por João Palhares
“Eu e os meus produtores concordámos que Les maîtres fous só devia ser mostrado em cinemas de arte e ensaio e em cineclubes,” disse Jean Rouch a Ousmane Sembène numa conversa de 1965 que se tornou histórica e importante por várias razões e foi publicada
apenas dezassete anos mais tarde no no 34 da revista CinémAction[1]. “Eu não acho que filmes como esse devam ser mostrados a públicos grandes e desinformados sem qualquer tipo de introdução ou de explicação. Mas também acho que as pessoas em Les maîtres fous, com a sua cerimónia muito especial, nos oferecem um contributo primordial para a cultura global.”
Segundo filho de Jules e Luce, Jean Rouch passou a infância e a adolescência entre o porto de Rochefort e Marrocos, de acordo com as incumbências do pai ao serviço da marinha francesa. Trabalha como estagiário na construção da ponte de Saint-Cloud, sobre o Sena, depois de um primeiro ano na École des Ponts et Chaussées. Em 1940, é mobilizado para a frente de guerra no leste de Paris, sendo desmobilizado no mesmo ano para acabar os estudos. De férias, no ano seguinte, toma a decisão de deixar a França com dois amigos, Pierre Ponty e Jean Sauvy. Engenheiro civil diplomado, tem as primeiras aulas de etnografia no Museu do Homem com Marcel Griaule e Michel Leiris. Parte para África ao serviço das Obras Públicas das Colónias, construindo estradas em Niamei, onde conhece o pescador sorko Damouré Zika, que o apresenta aos rituais do povo songai através da avó, Kalia, e se tornará seu colaborador em inúmeros filmes futuros. Realiza então as suas primeiras curtas-metragens, Au pays des mages noirs (1947), sobre um ritual de caça praticado por uma tribo sorko, Les magiciens de Wanzerbé (1948), centrado nas cerimónias colectivas praticadas por feiticeiros que protegem as aldeias no Níger, Initiation à la danse des possédés (1949), ambientado em Firgoun e descrevendo danças de possessão como meio de entrar em contacto com os deuses, Circoncision (1949), em que documenta a cerimónia iniciática da circuncisão entre os songai, Cimetières dans la falaise (1950), sobre os rituais fúnebres dos dogons em Mali, Bataille sur le grand fleuve (1951), descrição fabulosa, violenta, triste e doce da caça ao hipopótamo no rio Níger ao longo de seis meses e Yenendi – les hommes qui font la pluie (1951), documento da cerimónia anual em que os songai pedem água para as colheitas aos deuses do céu.
Os irmãos Lumière mostraram os seus filmes no Egipto, na Líbia e na Tunísia menos de um ano depois da sessão inaugural do Salon indien du Grand Café, em 1895, enviando também Alexandre Promio para filmar Sousse. Marché aux charbons (avec chameaux) (1896), Rue Bab-Azoun (1896), Place du Gouvernement (1896), Descente de la grande pyramide (1897) ou Egypte, panorama des rives du Nil (1897), entre muitos outros panoramas e vistas de África. Segundo Jean Rouch[2], que dividiu o cinema africano em cinco tendências mais ou menos cronológicas (“A África Exótica”, “A África Etnográfica”, “A África em mudança”, “O verdadeiro cinema africano em embrião” e “O cinema africano por e para africanos”), houve um ilusionista que roubou um animatógrafo do teatro Alhambra, em Londres, e o usou para introduzir o cinema na África do Sul ainda no século XIX. Tanto o Egipto como a Tunísia veriam nascer grandes indústrias de cinema durante o século XX, mas nas colónias francesas os africanos eram proibidos de filmar pelo Decreto Laval de 1934, revogado apenas em 1960 quando as colónias se tornaram independentes.
“Esta invenção maravilhosa que suscitou tamanho deslumbramento também me deixou ciente de inúmeras coisas,” escreveu um escritor egípcio anónimo sobre uma dessas sessões dos Lumière[3], “sendo a mais importante a de que apreendi o segredo do progresso dos estrangeiros. Descobri que nós não seríamos menos do que eles se tivéssemos os mesmos materiais, e se, como eles, relacionássemos o trabalho com a ciência e ligássemos o material ao imaterial.” E abaixo da linha do Saara? Até ao surgimento do cinema africano por africanos, na chamada África tropical, e cujas figuras de proa poderão ser Ousmane Sembène, do Senegal, e Souleymane Cissé, do Mali, o cinema africano era feito por europeus, melhor ou pior intencionados, com maior ou menor sucesso, e que quando tudo se conjugava conseguiam lançar um olhar desimpedido sobre o que se passava, sem ditames ou convenções coloniais. Segundo Jean Rouch, seria este o caso de O Cruzeiro Negro (1926) de Léon Poirier, um relato da expedição automóvel entre o norte e o sul do continente africano organizada por André Citroën em 1924-25, e Voyage au Congo (1928) de Marc Allégret, média-metragem documental resultante de uma viagem que o realizador francês fez em 1926 com André Gide, que escreveu também dois diários sobre o acontecido, Voyage au Congo e Retour du Tchad, publicados pelas Éditions Gallimard em 1927 e 1928, respectivamente.
Em 1937, foi inaugurado o Museu do Homem. Descendendo directamente do Museu de Etnografia do Trocadéro, fundado em 1828, é uma instituição dedicada à reunião de tudo o que define o ser humano em termos de evolução, unidade, diversidade e expressão cultural e social. Com a acessibilidade crescente de câmaras portáteis de 16mm (muito utilizadas pelos serviços de terreno do exército durante a 2ª Guerra Mundial, por exemplo), iniciou-se um movimento composto por jovens saídos das forças armadas da Resistência que se reuniu em torno do Museu e começou a registar músicas, rituais e cerimónias um pouco por todo o mundo. O século XX, justa ou injustamente, acelerou a evolução de todas as sociedades e de todas as coisas, tornando-se imperioso salvar manifestações culturais em vias de extinção, e o cinema era o meio privilegiado para o fazer. Daí a importância do trabalho que Marcel Griaule, Jean d'Esme, G. H. Blanchon, Luc de Heusch, Henry Brandt e o próprio Jean Rouch levaram a cabo no continente africano. No fundo, descobriram que todos temos a responsabilidade e sobretudo a oportunidade de fazer com que certas coisas não se esqueçam, e que o trabalho pode começar mesmo em casa, ao virar de uma esquina. Sobretudo neste novo século, mais propenso ainda ao esquecimento.
O movimento Haouka é um movimento religioso que começou no Níger como forma de resistência ao regime colonial francês. Compõe-se de cerimónias em que os participantes mimetizavam os ocupantes do seu país, praticando coreografias militares e entrando num transe que permitia que os espíritos dos colonos se apoderassem por sua vez dos seus corpos. Segundo alguns antropólogos, as cerimónias serviriam para ridicularizar os colonos e para lhes roubar os poderes. Segundo outros, para os haouka conquistarem direitos e estatuto no interior da sociedade colonial e industrializada, para ganhar o respeito dos europeus. Entre as personagens da cerimónia, contam-se os espíritos de Capral Gardy, cabo da guarda, Samkaki, condutor das locomotivas, o capitão Malia, capitão do Mar Vermelho, a Sra. Lokotoro, mulher do médico, o tenente Malia, tenente do Mar Vermelho, o governador, a Sra. Salma, mulher do tenente Salman, um dos primeiros oficiais franceses a chegar ao Níger em finais do século XIX, o general, o soldado Tyemoko, o Secretário Geral, Maymota, o caminhoneiro e o comandante Mougou, o comandante mau.
Les maîtres fous, filme de Jean Rouch sobre esta cerimónia, ganhou o primeiro prémio de filmes etnográficos, geográficos, turísticos e folclóricos do Festival Internacional de Veneza de 1957. Mas também foi banido pelo governo britânico, que além disso já tinha prendido haouka nos anos trinta por terem imitadohomens brancos. Elogiado por Jules Dassin, que disse que era “um filme apaixonante” e pelo antropólogo e realizador belga Luc de Heusch, a curta teve uma recepção desastrosa numa primeira apresentação no Museu do Homem, onde várias personalidades do mundo do cinema e da etnografia a consideraram racista (entre as quais o antigo professor e colaborador de Rouch, Marcel Griaule, e o cineasta senegalês Paulin Soumanou Vieyra). Nesta altura, Rouch improvisava uma narração sobre uma projecção muda, e aquilo que era dito não estava ainda devidamente transcrito nem traduzido. Contactado e apoiado pelo produtor Pierre Braunberger, o cineasta francês conseguiu que um dos participantes do filme, Moukalya, “o homem tranquilo”, lhe explicasse o que é que os haouka diziam. Mas as reacções extremadas ao filme continuariam ao longo das décadas. “As pessoas tinham-se enraivecido por razões opostas,” disse Jean Rouch em 1996, “os brancos não podiam admitir que a sua imagem fosse interpretada por africanos que os mostravam de forma
deprimente e aterradora ao mesmo tempo, e os negros não suportavam, por seu lado, o final do filme em que as pessoas estavam cobertas de sangue. Para uns, era um filme sobre os selvagens, e para outros um filme insultuoso!”
Talvez não seja surpreendente que um filme que tenha como objecto uma dupla possessão dos brancos pelos negros e dos negros pelos brancos, que seja fruto do olhar de um francês sobre África e que veja essas mesmas dicotomias e esses mesmos diálogos ilustrados e sintetizados num corte na estrada em que uma carrinha preta se transforma numa carrinha branca, além de conter nele actos bastante violentos que podem ferir bastantes susceptibilidades – como qualquer grande filme, apetece dizer –, permaneça controverso. Mas é o retrato sincero de uma encenação muito complexa e revoltada, que abriu a Jean Rouch um mundo novo no domínio da montagem (processo que, para este filme, durou três meses e contou com Suzanne Baron, montadora de Jacques Tati) e marcou um ponto de viragem na sua carreira, momento a partir do qual começou a pôr em causa as suas próprias narrações e o lugar dos homens e mulheres que escolheu como modelos, oferecendo-lhes desde então o cinema como meio de luta e de afirmação.
[1] Revista de cinema fundada por Guy Hennebelle e Monique Martineau em 1978.
[2] in «The Awakening African Cinema», The Unesco Courier, Março de 1962.