fez para a televisão (Morte na Rua Beethoven, editado pela Círculo de Leitores em 1989) e fez o mesmo com O Sargento da Força 1. Marguerite Duras é uma escritora muito conhecida, mas também realizou e adaptou para cinema várias das suas obras, como La Musica, Détruire, dit-elle, Jaune, Le Soleil ou India Song. Gordon Parks e Dalton Trumbo adaptaram The Learning Tree e Johnny Got His Gun, respectivamente, em 1969 e 1971, sendo o de Trumbo o único filme que realizou. E Catherine Breillat tem vindo a adaptar bastantes das suas obras para o cinema desde 1975, a última das quais em 2013, Abus de faiblesse

Nascido em 1923 em Ziguinchor, no sul do Senegal, Ousmane Sembène fez um pouco de tudo. Expulso da escola na sequência de uma disputa com o director, mudou-se para o Dakar aos dezasseis anos. Trabalhou como pescador, mecânico, pedreiro, foi mobilizado pelo exército francês e integrou os atiradores senegaleses, experiência traumática que incorporou num dos seus livros e que o tornou num anti-colonialista convicto. Foi estivador em Marselha durante dez anos e membro activo do partido comunista francês. Interessando-se pela escrita e pela literatura, começou a frequentar as bibliotecas da Confederação Geral do Trabalho e a seguir cursos oferecidos pelo partido comunista, publicando o primeiro romance, Le docker noir (“O Estivador Negro”), em 1956. “O partido comunista tinha muita força,” disse Sembène numa entrevista de 2004 a Michèle Levieux[1], “e o velho militante que há em mim deve dizer que foi o que me fez descobrir a literatura com os Cahiers du Sud, que se situavam em frente ao La Marseillaise[2]. Os meus primeiros textos foram editados pela Action poétique, que tinha publicado os poemas de Kateb Yacine e depois pela Présence africaine.” Da sua obra literária, foram publicados em Portugal Os pedaços de madeira de Deus, de 1960, pela Editorial Caminho em 1979, que foi reeditado pela Biblioteca Avante! em 2010, Xala, de 1974, pelas Edições 70 também em 1979, e O harmatão, de 1964, outra vez pela Caminho em 1983 

“Voltei a Dakar e viajei pela África,” contou Ousmane na mesma entrevista. “Queria conhecer o meu próprio continente. Fui a todo o lado ao encontro de povos, etnias e culturas. Tinha quarenta anos e vontade de fazer cinema. Queria dar outra impressão de África. Como a nossa cultura é oral, eu queria mostrar a realidade através das máscaras, das danças e da representação. A publicação de um livro escrito em francês chega apenas a uma minoria, enquanto que com um filme se pode fazer como Dziga Vertov, "Kino Pravda", cinema ambulante que permita discutir com as pessoas, debater ideias. Os melhores críticos são os do próprio povo.” Depois deste périplo africano, que durou um ano, Sembène foi ter com Georges Sadoul a Paris, conseguindo ingressar no Studio Gorki de Moscovo por intermédio de André Bazin. O cineasta soviético Mark Donskoi, conhecido pela trilogia de filmes que dedicou ao escritor Máximo Gorki, era o director da escola e foi também seu professor, junto a Serguei Guerassimov e Serguei Bondarchuk. Sarah Maldoror, realizadora do belíssimo Sambizanga, foi sua colega. “Todos me ensinaram que nada se consegue sem trabalho. Os melhores cineastas africanos, até hoje, foram formados na escola de cinema de Moscovo."

Mandabi é uma adaptação do romance do mesmo nome, também escrito por Ousmane Sembène. Descreve os muitos problemas que um vale postal de 25.000 francos enviado de França causa a Ibrahim Dieng, à família e à pequena comunidade que passa a depender do patriarca e a visitá-lo regularmente assim que sabe da notícia. Gradualmente, esse vale postal vai despertando a inveja e a mesquinhez de todos, facilitando muito a vida dos que menos escrúpulos têm em espezinhar os outros no processo, como os vários interesseiros que se oferecem para ajudar Ibrahim. Como disse Sembène noutra entrevista, “a corrupção não nasce com as pessoas. São as pessoas que cultivam a corrupção.”[3] O filme mostra-nos as consequências de um sistema burocrático herdado da França colonial, terrivelmente desenquadrado com as circunstâncias de vida de uma comunidade que se tem de endividar para comer todos os dias. O ritmo do filme, muito bem conseguido, permite-nos reparar em pequenos rituais como os cortes de cabelo na rua ainda no genérico inicial, as orações que todos proferem como vírgulas no seu discurso, mas que nenhum deus parece ouvir, os problemas que Ibrahim tem com a roupa que veste, ajeitando-a com as mãos a cada passo do caminho, ou os vários planos de pessoas com as mãos em colares de contas, subindo e descendo as pequenas esferas possivelmente para saber se o dinheiro vai chegar até ao final do dia. Um dos resultados de todo o processo é a encenação defensiva de um pequeno teatro das aparências, de se fingir que se é rico quando se é pobre, de “mentir para unir em vez de dizer a verdade para dividir,” de tirar um bocado aqui para pôr ali quando se tiver e esperar que ninguém repare no que quer que seja. E o vale postal revela-se mais caro do que aquilo que vale, levantá-lo equivale à penúria, portanto estamos com Ibrahim até ao fim e concordamos com ele quando diz que “vou deixar de ser decente. E também me vou converter num ladrão e num mentiroso.” Sobretudo depois de ver o engravatado mentir-lhe com todos os dentes quando ele está de joelhos a pedir-lhe o dinheiro que não lhe pertence. E, por fim, não resistimos a citar O harmatão, quando a páginas tantas se lembra que “(...) os ratos trabalham aos pares quando roem o pé da pessoa adormecida: um sopra e o outro rói. (…) O rato que sopra é a religião. O que rói é o imperialismo.”

[1] Publicada in «L'Humanité», 15 de Maio de 2004. 
[2] O Cahiers du Sud e o La Marsellaise são dois jornais de Marselha. O primeiro foi fundado pelo dramaturgo e cineasta Marcel Pagnol, com o nome de Fortunio, em 1914. 
[3] in «Rencontre avec Sembène Ousmane, écrivain-cinéaste sénégalais», publicado no Weekend, suplemento semanal do jornal senegalês Le Quotidien. Disponível no blog CinéAfrique.org: "https://archive.wikiwix.com/cache/index2.php?url=http%3A%2F%2Fblog.cineafrique.org%2F2009%2F08%2F27%2Frencontre-avec-sembene-ousmane-ecrivain-cineaste-senegalais%2F#federation=archive.wikiwix.com&tab=url" (consultado a 22 de Outubro de 2024).



quarta-feira, 23 de outubro de 2024

366ª sessão: dia 24 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Segunda longa-metragem de Ousmane Sembène para ver na biblioteca 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Na quinta-feira dia 24, às 21h30, exibe-se Mandabi de Ousmane Sembène, escritor e cineasta senegalês nascido em 1923 e falecido em 2007. A sessão será de entrada gratuita para todo o público e conta com o apoio da Alliance Française e do Institut Français du Cinéma. 

Em Mandabi, Sembène expõe a vida moderna do Senegal, abordando temas como o neocolonialismo e o capitalismo, as desigualdades sociais e a corrupção. Ibrahima Dieng vive no Dakar juntamente com as duas esposas e os 7 filhos. Desempregado e endividado, recebe uma ordem de pagamento emitida pelo sobrinho emigrado em Paris. 

Em 1968, em entrevista a Guy Hennebelle para a revista Jeune Cinéma, e face à pergunta sobre o que fazia antes do cinema e que idade tinha, Ousmane Sembène respondeu, "Oh, sou velho, muito velho. Nasci em 1923, em Ziguinchor, no Sénegal. Andei um bocado por todo o lado e exerci profissões muito variadas: pescador, pedreiro, mecânico. Fui estivador no porto de Marselha durante dez anos. Foi graças à União Soviética que me tornei cineasta. Passei um ano no Studio Gorki em Moscovo. Antes disso, tinha publicado vários livros a partir de 1956: Docker noir, Ô pays, mon beau peuple, Voltaïque, O harmatão. Em 1966, recebi o Primeiro prémio de romance no Festival des arts nègres em Dakar, por Vehi-Ciosane. Também foi nesse ano que a Présence africaine publicou Le Mandat do qual extraí a minha segunda longa-metragem."

"Nos países da África negra francófona (e noutros locais)," disse Sembène na mesma entrevista, "assiste-se actualmente ao nascimento de uma classe nova que não é tão composta por poderosos mas antes por intelectuais e quadros administrativos. É o surgimento dessa "nova classe africana" que eu denuncio. Já o tinha feito em Borom Sarret e La Noire de..., ainda que neste último filme estigmatize sobretudo o neo-colonialismo francês e o novo tráfico de escravos."
  
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

Moi, un noir (1958) de Jean Rouch



por João Palhares

Até há relativamente pouco tempo, não teria mais referências de Jean Rouch do que a memória de um professor que muitas vezes começava as frases com “Jean Rouch dizia...”, o que para um aluno talvez não seja a melhor das introduções a quem quer que seja, sobretudo se depois não se lembra das mensagens transmitidas. Mas a verdade é que o cineasta francês chegará muito provavelmente à maior parte das pessoas através dos conhecimentos que fez por esse mundo fora, das formações e ateliers que promovia um pouco por todo o lado e das relações que cimentou com museus, cineclubes e outros realizadores. Trabalhando sobretudo em África, influenciou Jean-Luc Godard, que disse que “Jean Rouch não roubou o título do seu cartão de visita: responsável de pesquisa no Museu do Homem. Existirá definição mais bela de um cineasta?” Trabalhou com Manoel de Oliveira nos anos noventa, o que resultou na curta-metragem En une poignée de mains amies, sobre a história do rio Douro e a relação dos dois homens com duas construções do arquitecto Gustave Eiffel. Já uns anos antes tinha apadrinhado presencialmente o doutoramento honoris causa do cineasta portuense na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em 1989, na qualidade de presidente da Cinemateca Francesa, sendo ainda um dos primeiros divulgadores mundiais da obra de António Reis e Margarida Cordeiro, quando nos disse a todos, nos anos setenta, para deixarmos tudo e irmos ver Trás-os-Montes[1]. 
 
Através do seu trabalho etnográfico com equipamento portátil de 16mm no continente africano, inspirou centenas de criadores a fazer outro tanto em África, em França, em Portugal e inúmeros outros locais. O alcance do mais pequeno gesto deste homem que fez mais de cem filmes e amava acima de todas as outras as obras de Dziga Vertov e Robert Flaherty, é imenso. Depois do 25 de Abril de 1974, veio muitas vezes a Portugal através do Instituto Franco-Portugais, no Porto, dirigido pelo diplomata e adido cultural Jacques d'Arthuys, que também trabalhou com Rouch em Moçambique na realização de Makwayela, curta-metragem fabulosa de 1977 em que um grupo de trabalhadores fabris moçambicanos interpretam uma canção e uma dança sobre o trabalho nas minas da África do Sul durante a colonização portuguesa, e na produção de ateliers de filmagem em super 8, formato privilegiado encontrado por Rouch para o ensino da antropologia visual e que foi requisitado como programa de ensino do cinema pela FRELIMO a Rouch durante o Kuxa Kanema, como se pôde ver no documentário homónimo de Margarida Cardoso. Daí não ser estranho traçar uma linha imaginária por esse país fora, percorrê-la e ouvir alguém na Covilhã, no Porto, em Braga ou em Viana dizer num fim de tarde qualquer, “eu conheci o Jean Rouch”. 

Como se tinha visto em Les maîtres fous, Rouch costumava levar os seus filmes apenas com as captações das imagens e projectava-os em vários locais, improvisando uma narração durante a exibição, o que o permitiria ver também como melhorar o texto que depois usava na narração final, mediante as críticas ou os elogios que recebia. Esta liberdade de produção, também por si inspiradora, faz dos filmes matéria viva que se pode trabalhar em digressão e encontro com os outros, não sozinho numa mesa de montagem escura. Como é óbvio, não é a única forma de trabalhar. E terá também as suas contrariedades, pois a partir de certa altura as possibilidades e os caminhos podem ser tantos que se esquece o porquê de se ter começado. Mas lembra-nos aquele início do belo livro de Jerry Lewis sobre cinema, The Total Film-maker, que é sempre boa ideia transcrever e quase que apetece fazê-lo de ponta a ponta, portanto saiba-se: 

Onde começam? Não há tabuleiro de Monopólio. Nenhum "Comece. Não Passe pela Casa Partida". Eu acho que se começa por estar só lá, sendo curioso e ter a paixão por fazer filmes. 
Mais importante: façam filmes, rodem película, passem película. 
Façam qualquer coisa. 
Façam filmes. Filmem qualquer coisa. 
Não tem que ter som. 
Não tem que ter título. 
Não tem que ter cor. 
Não há "ter que". Fazer, só. 
E mostrem-no a alguém. Se é uma plateia de um, façam e mostrem, e depois tentem outra vez. 
Isto é o "como". 
Parece simples. 
Não é. E daí, talvez seja.” 

Terá sido talvez o rescaldo da longa produção e do longo lançamento de Les maîtres fous, com as suas tentativas e erros, com a sua recepção polarizada e inconsciente, com a sua montagem criativa, esclarecedora e estruturante, que impulsionou Rouch no sentido da antropologia partilhada e Moi, un noir parece ser um dos primeiros exemplos dessa corrente na sua obra[2]. Para começar, já não é só ele quem narra o filme, deixando-se aliás para muito segundo plano e cabendo a maior parte da voz-off a Oumarou Ganda, que também interpreta Robinson e começaria a realizar os seus próprios filmes a partir da década de 60. Depois, a própria criação do filme foi pensada em conjunto tendo como ponto de partida a imagem já montada de uma película 16mm Kodachrome sem banda de som, sendo a estória criada pelos próprios actores, desafiados por Rouch a dobrarem e comentarem os seus próprios actos no ecrã. As ideias e as acções que estão por trás deste método, no caso de Moi, un noir, parecem-nos bem mais sedutoras do que os resultados, que pelo menos num primeiro contacto, que pode não ser suficiente, não parecem conter as surpresas e os assombros imprevistos do melhor trabalho de Rouch. Mas a antropologia partilhada nasce outra vez da admiração do francês por Robert Flaherty, que na rodagem de Nanuk, o Esquimó quase perdeu o emprego e se viu confrontado com o mau material que tinha reunido em montagem. Perdera ainda parte das filmagens num incêndio. Decidiu voltar ao Quebec e, desta vez, ia mostrando o que filmava aos inuítes enquanto decorria a própria rodagem, levando para o efeito equipamento de revelação e de montagem. Jean Rouch elevou a parada, mostrando não apenas o material que filmava aos seus actores, mas tornando-os também colaboradores activos na pesquisa, nas traduções, na captação sonora, na escrita, na produção e na realização, esperando assim que as suas vozes fossem parte integrante dos seus filmes e que depois assinassem até os seus próprios trabalhos.

[1] “Allez voir, toutes affaires cessantes, Trás-os-Montes!”
[2] Não tivemos tempo para fazer um levantamento exaustivo da obra de Jean Rouch, portanto não sabemos se Baby Ghana, também narrado a dois, foi feito antes ou depois de Moi, un noir.



Les maîtres fous (1955) de Jean Rouch



por João Palhares

“Eu e os meus produtores concordámos que Les maîtres fous só devia ser mostrado em cinemas de arte e ensaio e em cineclubes,” disse Jean Rouch a Ousmane Sembène numa conversa de 1965 que se tornou histórica e importante por várias razões e foi publicada apenas dezassete anos mais tarde no no 34 da revista CinémAction[1]. “Eu não acho que filmes como esse devam ser mostrados a públicos grandes e desinformados sem qualquer tipo de introdução ou de explicação. Mas também acho que as pessoas em Les maîtres fous, com a sua cerimónia muito especial, nos oferecem um contributo primordial para a cultura global.” 

Segundo filho de Jules e Luce, Jean Rouch passou a infância e a adolescência entre o porto de Rochefort e Marrocos, de acordo com as incumbências do pai ao serviço da marinha francesa. Trabalha como estagiário na construção da ponte de Saint-Cloud, sobre o Sena, depois de um primeiro ano na École des Ponts et Chaussées. Em 1940, é mobilizado para a frente de guerra no leste de Paris, sendo desmobilizado no mesmo ano para acabar os estudos. De férias, no ano seguinte, toma a decisão de deixar a França com dois amigos, Pierre Ponty e Jean Sauvy. Engenheiro civil diplomado, tem as primeiras aulas de etnografia no Museu do Homem com Marcel Griaule e Michel Leiris. Parte para África ao serviço das Obras Públicas das Colónias, construindo estradas em Niamei, onde conhece o pescador sorko Damouré Zika, que o apresenta aos rituais do povo songai através da avó, Kalia, e se tornará seu colaborador em inúmeros filmes futuros. Realiza então as suas primeiras curtas-metragens, Au pays des mages noirs (1947), sobre um ritual de caça praticado por uma tribo sorko, Les magiciens de Wanzerbé (1948), centrado nas cerimónias colectivas praticadas por feiticeiros que protegem as aldeias no Níger, Initiation à la danse des possédés (1949), ambientado em Firgoun e descrevendo danças de possessão como meio de entrar em contacto com os deuses, Circoncision (1949), em que documenta a cerimónia iniciática da circuncisão entre os songai, Cimetières dans la falaise (1950), sobre os rituais fúnebres dos dogons em Mali, Bataille sur le grand fleuve (1951), descrição fabulosa, violenta, triste e doce da caça ao hipopótamo no rio Níger ao longo de seis meses e Yenendi – les hommes qui font la pluie (1951), documento da cerimónia anual em que os songai pedem água para as colheitas aos deuses do céu. 

Os irmãos Lumière mostraram os seus filmes no Egipto, na Líbia e na Tunísia menos de um ano depois da sessão inaugural do Salon indien du Grand Café, em 1895, enviando também Alexandre Promio para filmar Sousse. Marché aux charbons (avec chameaux) (1896), Rue Bab-Azoun (1896), Place du Gouvernement (1896), Descente de la grande pyramide (1897) ou Egypte, panorama des rives du Nil (1897), entre muitos outros panoramas e vistas de África. Segundo Jean Rouch[2], que dividiu o cinema africano em cinco tendências mais ou menos cronológicas (“A África Exótica”, “A África Etnográfica”, “A África em mudança”, “O verdadeiro cinema africano em embrião” e “O cinema africano por e para africanos”), houve um ilusionista que roubou um animatógrafo do teatro Alhambra, em Londres, e o usou para introduzir o cinema na África do Sul ainda no século XIX. Tanto o Egipto como a Tunísia veriam nascer grandes indústrias de cinema durante o século XX, mas nas colónias francesas os africanos eram proibidos de filmar pelo Decreto Laval de 1934, revogado apenas em 1960 quando as colónias se tornaram independentes. 

“Esta invenção maravilhosa que suscitou tamanho deslumbramento também me deixou ciente de inúmeras coisas,” escreveu um escritor egípcio anónimo sobre uma dessas sessões dos Lumière[3], “sendo a mais importante a de que apreendi o segredo do progresso dos estrangeiros. Descobri que nós não seríamos menos do que eles se tivéssemos os mesmos materiais, e se, como eles, relacionássemos o trabalho com a ciência e ligássemos o material ao imaterial.” E abaixo da linha do Saara? Até ao surgimento do cinema africano por africanos, na chamada África tropical, e cujas figuras de proa poderão ser Ousmane Sembène, do Senegal, e Souleymane Cissé, do Mali, o cinema africano era feito por europeus, melhor ou pior intencionados, com maior ou menor sucesso, e que quando tudo se conjugava conseguiam lançar um olhar desimpedido sobre o que se passava, sem ditames ou convenções coloniais. Segundo Jean Rouch, seria este o caso de O Cruzeiro Negro (1926) de Léon Poirier, um relato da expedição automóvel entre o norte e o sul do continente africano organizada por André Citroën em 1924-25, e Voyage au Congo (1928) de Marc Allégret, média-metragem documental resultante de uma viagem que o realizador francês fez em 1926 com André Gide, que escreveu também dois diários sobre o acontecido, Voyage au Congo e Retour du Tchad, publicados pelas Éditions Gallimard em 1927 e 1928, respectivamente.
 
Em 1937, foi inaugurado o Museu do Homem. Descendendo directamente do Museu de Etnografia do Trocadéro, fundado em 1828, é uma instituição dedicada à reunião de tudo o que define o ser humano em termos de evolução, unidade, diversidade e expressão cultural e social. Com a acessibilidade crescente de câmaras portáteis de 16mm (muito utilizadas pelos serviços de terreno do exército durante a 2ª Guerra Mundial, por exemplo), iniciou-se um movimento composto por jovens saídos das forças armadas da Resistência que se reuniu em torno do Museu e começou a registar músicas, rituais e cerimónias um pouco por todo o mundo. O século XX, justa ou injustamente, acelerou a evolução de todas as sociedades e de todas as coisas, tornando-se imperioso salvar manifestações culturais em vias de extinção, e o cinema era o meio privilegiado para o fazer. Daí a importância do trabalho que Marcel Griaule, Jean d'Esme, G. H. Blanchon, Luc de Heusch, Henry Brandt e o próprio Jean Rouch levaram a cabo no continente africano. No fundo, descobriram que todos temos a responsabilidade e sobretudo a oportunidade de fazer com que certas coisas não se esqueçam, e que o trabalho pode começar mesmo em casa, ao virar de uma esquina. Sobretudo neste novo século, mais propenso ainda ao esquecimento. 

O movimento Haouka é um movimento religioso que começou no Níger como forma de resistência ao regime colonial francês. Compõe-se de cerimónias em que os participantes mimetizavam os ocupantes do seu país, praticando coreografias militares e entrando num transe que permitia que os espíritos dos colonos se apoderassem por sua vez dos seus corpos. Segundo alguns antropólogos, as cerimónias serviriam para ridicularizar os colonos e para lhes roubar os poderes. Segundo outros, para os haouka conquistarem direitos e estatuto no interior da sociedade colonial e industrializada, para ganhar o respeito dos europeus. Entre as personagens da cerimónia, contam-se os espíritos de Capral Gardy, cabo da guarda, Samkaki, condutor das locomotivas, o capitão Malia, capitão do Mar Vermelho, a Sra. Lokotoro, mulher do médico, o tenente Malia, tenente do Mar Vermelho, o governador, a Sra. Salma, mulher do tenente Salman, um dos primeiros oficiais franceses a chegar ao Níger em finais do século XIX, o general, o soldado Tyemoko, o Secretário Geral, Maymota, o caminhoneiro e o comandante Mougou, o comandante mau. 

Les maîtres fous, filme de Jean Rouch sobre esta cerimónia, ganhou o primeiro prémio de filmes etnográficos, geográficos, turísticos e folclóricos do Festival Internacional de Veneza de 1957. Mas também foi banido pelo governo britânico, que além disso já tinha prendido haouka nos anos trinta por terem imitadohomens brancos. Elogiado por Jules Dassin, que disse que era “um filme apaixonante” e pelo antropólogo e realizador belga Luc de Heusch, a curta teve uma recepção desastrosa numa primeira apresentação no Museu do Homem, onde várias personalidades do mundo do cinema e da etnografia a consideraram racista (entre as quais o antigo professor e colaborador de Rouch, Marcel Griaule, e o cineasta senegalês Paulin Soumanou Vieyra). Nesta altura, Rouch improvisava uma narração sobre uma projecção muda, e aquilo que era dito não estava ainda devidamente transcrito nem traduzido. Contactado e apoiado pelo produtor Pierre Braunberger, o cineasta francês conseguiu que um dos participantes do filme, Moukalya, “o homem tranquilo”, lhe explicasse o que é que os haouka diziam. Mas as reacções extremadas ao filme continuariam ao longo das décadas. “As pessoas tinham-se enraivecido por razões opostas,” disse Jean Rouch em 1996, “os brancos não podiam admitir que a sua imagem fosse interpretada por africanos que os mostravam de forma deprimente e aterradora ao mesmo tempo, e os negros não suportavam, por seu lado, o final do filme em que as pessoas estavam cobertas de sangue. Para uns, era um filme sobre os selvagens, e para outros um filme insultuoso!” 

Talvez não seja surpreendente que um filme que tenha como objecto uma dupla possessão dos brancos pelos negros e dos negros pelos brancos, que seja fruto do olhar de um francês sobre África e que veja essas mesmas dicotomias e esses mesmos diálogos ilustrados e sintetizados num corte na estrada em que uma carrinha preta se transforma numa carrinha branca, além de conter nele actos bastante violentos que podem ferir bastantes susceptibilidades – como qualquer grande filme, apetece dizer –, permaneça controverso. Mas é o retrato sincero de uma encenação muito complexa e revoltada, que abriu a Jean Rouch um mundo novo no domínio da montagem (processo que, para este filme, durou três meses e contou com Suzanne Baron, montadora de Jacques Tati) e marcou um ponto de viragem na sua carreira, momento a partir do qual começou a pôr em causa as suas próprias narrações e o lugar dos homens e mulheres que escolheu como modelos, oferecendo-lhes desde então o cinema como meio de luta e de afirmação.

[1] Revista de cinema fundada por Guy Hennebelle e Monique Martineau em 1978.
[2] in «The Awakening African Cinema», The Unesco Courier, Março de 1962. 
[3] Citado in «Alexandria, Why? II. The Beginnings of the Cinema Industry in Alexandria», disponível no site «Alex Cinema»: https://www.bibalex.org/alexcinema/historical/beginnings.html (consultado a 13 de Novembro de 2024).



sábado, 19 de outubro de 2024

365ª sessão: dia 22 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Dois filmes de Jean Rouch para ver na biblioteca 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça à noite, às 21h30, exibem-se dois filmes rodados pelo cineasta francês Jean Rouch nos anos cinquenta, a longa-metragem Moi, un noir e a curta Les maîtres fous
 
Em Moi, un noir, dois jovens nigerianos, inábeis nos modos de vida moderna regidos pelos primados do liberalismo económico, deambulam pela cidade de Treichville, na Costa do Marfim, ainda sob domínio francês, à procura de trabalho. 
 
Nesta etnoficção, Rouch aplica o que denominou por “antropologia partilhada”, incentivando os envolvidos a auto-representarem-se. Os protagonistas auto-nomeiam-se com nomes fictícios, recorrendo a referências de filmes estadunidenses que povoam o imaginário coletivo para construir a narrativa dos seus quotidianos, contada em voz-off, mesclando realidade e ficção. 
 
Les Maîtres Fous mostra-nos os rituais praticados no Gana pelos Haouka, um grupo de imigrantes originários da Nigéria. Durante as cerimónias, realizadas anualmente, incorporam e mimetizam as figuras do poder colonial em estado de transe, como que possuídos por demónios antigos. Entre coreografias e expurgações, o trauma colonial é desvelado, pondo a nu a violência arqui-secular cravada nos corpos e nas mentes.
 
"O latim é uma coisa essencial que se abandonou," disse Jean Rouch em entrevista a José da Silva Ribeiro quando este lhe perguntou qual deveria ser a formação de alguém que quer fazer filmes etnográficos. "Foi um erro enorme, os grandes poetas franceses faziam versos latinos, Rimbaud, Baudelaire, que acabei de citar, faziam versos latinos. Porquê? Porque um verso latino constrói-se pelas últimas palavras, para obter a rima. Por isso, constrói-se ao contrário, o cinema é isso. A narrativa cinematográfica deve saber para onde vai. Assim monta-se um filme ao contrário. Parte-se da última imagem e faz-se a montagem para sabermos para onde vamos. E é assim que eu faço a montagem e é também assim que faço a realização. Plano a plano. Eu filmo, sempre que possível, os meus filmes, nem sempre é possível, por ordem. Como tenho cenários naturais, não há cenários a construir, é fácil partir de uma história e saber como terminamos cada sequência e aí, de repente, há um momento extraordinário, quando se filma com pessoas que improvisam, eu próprio improviso e a um determinado momento, alguém tem a última palavra e ter a última palavra é contar uma boa história. Em francês dizemos “uma história sem pés nem cabeça”. A cabeça está à frente dos pés, é por isso que é muito importante sabermos para onde vamos. É isso que faz o raccord. Na dança é a mesma coisa. O importante é a paragem. Em música é a mesma coisa, é a pausa, por isso, a primeira coisa é aprender esta espécie de ritmo, de montar as coisas pelo fim."

As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Margot (2022) de Catarina Alves Costa



por Virgílio Oliveira e Jessica Sérgio Ferreiro

Vigarizaram-nos de forma inenarrável ao ensinar-nos sobre a África “portuguesa”. Fizeram-nos aprender os rios, as vias-férreas o nome das províncias e os nomes das respetivas capitais, e dramaticamente não nos ensinaram nada sobre os afetos. A dada altura, quando nos é mostrado um excerto de um filme feito pelo Estado Novo, com aquela voz de timbre e tom decentes e que era indubitavelmente reconhecida como voz da propaganda, quase que choramos de raiva. Choramos porque os desordeiros têm a mania de ordenar os outros. A instrumentalização das imagens das danças Mapiko, que Margot recolheu dos Maconde, é desvirtuada por uma narração sobranceira e preconceituosa. 

Margot Dias (1908 - 2001) foi uma pianista alemã e etnomusicóloga que, juntamente com o antropólogo Jorge Dias, realizou várias missões etnográficas em África durante a ocupação colonial, confrontando-se com problemas ético-políticos inerentes ao sistema colonial e que, por conseguinte, afectavam o trabalho de campo e a relação que mantinha com a comunidade Maconde, especialmente após o Massacre de Mueda, em 1960. 

O filme começa com a entrevista que a realizadora fez a Margot em 1996, esta já com 88 anos. Várias passagens dos diários de Margot são lidos por esta, à medida que também nos conta as suas memórias de África. Catarina Alves Costa recorre aos diários de campo de Margot para nos narrar (em voz-off) as imagens que Margot registou, proporcionando-nos profundidade e complexidade aos apontamentos ou fragmentos vídeo-sonoros que isolam as práticas musicais e ritualísticas, ou seja, dão-nos uma visão do que ficou fora do campo de imagem. Assim, é nos dado a conhecer o contexto político-social da altura, bem como as impressões pessoais de Margot acerca da sua relação com as comunidades e das circunstâncias vividas. 

Partimos/transitamos, deste modo, entre a crítica a um regime de pensamento e de representação, que podemos classificar de “ocidental” (modo de fazer ciência), que tem o “outro” e a sua cultura como objecto de estudo. A obsessão em dissecar, descrever e compreender as práticas e hábitos culturais do “exótico”, bem como registar, guardar e conservar os objectos retirados do seu contexto, usos e simbolismo, está patente nas estantes do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, que as imagens atuais, captadas por Catarina Alves Costa, nos mostram das máscaras, usadas no rito de iniciação Likumbi, e dos vasos de barro escuro e de desenhos brancos. Em contraponto, vemos as filmagens antigas de Margot que nos esclarecem sobre a origem e função destes objectos e rituais, de par com a música e os instrumentos musicais tradicionais, mas que revelam o mesmo interesse pelo desvendar dos segredos do “outro”[1] (ex: rituais de iniciação feminina, normalmente velada). 

Catarina Alves Costa revisita todo o material recolhido e viaja até Moçambique, como Margot fizera décadas antes, para devolver as imagens e registos sonoros que a musicóloga Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, ou seja, para o Estado Novo, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos. 

Assim, Margot representa o sujeito colonial e encarna as “crises” da antropologia na época colonial e pós-colonial. Não obstante, o filme não se contenta com uma visão simples polarizada de Margot e do próprio trabalho antropológico, demonstrando e comprovando as ambivalências e complexidades intrínsecas ao ser(-se) humano. A leitura dos diários revela-nos o olhar crítico que Margot e Jorge já tinham da violência colonial, da desigualdade e falta de respeito para com os africanos. Percebemos, ainda, a relação emocional estabelecida entre as várias pessoas envolvidas nos estudos das missões etnográficas e a importância desta para Margot. 

Catarina Alves Costa percorre os locais e pisadas de Margot, na expectativa de, porventura, reencontrar pessoas que a tenham conhecido, para recolher, por sua vez, memórias acerca da destemida investigadora, e, em jeito de retorno, talvez reencontrar-se a si mesma, enquanto antropóloga, mulher e pessoa. Assim, à medida que a investigadora mostra aos moçambicanos de Hoje, as imagens do seu passado e sua cultura, são reativadas memórias, partilhas e emoções. A importância em descolonizar a cultura e o pensamento são evocadas pelos jovens músicos de origem Maconde que tentam recuperar as artes musicais do seu povo, bem como a emergência em resgatar a sua cultura e identidade, perdida gradualmente ao longo dos vários conflitos (guerra colonial e Guerra Civil Moçambicana) e do subsequente êxodo rural para as cidades, mas, também, em prol de uma cultura-mundo (conceito de Gilles Lipovetsky, entenda-se, cultura hegemónica como a cultura de consumo e das indústrias culturais). 

*

Assim, este filme leva-nos numa viagem pelo tempo, revisitando modos de vida que coabitavam com o passado colonial, para chegar à actualidade, composta pelos mesmos “lugares de memória” de outrora, estando, contudo, em cena, novos atores e costumes, salvaguardando-se o arquivo e a memória partilhada entre dois povos. 

Este documentário revela, ainda, a importância do trabalho etnográfico desenvolvido e do cinema como “lugar de memória viva”, que poderíamos precipitada e erradamente julgar como uma forma de mortificar a memória. Neste gesto que Margot, de forma pioneira, iniciou e que Catarina perpetua, a memória do passado, presente e futuro continuarão a nutrir os imaginários dos que virão depois, como é tão bem declarado por um escultor de estatuetas na segunda metade do filme. 

O filme termina com o fim da missão etnográfica e a despedida de Margot, “forçada” a deixar Moçambique devido à intensificação das tensões entre o poder colonial e as forças de libertação, pois sabemos que os Maconde, situados no planalto a norte e sul do rio Rovuma, foram guerrilheiros importantes, existindo um bairro específico para estes em Maputo (e que Catarina visita). Depois do Massacre de Mueda em 1960, em que centenas de trabalhadores (Maconde) das produções de algodão reclamavam por melhores condições de trabalho, foram assassinados pelas autoridades portuguesas, acontecimento dramático que teve impacto na relação que Margot tinha com a comunidade. Apesar de ter sido bem recebida e integrada quando voltou sozinha em 1961 a relação altera-se, como a própria narra emocionada na entrevista com Catarina, referindo a gentileza e o tacto com que foi tratada, relendo o momento em que lhe fizeram uma pulseira de barro e lha colocaram, como tipicamente fazem as mulheres Maconde quando vão pela primeira vez buscar barro. Contudo, o início do conflito armado (indícios que por vezes se notam quando surgem, inadvertidamente, no campo de imagem de Margot, uma ou outra AK-47, por entre aqueles que executam danças tradicionais) e a desconfiança ou, melhor, as precauções que os Maconde tomam em relação a Margot Dias, talvez por ordem da FRELIMO, impossibilitam o seu trabalho etnográfico e obrigam-na a regressar à metrópole. 

Em suma, o que a Catarina consegue é fazer um extraordinário filme que nos conta a história toda, alinhando os sucessivos apontamentos e registos que Margot deixou para a memória do futuro.

[1] Como o filósofo e escritor da Martinica Édouard Glissant acusa, defendendo o direito à opacidade.




quarta-feira, 16 de outubro de 2024

364ª sessão: dia 17 de Outubro (Quinta-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Esta quinta-feira exibe-se Margot de Catarina Alves Costa, antropóloga e realizadora portuguesa. Realizou vários documentários etnográficos, lecciona e desenvolve investigação na área do cinema e da antropologia. É, ainda, autora do livro Cinema e Povo. Representações da cultura popular no cinema português (2021) e estará presente nesta sessão. 

Em Margot, o passado colonial é explorado a partir do trabalho da etnomusicóloga alemã Margot Dias, realizado, entre 1958 e 1961, na região de Mueda, em Moçambique. Os registos das práticas culturais dos Maconde são revisitados pela realizadora que se desloca até Moçambique para os partilhar com a comunidade, num gesto de restituição da memória, procurando, por sua vez, testemunhos acerca da passagem de Margot.

"Foi um filme que comecei a trabalhar há muitos anos," disse Alves Costa sobre o seu filme em entrevista ao diário 7MARGENS no ano passado, "ainda quando trabalhava no Museu de Etnologia, então dirigido por Joaquim Pais de Brito e surgiu a ideia de fazer um guia dos filmes da Margot Dias. Nesta altura, conheci o trabalho dela e nunca mais deixei de pensar no assunto. Sonorizei para um DVD os seus arquivos para a Cinemateca e a ideia do filme foi surgindo. Já sabia tantas coisas sobre aquela história.

Quando lhe perguntaram na mesma entrevista como foi o encontro com Margot Dias, a realizadora respondeu que "foi uma pessoa com uma capacidade enorme para mudar a sua vida já numa fase madura. Foi inicialmente pianista e começou a dedicar-se à Antropologia quando conheceu Jorge Dias. Era uma pessoa muito fascinada por África. O filme conta um pouco a história do trabalho destes investigadores durante a guerra colonial, onde se cruzavam personagens complexas e não tanto os bons e os maus. Ela filmou o povo da etnia “Makonde”, no Norte de Moçambique e procurei ir à procura da forma como essas pessoas olham para esta história. É um filme com várias camadas e muito pessoal. Também entro no filme…"
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Quinta!

KARINGANA os mortos não contam histórias (2020) de Inadelso Cossa



por Jessica Sérgio Ferreiro

Inadelso Cossa é um jovem realizador e produtor moçambicano, nascido em 1984, que conta com várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana, tal como a curta-metragem Uma memória quieta (2014), que retrata a violência exercida pela PIDE em Moçambique, a longa de documentário Uma memória em três atos (2017), sobre o trauma pós-colonial e o esquecimento ou as rasuras da memória e, ainda, a sua mais recente longa de ficção As Noites ainda cheiram a Pólvora (2024), ainda a correr os festivais. 

Em KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), o protagonista chega ao que nos parece uma terra desertificada. Trazido por um carroceiro e seu burro, relembra-nos o Caronte que transporta os mortos para o submundo. O protagonista chega, assim, à sua terra natal, à aldeia desaparecido depois da guerra colonial e da Guerra Civil Moçambicana, que durou 16 anos e teve início 2 anos após a Independência. Tema, o qual, o filme anterior Kuxa Kanema – O nascimento do cinema, exibido nesta sessão explora. 

O protagonista de KARINGANA os mortos não contam estórias, procura o velho Yamba para que lhe devolva a memória de um passado que esqueceu, ou seja, que não viveu, mas que sente no âmago do seu ser, um vazio que o desterro deixou antes do seu nascimento e da tomada de consciência na linha do tempo presente. Este exílio refere-se ao trauma da guerra e seus refugiados, ao stress pós-traumático, bem como todas as marcas que deixou naqueles que herdaram as dores que os seus ascendentes emanavam, expressavam ou reprimiam, refere-se assim à pós-memória e, em específico, à pós-memória do trauma. Em suma, a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

“Karingana wa Karingana” é uma expressão dos Ronga de Moçambique, similar a “era uma vez”, diz respeito à prática cultural de contar estórias (oralmente), ao conhecimento imbuído nas fábulas, nos contos e na poesia, ou seja, é o reportório cultural de um povo, a memória incorporada e a História Oral de um povo. Karingana é a prática através da qual a herança cultural é transmitida de geração em geração. Contudo, a necessidade do protagonista ouvir as estórias do velho Yamba não pode ser satisfeita, porque o velho sábio está surdo e mudo, de olhos inflamados e vidrados, preso no passado que o trauma lhe traz de volta à retina incansavelmente. A repetida ocorrência vívida e literal do trauma que surge na consciência pelo inconsciente do velho é declarada pelo protagonista/narrador que encontra o velho Yamba num canto escuro de um quarto/sala, em silêncio, com o olhar fixo num horizonte que não conseguimos ver, uma realidade paralela, um passado longínquo, incrustado na mente do velho sábio que já não pode contar estórias. 

Assim, como o olho gasto do velho Yamba que, através de uma visão esférica e constrita, revive as memórias traumáticas que lhe surgem no interior da mente e do olhar, o protagonista procura na sua câmara de filmar de 8mm, no arquivo e no cinema em geral, imagens do passado e do que dele restou. Olhar, o qual, nos é mostrado através de uma lente grande-angular, quase de olho-de-peixe, dando-nos a impressão de que também estamos a espreitar pelo ocular do visor da câmara de filmar, como o protagonista, tentando captar o passado (registado), surgindo as imagens de arquivo dos refugiados de guerra, mas também da bela mulher (Kaila) que se banhava nas águas calmas do rio, mas que já desaparecera com a possibilidade do sonho do protagonista se poder juntar a ela (morte da utopia). 

Esta procura do passado no que ficou registado dele e no acto de filmar o que dele restou no presente, não nos permite, contudo, aceder ao que o velho Yamba vivenciou, viu e vê na solidão do seu silêncio, pois, como a reaparição do trauma, mesmo que literal, é o atraso próprio do trauma e da sua re-ocorrência (reviver do trauma por aquele que sofre de stress pós-traumático) na linha de tempo presente que não nos permite testemunhar o próprio tempo e o que já aconteceu, muito menos participar ou alterar o passado que teima, também, em assombrar os contemporâneos que são os herdeiros da memória coletiva de um povo que sofreu. Não obstante, o esforço do protagonista na luta contra o tempo, através da sua máquina de filmar (câmara como arma) não é totalmente mal-sucedida. É no silêncio e no deserto das ruínas do passado, que a câmara de filmar do protagonista captou, que encontramos o indizível, o irrepresentável (como o próprio afirma no final: “Qual estória narrar?” Como representar o que não se vivenciou, o passado insondável e complexo? Como representar o irrepresentável, a violência e o terror?). 

O velho Yamba, de par com a bela jovem – o fantasma de Kaila, poderão significar, também, todos aqueles que pereceram na guerra e aqueles que já se foram e não puderam contar as suas estórias ou curar-se do trauma do terror, pois os mortos não dizem poesia, nem ouvem poesia. Os mortos não contam estórias.



Kuxa Kanema - O Nascimento do Cinema (2003) de Margarida Cardoso



por António Cruz Mendes

Margarida Cardoso, nascida em Tomar, viveu em Moçambique até aos 12 anos de idade. Regressada a Portugal, estudou cinema e comunicação visual na escola António Arroio e trabalhou como assistente de realização, anotadora e fotógrafa de cena com vários realizadores (Joaquim Leitão, João Botelho, Luís Galvão Teles, Luís Filipe Rocha...) e iniciou a sua carreira como realizadora em 1996. 

Kuxa Kanema, a sua segunda longa-metragem, uma montagem de imagens de filmes produzidos pelo INC intercalada por depoimentos de pessoas que estiveram envolvidas na sua realização, pode ser abordada a partir de diferentes linhas de leitura. 

Numa primeira abordagem, é um documentário que começa por nos informar das condições de vida do povo moçambicano, sobretudo nas zonas rurais, à data da independência. A imagem das palhotas, das crianças descalças, da ausência de estruturas básicas de saúde e educação, revelam uma situação de subdesenvolvimento económico fundado numa agricultura de subsistência. Mas dá-nos também notícia das esperanças emancipadoras despertadas pela independência, bem patentes nas imagens dos grandes comícios e do entusiasmo despertado pelas palavras de Samora Machel. E, depois, das consequências da guerra de agressão perpetrada pela África do Sul e pela Rodésia, mais tarde prolongada pela guerra civil desencadeada pela RENAMO, os “bandidos amados” de que nos fala a propaganda oficial. Acontecimentos trágicos que fizeram de Moçambique um dos países mais pobres do mundo. 

Ao mesmo tempo, o filme de Margarida Cardoso documenta a história do INC, criado logo após a independência e produtor de um jornal cinematográfico de actualidades, meio imprescindível de comunicação num contexto caracterizado por uma taxa de alfabetização muito baixa. O filme fala-nos do seu nascimento, do voluntarismo dos intervenientes e da criação necessariamente apressada dos recursos técnicos e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, do acolhimento entusiasta das unidades móveis que se deslocavam às aldeias para aí projectar os filmes realizados. E, depois, a sua decadência, vítima das circunstâncias da guerra (salas de cinema destruídas, unidades móveis impedidas de se deslocarem com segurança) e, por fim, do advento da televisão como meio privilegiado da comunicação social. 

Mas, o filme de Margarida Cardoso pode ainda ser lido como uma reflexão acerca dos vínculos que relacionam o cinema com o poder e, neste caso, com o poder político. “Captar as imagens do povo e devolvê-las ao povo” era o lema do projecto do INC. Mas, esse processo teria que ter necessariamente um programa director. O que filmar? Que critérios deveriam presidir às filmagens? Quando Jean-Luc Godard, de visita a Moçambique, propôs que os meios de que dispunha fossem oferecidos à população para que ela os pudesse usar como entendesse, essa proposta “maluca” foi rejeitada pelo governo. As autoridades moçambicanas nunca poderiam abdicar completamente da sua supervisão sobre a actividade cinematográfica. Não havia, é certo, tal como nos é dito, uma “comissão de censura” e a liberdade dos realizadores era considerável. Mas, todos tinham consciência do significado político das suas opções e acabavam por ser eles próprios, a submeter-se a uma espécie de auto-censura. Não havia, nem nunca poderia haver, filmagens que, face a dilemas inevitáveis, pudessem assumir uma posição neutral. O que filmar? Como filmar? Qualquer opção que fosse tomada reflectiria necessariamente uma determinada perspectiva dos acontecimentos vividos. E isso tornou-se ainda mais patente num cenário de guerra de agressão e de guerra civil. Era inevitável tomar partido e, a partir de certa altura, essa obrigação foi-se traduzindo numa mensagem cada vez mais maniqueísta, mais simplista, mais distante da realidade. 

De certa forma, a história contada em Kuxa Kanema confunde-se com a história de Moçambique. O estado de abandono das suas instalações do INC, parcialmente destruídas por um incêndio e, desde então, nunca recuperadas, as bobinas enlatadas que apodrecem ao abandono, guardadas por funcionários que, inactivos, esperam o dia da sua reforma, podem também ser vistas como a metáfora de um sonho que se perdeu nas encruzilhadas da história. Neste sentido, o filme de Margarida Cardoso é também um acto de resistência. Ao ressuscitar desse cemitério as imagens de um tempo de grandes esperanças, ele recorda-nos que a crença num mundo melhor é, em última análise, imorredoura.



sábado, 12 de outubro de 2024

363ª sessão: dia 15 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Moçambique em foco esta semana no cineclube 
 
Durante o mês de Outubro, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe catorze filmes em parceria com os Encontros da Imagem, com sessões às terças e quintas-feiras no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. O ciclo adopta um termo cunhado pelo poeta e ensaísta Édouard Glissant, intitulando-se “Cinema Todo-Mundo - colonialismo e a memória do futuro”. 
 
Terça-feira à noite exibir-se-ão então dois filmes: Kuxa Kanema: O Nascimento do Cinema de Margarida Cardoso, importante cineasta portuguesa que realizou vários documentários e longas de ficção que exploram a temática colonial e pós-colonial, como Banzo, Yvone KaneCosta dos Murmúrios e Natal de 71. E a curta-metragem KARINGANA os mortos não contam estórias de Inadelso Cossa, jovem realizador moçambicano que conta várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana.. 
 
Kuxa Kanema centra-se no Instituto Nacional de Cinema e no “cinema ambulante” implementados pelo governo moçambicano após a independência. A crença na possibilidade de uma política diferente, erigida sobre valores da liberdade e igualdade, uniu vários realizadores que aspiravam ver crescer Kuxa Kanema, o cinema de todos para todos. 

"Eu não fiz nada específico para voltar a África," disse Margarida Cardoso numa mesa-redonda de 2010 com Ana Paula Ferreira e a escritora Lídia Jorge, "aconteceu um dia ter ido lá, por questões de trabalho e, claro que aqui há uma grande diferença, eu voltei ao território da minha infância, Moçambique, e não fui recebida no aeroporto por um grupo de ninjas que me atacaram e que me fizeram fugir e eventualmente poderia nunca mais ter voltado a Moçambique. Porque eu sei que há muitas coisas que quero procurar. Sempre tive a fantasia de que as poderia encontrar, a essência do que se passou lá, que mal destruiu a minha narrativa. Houve qualquer coisa que a destruiu e o que a destruiu foi o mal. E eu sempre tive essa fantasia de que ia chegar lá e que me iria sentir melhor comigo mesmo se fisicamente eu fosse encontrar os traços e a razão daquele mal. Ele tinha que lá estar, ele tinha que lá estar, eu tinha a certeza. Mas, mesmo assim, tive a sorte de realmente não ser mal recebida, no sentido em que a questão não é ser mal recebida pelo ataque dos ninjas de que eu estava a falar, é só uma metáfora, porque, na realidade, hoje em dia, toda a minha relação com Moçambique, tem a ver com toda essa possibilidade de trazer os fantasmas e de os colocar lá, porque eles são meus, não estavam lá, eu levei-os para lá, levei-os e segui-os e eles puderam andar"
 
Em KARINGANA, Inadelso Cossa explora a pós-memória e a história oral – Karingana, a arte de contar estórias ou a História Oral de um povo. A personagem principal, de volta à sua aldeia natal, procura saber o que aconteceu, mas encontra o único habitante mudo, entorpecido pelo trauma da guerra, restando-lhe apenas o cinema para lhe dar respostas. 
 
As sessões do Lucky Star ocorrem no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, durante este ciclo às terças e quintas às 21h30. A entrada custa um euro para estudantes, dois euros para utentes da biblioteca e três euros para o público em geral. Os sócios do cineclube têm entrada livre.

Até Terça-Feira!

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Nome (2023) de Sana Na N'Hada



por Jessica Sérgio Ferreiro

Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu. 

Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80. 

Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas. Voltaram em 1972 para registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis. 

Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo. 

Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci

Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”. 

Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”. 

O primeiro aviso é feito quando observa Nome a escapulir-se de noite, com intuito de se juntar aos movimentos de libertação para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou, sussurrando-lhe: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constituiu por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?” 

Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade. A aldeia, suas tradições e as árvores de grandes raízes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos”, que acreditaram na luta pelo bem-comum e se sacrificaram na guerra, à errância e à desonra, ao esquecimento. 

Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?

[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.