quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Rosa de Areia (1989) de Margarida Cordeiro e António Reis



por João Palhares

Antes de conhecer Margarida Cordeiro, António Reis foi membro muito activo do Cineclube do Porto, publicando também ao longo desse tempo nove livros de poemas: Chamas, Luz, Roda de Fogo, Ronda do Suão, Poemas do Cais, Poemas do Escritório, Ode à Amizade, Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos. Publicados durante os anos quarenta e cinquenta entre a Portugália, a Tipografia do Carvalhido e o próprio autor, estão há décadas esgotados, tendo os primeiros sete sido inclusivamente deserdados por Reis, que os apagou da sua bibliografia, e apenas Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos foram recentemente reunidos num único volume pela Tinta da China, também já esgotado. 

No Cineclube do Porto, Reis investigou teoria do cinema com amigos e colegas e juntos fundaram a Secção de Cinema Experimental, acabando por produzir uma importante média-metragem, Auto da Floripes, transposição cinematográfica desse auto encenado, representado, aprendido e vivido por muitos séculos pelas gentes do lugar das Neves, perto de Viana do Castelo, entroncamento partilhado das freguesias de Barroselas, Mujães e Vila de Punhe. O trabalho do colectivo, que incorporava também um pequeno prelúdio documental que acompanhava alguns dos intérpretes do Auto da Floripes nos seus afazeres de todos os dias, impressionou Manoel de Oliveira, que chamou António Reis para o assistir na realização do Acto da Primavera, rodado na aldeia da Curalha, em Trás-os-Montes, nos anos sessenta e tido por muitos como a grande linha de demarcação ou a grande fissura que todo o novo cinema português teria de atravessar sob pena de morte. Uns anos depois, Reis assina os diálogos de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, já marcados por uma atenção fora do comum aos ritmos e às entoações, caros a Reis por ser de perto da zona e conhecer a sua fala, co-realizando ainda com César Guerra Leal Painéis do Porto e Do Céu ao Rio, duas curtas-metragens encomendadas respectivamente pela Câmara Municipal do Porto e a Hidro-Eléctrica do Cávado. 

Transmontana, Margarida Cordeiro estudou Medicina e especializou-se em Psiquiatria em Lisboa, começando a trabalhar no hospital Miguel Bombarda em Lisboa poucos meses depois de Jaime Fernandes, paciente no hospital, ter falecido. Conhecera António Reis no Porto uns anos antes e este encontro inaugurou aquela que é sem dúvida uma das obras mais especiais e fabulosas do cinema português. Um dia, Cordeiro reparou num desenho que a princípio confundiu com uma reprodução, de tão bom que era. Fazendo algumas perguntas, descobriu que era original e fora desenhado por um antigo paciente, Jaime Fernandes, nascido no Barco, na Covilhã, e internado aos 38 anos, que começara a pintar febrilmente apenas aos 65 anos e daí até à morte, quatro anos depois. O casal reuniu vários dos seus desenhos e fez-se ao trabalho, inspirado também pelo talento do pintor, falando com a família e utilizando uma truca, máquina de efeitos de trucagem que lhes permitia aproximar-se perpendicularmente dos desenhos que esticavam entre duas transparências. 

Jaime, num primeiro contacto, não pode deixar de impressionar pela sua inventividade na ligação entre sons e imagens. O trecho em que aparece “St. James Enfermary” de Louis Armstrong não nos abandonará nunca a retina pelo jogo incessante que é praticado entre o ritmo da música e o ritmo dos planos. Um jogo perigoso que Reis e Cordeiro souberam solucionar prodigiosamente. Trás-os-Montes é fruto de um labor delicado, o princípio de uma belíssima aventura pelo Trás-os-Montes de Margarida Cordeiro que já se dá sob o signo da despedida, ficando a ressoar o comboio final e os seus apitos e os seus vapores que irrompem pelos últimos planos e o longo adeus da menina que é longo porque assim aconteceu à mãe de Cordeiro, Ana Maria Martins Guerra, que ficou meia hora a acenar e a acenar talvez por não se conseguir convencer em criança de que o pai se ia embora para muito longe. É ela a intérprete principal do filme seguinte, Ana, poema à terra que gradua as suas tonalidades como as estações do ano equiparando-as às estações da vida, facto sublinhado pela sequência maravilhosa da caminhada da avó pelas florestas e em que a sua sombra chega à altura das das árvores que a amparam. O ser humano como igual dos verdes campos, de uma floresta ou de uma montanha, as colinas ao longe sempre trabalhadas em pano de fundo pictórico com os primeiros planos dos corpos e dos rostos dos homens. Chave possível para um poema de Wallace Stevens que sempre achámos enigmático, “There are men of the East, he said, / Who are the East. / There are men of a province / Who are that province. / There are men of a valley / Who are that valley.” 

Nos final dos anos setenta, António Reis começou a dar aulas no Conservatório Nacional, hoje Escola Superior de Teatro e Cinema. As suas aulas funcionavam a partir de vinte e dois filmes fundamentais da história do cinema: Intolerância de David Wark Griffith, Fausto de Friedrich Wilhelm Murnau, A Paixão de Joana d’Arc de Carl Theodor Dreyer, O Vento de Victor Sjöström, A Linha Geral de Sergei M. Eisenstein & Grigori Aleksandrov, Alexandre Nevski de Eisenstein, O Mundo a Seus Pés de Orson Welles, O Quarto Mandamento de Welles, Dia de Cólera de Dreyer, Alemanha, Ano Zero de Roberto Rossellini, Stromboli de Rossellini, O Rio Sagrado de Jean Renoir, Viagem em Itália de Rossellini, Johnny Guitar de Nicholas Ray, Fugiu um Condenado à Morte de Robert Bresson, A Desaparecida de John Ford, O Carteirista de Bresson, O Acossado de Jean-Luc Godard, O Gosto do Saké de Yasujiro Ozu, O Deserto Vermelho de Michelangelo Antonioni, Marnie de Alfred Hitchcock e Pedro, o Louco de Godard. 

Pode por vezes ser má ideia invocar demasiado cinema para falar do próprio cinema. Pode-se entrar num jogo que se ache proveitoso e motivador no próprio instante mas que no final perde de vista os resultados reais e concretos daquilo que se quer descrever. Só que talvez pouco se escreva das relações dos filmes de Margarida Cordeiro e António Reis com o próprio cinema e os filmes que amam. Os vermelhos de Ana podem ter algo que ver com os vermelhos de Marnie, outro filme com o nome da sua heroína e que equilibra as tonalidades em função das tribulações da sua personagem. O homem e as estações, como credo, e os homens e a paisagem, como paleta, não estarão certamente muito longe das semelhantes posturas de Ozu, Renoir ou Ford para com o seu trabalho. E é aí que os filmes de Reis e Cordeiro estão ou deviam estar, no grande firmamento das obras que formam o nosso inconsciente e os nossos sonhos, a constelação a que se convencionou chamar um dia de história do cinema. 

A procissão com a bandeira de Rosa de Areia vem directamente das batalhas de Alexandre Nevsky, enquadrando o céu por inteiro. Em Marnie, quando a personagem de Sean Connery se tem de dedicar a leituras durante o cruzeiro de lua de mel, acaba por falar à esposa de algo que parece uma flor, no Quénia, mas se transforma numa nuvem de insectos quando nos aproximamos e lhe tentamos tocar. Uma rosa de areia será algo semelhante? Aquilo que é belo esconde sempre um crime fundacional? Quando pensamos que estamos próximos de uma revelação ou de algo que se possa equiparar à felicidade, a realidade há-de fazer sempre das suas e reduzir os nossos sonhos a poeira? Quem são as crianças que sempre ligam ou comentam os episódios de fome, de sede e de sofrimento dos nossos antepassados como se de um coro grego se tratasse? É possível chamar almas errantes, dizer-lhes para voltar “dos montes, / Da floresta, / Dos caminhos / Ou das fontes, / Das sombras / Ou das névoas, / Dos lodos / Ou do fundo do mar.”? Dar-lhes algum descanso e a nós na última das travessias? Quem decidiu que um porco pode ser acusado de homicídio e que o seu dono deve pagar as cento e setenta e cinco libras e oito soldos de despesa da execução? Como se procura um lugar puro declinado na areia, quando as constelações alteram o vocábulo? Em dezenas de milhares de anos, ou desde “o crepúsculo inicial da história”, ainda não se encontrou melhor forma de lidar com quem sofre e é obrigado a ajoelhar-se e a rastejar para viver que não seja pegar num cassetete e castigar-lhes os corpos até eles também se transformarem em rosas de areia? Será possível fazer um filme cujo fio condutor seja apenas o plano, que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano até se transformar nesse sonho impossível, desmedido e utópico de um cinema sem montagem aparente?




Post scriptum digital: como é bom acontecer em sessões com convidados envolvidos na produção dos próprios filmes, soube-se que não é consensual o envolvimento de António Reis na produção e na rodagem do Auto da Floripes, bem como o convite de Manoel de Oliveira a Reis dever-se ao facto de ter visto essa média-metragem, pois as produções foram praticamente concorrentes. Os filmes nas aulas de António Reis também variavam ao longo dos anos, dependendo às vezes da disponibilidade dos próprios arquivos do Conservatório Nacional. A história do cinema português continua a ser feita. Os nossos agradecimentos ao Manuel Mozos e ao Carlos Gonçalo pela sua disponibilidade e pelos seus testemunhos.

sábado, 24 de agosto de 2024

358ª sessão: dia 26 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Última obra de Cordeiro e Reis para ver no Theatro Circo 

No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva termina segunda-feira à noite, às 21h30, com a exibição de Rosa de Areia, a terceira e última longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, o filme conta ainda com as presenças de Artur Semedo, Francisco Nascimento, Pedro Tamen e o cineasta Fernando Lopes. 
 
Usando textos do Atharvaveda, de Carl Sagan, Kafka, Montaigne, Rilke e Saint-John Perse, bem como um conto zen, um texto jurídico medieval e escritos da própria Margarida Cordeiro, Rosa de Areia tem um grande elenco de actores não-profissionais dos concelhos de Vimioso e de Mogadouro na pele de personagens em cujas palavras e gestos se expõe a condição humana. 
 
A sessão será apresentada por Manuel Mozos, realizador de filmes como Xavier, Ruínas ou Atrás Dessas Paredes depois de se especializar em Montagem na Escola Superior de Teatro e Cinema nos anos oitenta. Foi aluno de António Reis nessa escola e assistente de montagem em Rosa de Areia
 
“O cinema que fazemos num país como o nosso e neste tempo,” disseram Cordeiro e Reis em entrevista sobre este filme durante o festival Xociviga, na Galiza, “procura exprimir um modo de ver e de sentir a vida. Há quem diga que os nossos filmes não têm acção mas repara, uma pessoa a olhar para uma paisagem é acção, a acção que nos interessa, a interior, porque da actividade das ideias e da comoção dos sentimentos é que nasce a verdadeira evolução.” 
 
Terminavam dizendo que “é a legibilidade da contemplação das formas naturais e a sua componente emocional que procuramos exprimir nos nossos filmes.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda!

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Ana (1982) de António Reis e Margarida Martins Cordeiro



por Cristina Fernandes

A natureza como imemorial casa 

Naqueles dias a neve e o vento eram mais puros, as estrelas mais próximas de nós. 
Sob o teu olhar de mãe, a natureza continuamente se ia recolhendo ao invisível. 

Ana (1982), António Reis e Margarida Cordeiro 

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro inserem-se numa comunidade com algumas influências reconhecíveis e muitos herdeiros apaixonados; o que eles fazem é cinema. Podemos começar por defender esta verdade necessária. Mas, em rigor, não sabemos bem, ou sabemos cada vez menos, o que se agrega sob a palavra «cinema», por isso a proposição não faz justiça a uma obra cujos pontos de fuga nos levam para muito longe. Quer dizer, eles usam a linguagem primitiva do cinema mas depois estabelecem um diálogo intenso com muitas outras coisas: pintura, música, literatura, e ainda mais o conhecimento da terra e das pedras, dos animais e dos frutos, das estações, das construções das casas ou dos barcos, da vida e da morte — ou seja, nos seus filmes todos os elementos fundamentais da cultura vibram e isso dá-lhes um carácter de objectos raros e preciosos. Como se o cinema fosse um olhar cosmológico. Como se eles fossem feiticeiros[1]. 

Numa entrevista ao Jornal de Letras[2], António Reis disse: «... num filme como o nosso, em que não há psicologia nem simbolismo, tudo está em tudo, a nossa defesa é muito menor, a nossa exigência muito maior e o espectador... Margarida Cordeiro: O espectador tem que contribuir mais...» 

É verdade, a relação tem de ser mútua. Então, antes ainda de começar a falar de Ana, é importante lançar algumas ideias sobre o trabalho exigente desta dupla de cineastas, parar para compreender a sua coesão material e o seu alcance de voo. Trata-se de uma força inédita que não só garante uma enorme profundidade de conhecimento, mas também um tempo prolongado de leitura. Roubando alguns versos de Reis, arrisco dizer que os seus filmes correm como rios, duram com pedras, lançam raízes[3]. E o seu encantamento há-de perdurar pelos séculos, basta dar um passo de aceitação. 

Antes de mais, são filmes exigentes que nos obrigam a entrar na sala com um olhar disponível. Em certa medida parece que estamos a entrar num mosteiro sem tecto, porque cada uma das suas obras põe em prática uma ligação estreita entre o sagrado e o profano, vai ao mais escondido e violento que há na vida. E mesmo para falar e escrever sobre eles, é preciso escolher as palavras mais simples e não seguir nunca uma busca de narrativas ou um interrogatório banal de significações — é outra coisa mais volátil que temos de encontrar. Todas as nossas reflexões serão sempre uma aprendizagem do desconhecido; a gratificação há-de crescer por dentro, na sombra, e muitas vezes muda. 

Não posso falar de Ana, sem fazer a ligação a Trás-os-Montes porque ambos captam o movimento histórico e cultural de um povo e de um território, mas também, ao aproximarem-se do grão mais pequeno, encontram a universalidade do tempo e do espaço. Assim como Kafka ou um poema chinês convivem lado a lado com a história da Branca-Flor, também Rilke nos guia até Miranda do Douro e Bragança para compreender o que é dar vida e enfrentar a morte. Encontrássemos nós também uma pura, contida, estreita parcela de humano, uma faixa nossa de terra fértil Entre rio e rocha![4] É como se os segredos do universo se concentrassem nestas terras agrestes e, por uma estranha alquimia, ficassem gravados numa película que testemunha o mistério que nos envolve desde sempre. 

António Reis dizia que «se olhas para alguma coisa e ela te retribui é porque está lá uma parte de ti». E é isso que acontece nos seus filmes. Há uma parte de nós nesses gestos primordiais que eles registam com um rigor absoluto, nos rituais que nos ligam ao sol e à lua, aos rios e ao vento. Não é preciso sermos daquela terra, porque não se trata só do nordeste de Portugal, não se trata só da presença do homem num lugar duro e esquecido. São as raízes da nossa vida. Uma presença real tremendamente rude e meiga em diálogo com todos os elementos que a rodeiam. 

E então, Ana? Ana é um filme de mistérios: o mistério da vida e o mistério da morte — simultaneamente graves e radiosos. Não há propriamente uma história[5], não se trata de uma série de acções encadeadas de forma lógica, mas sequências de planos inesperados e poderosos que atingem os nossos sentidos e o nosso subconsciente[6]: a rapariga vestida de branco com a raposinha (kitsune?) nos braços; os homens a comer morangos à porta da igreja românica de Algosinho; a cor vermelha que passa pelo filme criando um novo tipo de raccords; a gravidade do azul no rosto de Ana; o tapete estendido ao vento, os números do Circo Cardinali numa gruta que parece saída das Mil e Uma Noites; a menina que leva uma garrafa (não se sabe de onde vem nem para onde vai) e pára um pouco junto ao homem morto deitado num caixão. Estes fragmentos afectam o nosso sistema nervoso como uma vertigem — para as compreendermos temos de desligar o nosso lado mais inquisitivo, temos de ver sem medo. Como explica Robert Bresson: [trata-se de um] «filme de cinematógrafo, onde a expressão se obtém por relações de imagens e sons (...). Que não analisa nem explica. Que recompõe.» 

Inicialmente o filme chamava-se Dezembro (as filmagens começaram no inverno e prolongaram-se pela primavera e verão), depois Ana e Alexandre e por fim apenas Ana, e já nessa mudança podemos compreender o modo como os dois trabalham, depurando ao máximo todos os elementos. Assim, ficamos com o nome da avó e da neta, uma palavra simétrica que não tem fim. E o primeiro plano é uma panorâmica vertical do céu para a terra — o princípio da aventura humana. Seguem-se segmentos, blocos extraordinários, porque são ao mesmo tempo austeros e sumptuosos, cheios de ressonâncias. Não te negues aos prodígios. Ordena à lua, ao sol. Desencadeia os raios e os trovões[7]. 

A representação do ritual da amamentação com a ama sentada num trono (Godard filmara assim O recém-nascido, de George de La Tour, um ano antes — um filme desconhecido, quase perdido) é perfeita: ela coberta por um manto, com uma almofada vermelha aos pés e o menino envolto numa manta azul. A narração do eclipse: a luz do fim da tarde faz a terra dourada, ouve-se o vento, a câmara inicia uma panorâmica lenta de reconhecimento para a direita até encontrar a avó e a neta sentadas no campo, e aí fica um pouco enquanto a avó conta o desassossego daquela noite súbita, o aperto no coração. Fazia frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo... Depois a câmara regressa ao ponto inicial, num nesses movimentos lassos que fazemos quando queremos abarcar uma paisagem por inteiro. Ou a aprendizagem de Alexandre tão natural e tão vasta: o prisma decompõe as cores, mercúrio é um metal líquido que não se mistura mas também o deus mensageiro dos romanos; e essa aula magnífica e longa em que Octávio lhe explica o que é a Mesopotâmia — uma terra entre rios, fértil, propícia à vida — e fala das jangadas de odres para atravessar a água. Nessa altura nós percebemos a profundidade da palavra passagem. E os pássaros dos sonhos de Alexandre são um auspício. Assim como a cena de Ana na barca com a cabra ou as rachadelas nas paredes (que nunca mais se esquecem) ou o sangue nas suas mãos — tudo é prenúncio de morte. Já perto do fim, Ana está deitada na cama e diz à neta: O menino? Não te esqueças de dar de comer à Miranda. Deita-lhe feno e uma mão cheia de centeio. São as suas última palavras. 

Todos estes momentos são quadros universais e eternos; o que está a acontecer perante os nossos olhos é um impulso vital, um verbo omnipresente. Paradoxalmente, Ana tem também esse carácter das grandes obras abstractas que, sem seguir uma trama convencional, nos oferecem conceitos que definem o que é o nascimento, a mudança das estações, o crescimento dos frutos e das crianças, a morte. E não há uma classificação vertical, tudo é uma dádiva, tudo emana do mesmo gesto avassalador e horizontal de alegria. 

A alegria nos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro é um movimento inteiro e arrebatador. Ana sabe que a morte faz parte de um ciclo natural, assemelha-se a uma travessia num barco frágil ou às folhas que amarelecem e caem das árvores — uma passagem. A renovação da terra é uma das coisas mais belas que existe (o belo não é senão o começo do terrível[8]) e deve ser festejada. Por isso a última imagem do filme é um lago, circular como o nome Ana. Tudo refloresce.

[1] Certeiro, Jacques Rivette classificou o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro como «pré-socrático». 
[2] Feita por Pedro Borges em Maio de 1985. 
[3] Poemas Quotidianos, de António Reis. Edições Tinta-da-China, Julho de 2017.
[4] Dos últimos versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Quintela. Inova, 1969. 
[5] Mas reparem na beleza e simplicidade da sinopse: Naqueles dias... A lenda do leite na casa sombria. Tempo interior. Quase silêncio. Luz. A natureza como imemorial casa exterior. Inverno. O sangue recolhido nas duas mãos, mãe Ana. (Três gerações: uma avó, um filho cientista que vive na cidade e passa férias na aldeia, duas crianças – neto e neta. Harmonia só quebrada com a morte de Ana...)
[6] Numa entrevista ao programa Ecran (RTP), António Reis diz: Há o menino e a avó porque também há... O nosso rigor também vai a uma fraga e a uma erva. Se quiseres, a uma sombra e a uma luz. Não damos privilégio ao menino e à avó. Uma árvore tem o mesmo privilégio. Uma seara tem o mesmo privilégio
[7] Notas sobre o Cinematógrafo, de Robert Bresson. Tradução de Pedro Mexia. Porto Editora, 2000. 
[8] Dos primeiros versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Op. Cit. Rilke é um poeta essencial na relação entre Reis e Cordeiro e As Elegias de Duíno talvez sejam o livro mais esclarecedor sobre Ana.



sábado, 17 de agosto de 2024

357ª sessão: dia 19 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Segunda longa de Reis e Cordeiro para ver no Theatro Circo 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga exibe as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva continua segunda à noite, às 21h30, com a exibição de Ana, a segunda longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, tal como Trás-os-Montes, o filme é protagonizado por Ana Maria Martins Guerra, mãe de Margarida Cordeiro, que interpreta uma versão ficcionada de si própria. 
 
A longa é sobre três gerações de uma família transmontana. Uma avó, Ana, um filho antropólogo que vive na cidade e passa férias na aldeia, e duas crianças, neto e neta, ela também Ana. Filmado com a família de Margarida Cordeiro e António Reis, a obra é dominada pela figura da mãe e avó que lhe dá o nome, e começa num dia “em que a neve e o vento eram mais puros.” 
 
A sessão será apresentada por Cristina Fernandes, escritora e tradutora natural do Porto que publicou recentemente C de C, um livro que reúne vários dos seus textos sobre cinema e não só. Mantém o blog bicho ruim com Rui Manuel Amaral. 
 
No Diário de Notícias de 30 de Junho de 1983, o cineasta francês Joris Ivens escreveu sobre este filme de António Reis e Margarida Cordeiro, dizendo que “há proliferação de símbolos em Ana, símbolos que são também signos, um código: a história, a mitologia com o discurso sabedor do professor. Flash-backs de 5000 anos!” 
 
“E Reis e Cordeiro,” prosseguia, “têm a coragem de recuar no tempo e no espaço, dizendo-nos: são as mesmas, são as mesmas gentes; os mesmos movimentos da humanidade que, finalmente, têm lugar nesta casa, é o próprio ciclo da vida: as montanhas, a água, o rio, e a relação do homem com a natureza, com o animal.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda-Feira!

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Trás-os-Montes (1976) de António Reis e Margarida Martins Cordeiro



por Jessica Sérgio Ferreiro

Filme estreado em 1976, Trás-os-Montes leva-nos a percorrer o planalto Mirandês e os quotidianos dos seus habitantes, cujo registo nos dá testemunho de um mundo em vias de extinção. Apesar da recepção fria que este filme recebeu em Portugal, este foi bastante apreciado internacionalmente, inclusive por vultos do cinema do real. Trás-os-Montes é, indubitavelmente, a prova de um cinema pela arte, ou seja, de uma arte de comunicar e de criar sentido, envolvendo e convocando a comunidade local (atores não profissionais). Apesar dos meios de realização modestos (no interior transmontano, afastado dos centros urbanos e culturais, poucos recursos técnicos e financeiros disponíveis), Margarida Cordeiro e António Reis conseguem criar uma obra que nos transporta para o domínio da imaginação, onde o arcaico e o prosaico se cruzam com o sublime e o pitoresco. Trás-os-Montes poderia ser categorizado, de forma redutora, como uma docuficção ou uma etnoficção, pela qual retratos de vidas reais nos são apresentados de forma ficcionada. Porém, a estética poética e o lirismo que caracterizam este filme, afasta-o dos documentários e docudramas etnográficos da altura, para se firmar como um cinema de vanguarda, não-convencional, cuja originalidade ainda hoje se faz sentir. 

Realizado numa época conturbada, marcada pelo fim da ditadura, não nos remete directamente para um antes ou depois de um momento tão crucial e marcante da história portuguesa. Pelo contrário, a Terra Fria, região localizada no nordeste transmontano, surge como uma realidade paralela, um domínio à parte e não subalterno – um mundo que não se deixa incomodar pela fugacidade dos tumultos da civilização moderna. A imensidão da paisagem transmontana é a protagonista, as planícies e montanhas são habitadas por povoados exíguos que não perturbam a sua imponência magistral. As típicas casas de pedra e os hábitos que as ocupam ornamentam-na, a par com os sons naturais e as ladainhas entoadas. Por vezes, o filme parece carregar tons nostálgicos e melancólicos (ou talvez este sentimento seja mero efeito provocado no espectador contemporâneo, afastado desta realidade). Os planos longos surgem como pinturas vivas de lugares virginais, cuja candura e simplicidade é transposta para os modos de vida. As crianças têm uma presença forte no filme, reforçando uma ideia de inocência jovial ou de uma liberdade pura, possível entre campos, rios e searas. 

A cultura popular é-nos mostrada como lugar de memória e de conhecimento arquissecular, como um ente vivo que atravessa gerações para se pousar em cada corpo que a receba. É composta por práticas, cultos, rituais e labores que compõem os gestos diários que reproduzem e perpetuam uma memória incorporada capaz de resistir à erosão da matéria. Encontra-se presente na tecelagem da lã, na música e danças tradicionais que ocupam os tempos de ócio rural, nas brincadeiras de criança, nas lengalengas e ditados populares, bem como nas típicas lendas transmontanas de princesas mouras encantadas. Por vezes, também se ouve a língua Mirandesa, prova da capacidade de permanência da História oral. A narração e a representação ficcionada ou performativa destas práticas e tradições orais colocam em cena uma identidade transmontana performatizada. A par com estes elementos “invisíveis”, afigura-se a cultura material, tal como o pião de brincar, o velho gira-discos de caixa, os antigos teares, ou, ainda, os potes de ferro, com os quais se cozinha lentamente nas lareiras antigas das casas. O filme também articula arquétipos que nos remetem para um arcaísmo rural, figurado na mulher vestida de negro, no homem de capote transmontano (Capa de Honra Mirandesa), ou ainda no jovem pastor com o seu rebanho. Assim, o tempo ganha outra velocidade, outra dimensão história e sensorial, facilitada tanto pela estrutura e forma (tipos de planos, tempo de imagem, etc.) do filme como pelo conteúdo. 

Não obstante, estas visões aparentemente exaltadas ou romantizadas do mundo rural são subtilmente contrapostas com planos que nos contam que a morte coexiste, quando nos são relatados as longas jornas e os perigos do trabalho nas minas, onde, também, as crianças trajadas de adultos dedicam o seu tempo e esforço. Os problemas e dificuldades que afectam as gentes daquela região, bem como o subsequente êxodo crescente que levará à desertificação do interior, são compreensíveis quando se ouve a leitura de uma carta endereçada a um familiar emigrado ou, ainda, no depoimento audível, na segunda parte do filme. Subtilmente, é-nos contado que afinal este “mundo paralelo” faz parte de outro e é igualmente afectado pelas suas convulsões, remetendo-nos, por exemplo, para o conjunto de “Mundos perdidos” que Vittorio De Seta captou ou, ainda, para o filme O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra. 

Assim, Trás-os-Montes revela-se como um conjunto de contos bucólicos antitéticos ao hipermodernismo industrial, apresentados de forma fragmentada, numa cronologia não-linear, veiculada através de uma poética da imagem que nos faz imaginar para além do imaginário colectivo, ou seja, do cliché, relembrando-nos, contudo, que no idílio coabita a aspereza da realidade.



sábado, 10 de agosto de 2024

356ª sessão: dia 12 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Primeira longa de António Reis e Margarida Cordeiro em Braga 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias foram cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva continua segunda-feira à noite, às 21h30, com a exibição de Trás-os-Montes, a primeira longa-metragem assinada em conjunto pelos dois cineastas. Com fotografia de Acácio de Almeida, o filme foi rodado nos anos de 1974 e 1975 em dezenas de freguesias da região de Trás-os-Montes, como Rio de Onor ou Bemposta, entre Bragança e Miranda do Douro. 
 
Trás-os-Montes conta com a participação de habitantes da região, que interpretam versões ficcionadas de si próprios e dos seus antepassados. Através dos anos e dos séculos, re-encenam os seus ritos nas suas paisagens ancestrais, indagando sobre a sua origem e o seu destino. Teve ante-estreia em Bragança, a 1 de Maio de 1976, e em Miranda do Douro no dia seguinte. 
 
Numa carta endereçada ao director do Centro Português de Cinema, em 1976, o cineasta francês Jean Rouch elogiou a obra escrevendo que “para mim, este filme é a revelação de uma nova linguagem cinematográfica. Nunca, tanto quanto sei, um realizador se havia empenhado, com tal obstinação, na expressão cinematográfica de uma região: quero dizer, a difícil comunhão entre homens, paisagens e estações. Só um poeta insensato poderia exibir um objecto tão inquietante.” 
 
O francês terminava dizendo que “apesar da barreira de uma linguagem áspera como o granito das montanhas, aparecem, de repente, na curva de um caminho novo, os fantasmas de um mito sem dúvida essencial já que o reconhecemos antes mesmo de o conhecer. Fico à espera, com uma curiosidade apaixonada, de uma versão legendada em francês para me poder aventurar neste fabuloso labirinto.” 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até Segunda!

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Jaime (1974) de António Reis



por António Cruz Mendes

A notoriedade de Jaime, logo depois da sua estreia considerado como uma referência fundamental do Cinema Novo na área do documentário, deve-se, tanto à sua qualidade cinematográfica, como ao facto de ter revelado a obra artística, até então desconhecida, de um doente do Hospital Miguel Bombarda. 

Em 1974, quando realizou este filme, António Reis era já um homem com uma estreita ligação ao cinema. Membro activo do Cineclube dos Porto, tinha sido assistente de realização de Manoel de Oliveira no Acto da Primavera (1963) e tinha realizado duas curtas-metragens, Painéis do Porto (1963) e Do Céu ao Rio (1964), em parceria com o produtor César Guerra Leal, que também serão exibidas nesta sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga. Margarida Cordeiro, psiquiatra, trabalhava no Miguel Bombarda quando descobriu uma grande quantidade de desenhos a lápis e esferográfica realizados por Jaime Fernandes, um doente já falecido que esteve aí internado grande parte da sua vida. Jaime é o primeiro passo de uma fecunda colaboração entre os dois da qual nasceriam mais três filmes, obras telúricas e poéticas que, neste ciclo, teremos a oportunidade de visualizar. 
 
Jean Dubuffet criou o conceito de “arte bruta” para designar a produção artística de pessoas sem qualquer formação académica, totalmente alheados do “mundo da arte”, e que, por esse motivo, seriam capazes de transmitir com uma autenticidade mais crua e directa os sentimentos e visões que povoavam o seu mundo interior. Muitos desses artistas eram indivíduos alienados e os seus trabalhos manifestam de uma forma muito expressiva a sua complexa e perturbada visão do mundo. Durante muito tempo, a obra artística de Jaime Fernandes foi sobretudo conhecida através do filme de António Reis. Mas, em 1980, a Fundação Calouste Gulbenkian expôs setenta e quatro dos seus desenhos e, um ano depois, cinquenta desenhos de Jaime Fernandes figuraram na Bienal de S. Paulo na exposição Arte Incomum. Mais recentemente, em 2023, o Centro de Arte Oliva (S. João da Madeira) reuniu numa grande exposição muitas obras suas que, entretanto, se tinham dispersado por múltiplas colecções públicas ou particulares. 

Jaime Fernandes nasceu na aldeia de Barco, na Covilhã. Diagnosticado como doente esquizofrénico quando tinha 38 anos, viveu mais de 30 anos em regime de internamento hospitalar. Morreu em 1969, com 69 anos de idade. Poucos anos antes, começou inesperadamente a desenhar, com esferográficas coloridas, densas teias de linhas donde emergem figuras antropomórficas ou de fantásticos animais, cujos olhos, sempre representados em posição frontal, nos perscrutam e interrogam. 

O filme de António Reis organiza-se como que por camadas, onde se sucedem imagens do austero ambiente hospitalar, feito de silêncios e solidões, com as da terra de Jaime, onde, em condições de um grande primitivismo e pobreza, os seus familiares prosseguem a sua vida. E é sobre esse pano de fundo que nos são dadas a ver as imagens dos seus desenhos, bem como das longas cartas que escrevia à sua mulher e que esta confessa mal perceber. Nuns e noutros, Jaime revela os seus sonhos, tecidos entre as memórias de uma vida perdida e a experiência da sua reclusão hospitalar. São tentativas patéticas de lhe dar um sentido e, ao mesmo tempo, uma demonstração de como a arte pode surgir como força libertadora no seio das mais terríveis circunstâncias.



domingo, 4 de agosto de 2024

355ª sessão: dia 5 de Agosto (Segunda-Feira), às 21h30


Três curtas-metragens de António Reis para ver em Braga 
 
No mês de Agosto, o Lucky Star – Cineclube de Braga vai exibir as três longas-metragens assinadas por Margarida Cordeiro e António Reis, bem como as primeiras curtas-metragens de António Reis. As sessões realizam-se às segundas-feiras no pequeno auditório do Theatro-Circo e as cópias são cedidas e digitalizadas pela Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. 
 
Margarida Martins Cordeiro (Bemposta, 1938) e António Ferreira Gonçalves dos Reis (Valadares, 1927) conheceram-se no Porto entre finais dos anos sessenta e inícios dos anos setenta. Ela, médica psiquiatra, ele poeta e cineclubista. Juntos, criaram uma das obras mais inclassificáveis não só do cinema português, como do cinema mundial. 
 
A retrospectiva terá amanhã à noite, às 21h30, com a exibição de Painéis do Porto, curta-metragem de António Reis apoiada pela Câmara Municipal do Porto nos anos sessenta, Do Céu ao Rio, outra curta de Reis co-realizada com César Guerra Leal e Jaime, um trabalho sobre o artista Jaime Fernandes que marca o primeiro encontro com Margarida Cordeiro. 
 
Jaime Fernandes nasceu em 1900 na freguesia do Barco, na Beira Baixa, trabalhando como camponês e casando com Evangelina Delgado, de quem teve um filho aos 24 anos. Aos 38 foi diagnosticado com esquizofrenia e internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Começou a pintar aos 65 anos, ainda internado, e faleceu quatro anos depois. Por essa altura, Margarida Cordeiro trabalhava lá como psiquiatra e reparou nos desenhos enigmáticos e penetrantes de Jaime, propondo a António Reis que se fizesse um filme sobre eles. 
 
Apoiada pela Câmara Municipal do Porto, nos anos sessenta, Painéis do Porto é um ensaio visual sobre a cidade, com sequências filmadas entre a Ribeira e a Baixa e leituras de poemas de Vasco de Lima Couto, Egito Gonçalves, Rosália de Castro, Pedro Homem de Mello, Fernando Pessoa, e do próprio António Reis. A música é assinada por Francisco Rebelo. 
 
O segundo trabalho realizado por António Reis em parceria com César Guerra Leal, Do Céu ao Rio, estreou no cinema Ódeon, em Lisboa, a 29 de Janeiro de 1964, e presume-se que seja uma encomenda da Hidro-Eléctrica do Cávado, pois revela vários aspectos da construção da rede de barragens dessa bacia hidrográfica. É narrado por Fernando Pessa. 
 
As sessões do cineclube ocorrem este mês às segundas-feiras, às 21h30, no pequeno auditório do Theatro Circo. Os sócios do Lucky Star - Cineclube de Braga têm entrada livre.

Até amanhã!